domingo, 5 de março de 2017

Jackie

 Os meus olhos de rato velho e preconceituoso, confesso, olharam para o poster de «Jackie» e pensaram: «não, não vou ver isto». Mais uma biografia onde se sucedem cenas apressadas e metidas a ferros para ilustrar a cronologia de uma figura histórica, ao mesmo tempo que se tece um documento laudatório, uma lavagem da história salientando pequenos/grandes feitos e removendo cirurgicamente nódoas de pequenos/grandes pecados? Hmm... O certo é que, nunca tendo visto um filme do chileno Pablo Larraín, tinha, apesar de tudo, alguma curiosidade. Há que dizer que a recepção do filme, pelo menos entre nós, e embora com algumas excepções, passou um tanto despercebida.



Percebam-me, não é que Jacqueline Kennedy não saia favorecida do filme, é apenas porque parte da técnica do seu favorecimento é menos narrativa e mais... cinematográfica. Desde os primeiros minutos, após o dispositivo de entrevista que vai permitir recordar os eventos da morte do John Kennedy, somos instalado com Portman no luto imediato. Não vimos as célebres cenas da explosão da cabeça do presidente americano (nem precisávamos), e já acompanhamos as lágrimas e trejeitos traumatizados da primeira dama, já seguimos o espectro magro a avançar pelas corredores e salas enormes da Casa Branca, a desorientação de uma mulher entre tanta gente a dizer coisas de dimensão política e pragmática tão distantes deste primitivo sentido de perda de um ente querido.

O obsessiva câmara de Larraín ao seguir Portman, a frontalidade das suas composições da Casa Branca naquele espaço tão vasto, vão meticulosamente construindo esse luto, essa desordem da psique. E curiosamente a nossa empatia não surge do que Jacqueline acabou de viver mas sim da junção da nossa memória histórica dos eventos com o sangue dos vestidos, as jarras coloridas, os espelhos que devolvem uma presença inquieta, as linhas rectas de um espaço que parece ter perdido todo o sentido.

Por estas razões «Jackie» é um filme que procura, pela comprometimento com uma proximidade e um ponto de vista individual de uma mulher - que nunca, nunca larga, vejam aquelas planos contra-picados do seu rosto entrevisto pelos véus negros, na parada nas ruas; foi uma decisão sua para homenagear o marido perante o povo nas ruas, mas este povo eclipsa-se praticamente da lente de Larraín -, mas dizia, esse comprometimento ao individual é a opção que permite explicar-nos a relação entre o glamour da política e o desgosto de uma morte. Aquilo que deixa compreender os rituais de uma cerimonia fúnebre de estado (com todas as precauções e maquinações politicas que isso envolve)  e um desejo de dizer adeus a um marido.

Posso admitir que a banda sonora de Mica Levi (o compositor do sobrevalorizado «Under the Skin») ou ou os diálogos com o padre (um dos últimos papéis do genial John Hurt no cinema) puxem o filme para aquele território que vos descrevi no início. Mas o que fica deste «Jackie» é sobretudo um filme construído sobre a paranoia de uma mulher a quem lhe caiem os miolos do marido no colo e que depois tem de arrumar as suas coisinhas da casa onde morava e decidir onde e como vai enterrar o seu homem. 

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