domingo, 12 de abril de 2009
O Alienista, 1882 (PAPÉIS AVULSOS)
“Positivamente o terror”.
Só depois de ler os dois romances mais conhecidos de Machado de Assis surgiu a ideia iluminada de escrever a proprósito do brasileiro. A “culpa” é da sua função contista e daquele que provavelmente é considerado o seu melhor exercício: “O Alienista”.
Extraordinária é, desde logo, a sua mutação estilística, que faz de Machado de Assis escritor igualmente culto mas menos histriónico. A revelação da loquacidade exibida em “Memórias Póstumas de Brás Cubas” é eficaz, surpreendente, mas com prazo de validade mais ou menos preciso. Ora, em “O Alienista” essa neutralidade, essa ausência de um narrador forte, “engraçadisso”, faz sair para primeiro plano uma reflexão fascinante, modé, sobre a loucura como nova malaise, assente numa estratégia de aparente contaminação (como uma peste, ou uma cegueira progressiva).
Em Itaguaí, pequena cidade brasileira, o dr. Simão Bacamarte é um médico que pede a construção de um asilo, “a casa verde”, para assim colocar em local apropriado de estudo os loucos da zona. Tudo com intuito científico. Mas Simão, imune ao amor de D. Evarista, começa obsessivamente a mandar internar qualquer pessoa da cidade que possua sinais da dita “loucura”. Loucura é, no entender do médico, qualquer manifestação de bizarria, diferença. A dado momento, “o alienista”, assim é designado Simão, parece instrumentalizar a ciência como sinal de domínio político, naquele que se assemelha a um banal trajecto de um tirano. É pelo menos essa a leitura da cidade, quando liderada é a sua revolta pelo barbeiro. Este sim instrumentaliza a insurreição para ganhar o controlo da cidade. A animização do sentimento de revolta é usada para obter poder: uma vez atingido este, há uma tranquilidade que é sinal de falsa simpatia, de falsa segurança, mas que pode ser também o gérmen da sua “queda”. É o que acontece quando a revolta do barbeiro é substituída por outra revolta e logo derrubada. A política, o poder, não são puros, ao contrário da ciência lunática de Simão, e por isso, estão condenados a sucederem-se de forma vazia.
O grano de salis é que é só quando o poder governamental instituído repõe a ordem na cidade e Simão Bacamarte coloca a própria mulher no asilo, que este dá ordens para libertar todos os “loucos”, os contestatários das suas ideias. Porém, mantém-se a dúvida: o alienista é louco pela pureza com que leva as suas ideias? Ou é louco pelo equilíbrio, que entretanto se formou em torno da sua personalidade, equilíbrio quase ficcional, por medo, criado pela sociedade? Ou equilíbrio porque tudo à sua volta se modifica e só a certeza da definição de loucura, em toda a sua obstinação, se mantém sã?
Mimando a forma de ver a loucura ao longo dos séculos, também o alienista constata que o louco não é o que age de forma diferente mas aquele que é demasiado igual: loucos são os sãos (Freud). E por isso, apenas os demasiado justos, ponderados, coerentes, conhecem agora a “casa verde”. Os juízes, o vereador razoável que se opunha à irrazoabilidade da lei (que excluía os políticos desta nova definição de loucura), todos estes, são os novos loucos. Ironia máxima é que, “preso por ter cão, preso por não ter”, e o barbeiro que agora se recusava a encetar nova revolução contra o alienista, porque dizia, a “câmara tinha autorizado a sua nova experiência por um ano” e que confessava que o seu móbil da primeira vez tinha sido exclusivamente a ambição, será, segundo a nova visão, o demente, e então, de imediato, aprisionado.
Como nas grandes façanhas e investigações, a grande sabedoria reconhece a importância do pequeno passo, do papel da natureza, e Simão encontra maneira de colocar os novos loucos em posições em que a natureza e/ou sociedade os corromperia, os tornaria um pouco menos razoáveis e inatacáveis, os “curaria” em suma.
Seja esta ideia uma grande invenção da inteligência do “alienista” ou o decorrer normal da natureza, o certo é que este concluiu que não existiam, na realidade, loucos em Itaguaí. Ou melhor, se algum louco haveria - pelo menos as qualidades, atestavam-nas a sociedade, que o eregia como homem de bem e honra inestimável - era ele. Por isso, Simão Bacamarte se encerra na sua “casa verde” e lá, louco ou são, ou ambos, morre.
Machado de Assis sugere que é preciso grande dose de loucura para reflectir razoavelmente sobre a demência humana. E que esta, consoante as circunstâncias sociais, políticas, históricas, pode colocar-se a sel bel prazer onde quisermos. Como a religião, a ciência, tem tanto de ficcional, como factual. Cabe à imaginação, e sobretudo à ambição humanas, ir gerindo fronteiras e barreiras. No fundo, não há cimento, construções, palavras, conceitos, atitudes, que separem o racional do irracional, a sanidade da demência. E ainda bem.
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