segunda-feira, 6 de março de 2017

A morte laranja de Edward G. Robinson


Não posso dizer que «Soylent Green» seja um dos meus Fleischers favoritos. A razão talvez seja porque as cores verdes da fotografia, das imagens promocionais, esmorecerem hoje na tela, assim como desmaiaram quase todos os filmes distópicos da época, ou anteriores, lembro-me do «Fahrenheit 451» ou do «Barbarella». São filmes que, como apostam numa visão para o futuro, são logo desmentidos por esse futuro, entretanto tornado presente. Ou quase, estamos já próximos do 2022 em que se passa esta história de crime de magnatas, de bifes pendurados como jóias, de oceanos mortos e -  imagem impressionante esta - escadas de acesso aos prédios cujos degraus estão cheios de pobres a dormitar e em que o porteiro se converteu num barrigudo de camisola de alças, empunhando uma espingarda automática.

Além dessa visão de um mundo extinto, o mistério que ocupa Charlton Heston - actor cujas linhas duras, dentes quadrados, sempre parecem ser adequadas à dureza apocalítica do presente - empalidece nas buscas de um motivo e de um grande culpado para o assassínio da personagem de Joseph Cotten, empresário das Soylent Corporation, produtora de comidas artificiais, uma vez que as que outrora conheceramos estarem reservadas à elite. Em vez disso, a «última ceia» que partilha com Edward G. Robinson, e a «ida para casa» deste (Robinson morre no filme e, na realidade, 9 dias depois) tornaram-se o centro cinéfilo intemporal deste filme. Há um lado triste e lírico nessa cerimónia pop fúnebre do seu adeus, um Robinson, muito debilitado a ver imagens do mundo como este era no passado - os mares, os animais, os céus, ao som de Tchaikovsky, Beethoven e Grieg - e Fleischer a participar nessa derradeira homenagem, através de grandes planos para imortalizar o rosto alheado, saudoso de um dos maiores actores da história do cinema.

Há uns meses escrevia aqui sobre o final de «Rabid» de Cronenberg, mais particularmente sobre um corpo jogado ao lixo como marca da falência deste e da crescente interpenetração com a «carne» tecnológica, temas que muito interessaram o realizador canadiano. Aqui, em «Soylent Green» os corpos também são metidos em camiões do lixo e - spoiler - convertidos secretamente nessa espécie de contraplacado verde que as pessoas comem chamado precisamente «soylent green». Mais interessante do que este desfecho circular, canibal - e Fleischer sabe-o, pois termina com o recorte da mão levantada de Heston a avisar o seu chefe do esquema maldito e a ser levado (para ser comido?) por aqueles que sabemos já estarem envolvidos -, é pensar nessa passagem do corpo de Robinson, actor cansado do cinema que por ele passou (tão diferente e vital o fim dele em «Little Ceaser», por exemplo), aos actores sem corpo, aos filmes sem cinema, a um mundo todo verde sem já espaço para uma morte laranja (a cor do pôr-do-sol, mas também a cor favorita da personagem de Robinson).

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