quinta-feira, 16 de abril de 2009

Jogos de Sobrevivência





É um facto. Não parece haver nos últimos anos forma de o cinema brasileiro se exportar, pelo menos desde o boom “Cidade de Deus”, senão através da exploração do seu mundo de pobreza abissal, em que as suas histórias, os seus actores, mascaram um “charmoso” statement terceiro mundista. Ora, essa obsessão não é inédita, nem necessariamente empobrecedora. Cinematografias há que, lidando com o trauma histórico ficcionalizável (veja-se muito do recente cinema palestiniano e mesmo israelita), dele se souberam libertar, politicizando sempre, mas com o cuidado de evitar os sublinhados panfletários e a desambiguação.

Infelizmente, não se passa o mesmo com o Brasil. O seu cinema mais recente tem conquistado visibilidade exterior contando sempre a mesma crónica de miserabilismo sobre um país com profunda desigualdade de classes, miséria e violência extremas. Curioso é que Walter Salles (“Central do Brasil”, “Diários de Motocicleta”), cineasta sem vícios reconhecíveis, ao entroncar-se nessa tendência com este “Linha de Passe”, filme nomeado à palma de ouro em Cannes no ano transacto, se apoderou de outros esquemas, mais ou menos reconhecíveis e eficazes.

Por um lado, a temática do fresco familiar com propósitos de denúncia social, conhece a clara influência do documentarismo do irmão, João Salles. Mas se João trabalha em pleno na “dobragem” do real, Walter, lança mão de uma estratégia de ficcionalização do mesmo. Por exemplo, uma das personagens de “Linha de Passe”, o pequeno Reginaldo, que procura obsessivamente conhecer o seu pai, pega a dado momento num autocarro e parte nele em busca do progenitor. Nesse episódio, retirado de um fait divers que apaixonou a opinião pública brasileira, é possível ver a clara intenção de usar essa veridicidade para fortalecer o activismo da mensagem. E há outros dispositivos naturalistas à vista: a utilização da câmara à mão, o cast de actores amadores, a improvisação como método preferencial. Porém, o que ressai de todas estas manobras de aproximação ao realismo documental é um esforço inglório, contrasensual mesmo, uma vez que as situações, as personagens, todas elas, são embrulhos para ideias maneirinhas e toda a obra acaba por se afirmar como explosão metafórica mais ou menos óbvia (veja-se a metáfora do lavatório entupido) sobre o social brasileiro que urge modificar.

Para esse excesso metafórico contribui indelevelmente uma ideia de montagem que procede linearmente por uma acção/uma ideia (esta última de cariz abstracto, pronta a ser veiculada). Isto além das suas preocupações quase obsessivas de alternar e ligar emocionalmente universos semi-distantes (preocupações essas provindas de filmes como “Babel” de Alejandro González Iñarritu, ou “Crash”, de Paul Haggis). O efeito é simples, o menosprezo enorme.

O mais interessante é que essa montagem de “associação ditatorial” é o cimento que mantem unidas as personagens de “Linha de Passe”: a mãe, que espera um quinto filho e que teme perder o emprego de empregada de limpeza devido a essa gravidez; e os seus quatro filhos, cada um jogando individualmente o jogo da sobrevivência, procurando na religião, no futebol, na delinquência e no modelo paternal, estratégias de consolo.

Se o futebol é um jogo de colectivo, onde “quem não passa a bola, está fora” (como se diz no início), a lei do asfalto é bem diferente. Essa coloca os indivíduos das classes baixas brasileiras, num estado de alerta urbano único. Por isso, todas as personagens de “Linha de Passe” passam o tempo todo a tentar desencantar as tais linhas de passe, sendo que parece não existir ninguém em posição de jogar com eles.

O problema é que esse individualismo desesperado, esse estado de alerta, se ameaça tornar bilhete postal de uma arte brasileira, a par do futebol ou do samba, pelo menos, enquanto o seu cinema continuar a “distribuir jogo” desta maneira....

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