sexta-feira, 24 de abril de 2009
Green Wars
Em 1999, Scott Smith ia vencendo um Oscar de melhor argumento adaptado pela tradução, para o grande ecrã, do seu próprio romance “A Simple Plan”. A tradução portuguesa do título do filme ofuscou a simplicidade do original ficando-se apenas por “O Plano”. Omissão nada oportuna, uma vez que era a linearidade das escolhas de Billy Bob Thorton e companhia, e sua escalada em algo cada vez mais impossível de atingir, que gizaram o sucesso da obra. Um percurso discreto de “como fazer do fácil difícil”, portanto. Quase uma década depois, o processo repete-se: Smith escreve um romance entre o thriller e o terror e adapta-o ele próprio ao cinema. Porém, no resultado, “The Ruins”, não há um plano delineado de início. As personagens aceitam colocar-se numa posição de incerteza por um instinto de aventura e, quando colocadas em situação de perigo, voltam a reagir por instinto, desta feita, de sobrevivência. Mas a essência mantém-se. Porque a natureza humana dita que, quer a partir de um simples plano, quer lutando pela sobrevivência, acções simples, quando geradas sob tensão, possam derivar em verdadeiras escaladas de irrazoabilidade. Ora, “The Ruins” é um filme sobre essa irrazoabilidade e os cenários hediondos que esta pode produzir.
É neste plano que se opera a primeira das operações de cosmética de “The Ruins”, que o metamorfoseam numa obra de terror divergente da habitual estrutura formular. Na sua primeira vintena de minutos, Jeff (Jonathan Tucker) e Amy (Jena Malone), Eric (Shawn Ashmore) e Stacy (Laura Ramsey), dois casais de jovens de uma beleza inusitada (parece haver no universo em questão uma predilecção pela destruição da beleza) são atraídos, no final de umas férias exóticas (até então o exotismo tinha com degré máximo o resort turístico mexicano), para um templo secreto. Desde os dilemas das personagens (Jeff, por exemplo está prestes a separar-se da namorada para estudar medicina), passando pelo discurso abstruso (“Four americans on vacation don`t just disappear!”), até à típica atitude de “dollar solving every problem”, tudo parece construir uma visão “americanocêntrica” de terror xenófobo, muito em voga (“Turistas”, “Hostel”). No entanto, Smith, o realizador, e Smith, o autor, souberam divergir. O primeiro na forma como contorna a superficialidade inicial e transforma “The Ruins” num estudo de personagens em tensão, onde, com a ajuda de uma inegável base literária na gestão dramática de algumas cenas e dialógos, dá-nos, senão uma noção de identificação, pelo menos a ideia de que há pessoas em stress debaixo das respectivas caricaturas. O investimento emocional no background das personagens é substituído pela dor autêntica. O segundo diverge na forma como desloca essa estrutura perigosa do horror com origem no outro “geográfico” (ainda assim, dispensável, os bonecos mexicanos com armas em punho a rodear o templo), para uma ameaça biológica que acaba por funcionar como marca do filme. São as plantas no templo a origem da quarentena e progressiva contaminação dos jovens.
Pode, como se fez com “The Happening”, de Night Shyamalan, situar essa ameaça ecológica num aviso do planeta à acção humana, aqui claramente com contornos de reprimenda de uma terra ante a exploração e ignorância de representantes de uma outra. Mas essa dimensão sígnica não ofusca o que é chave no ataque de plantas a seres humanos: o silêncio, a inexplicabilidade do mal. Essa inexplicabilidade, que permite a construção do universo maligno ex machina, como algo opaco, sem falhas (não há planos para o derrotar, pois não há pontos fracos), permite deixar o hipotético happy ending ao abrigo da sorte. Tudo se converte num jogo de probabilidades onde, por um lado, há que lidar com uma inquietante mensagem de impassibilidade (faças o que fizeres...), e por outro, a constatação de que esse terror sem rosto ou explicação é o preço a pagar para não cair na moralidade (por exemplo, nos anos 80, os jovens pecadores do sexo, drogas e rock & roll é que pagavam as favas e pagavam-nas consoante um grau crescente de culpa).
Eis-nos, então, chegados à segunda operação de cosmética. A amoralidade de que falávamos, a ameaça invisível que tudo consome e contamina sem ordem aparente, faz deslocar o terror para as reacções dos seres humanos: assim ele está presente nas suas acções, nas aulas práticas forçadas de medicina de Jeff, de um terror que visa evitar o terror maior e derradeiro, a morte. Mas esse epicentro típico do survival terror contribui para outro importante deslocamento: o lado moral existe, ganha é contornos subterrâneos, ora de gozo, ora de sub-leitura delirante. O primeiro, já aqui adiantámos quando falávamos da reacção biológica do “local” contra o “preconceituoso” (é a própria Terra quem pune os receosos da globalização). Mas que dizer das parecenças físicas das plantas à pecaminosa marijuana? Ou ainda mais fundo. Que dizer do sémen e da seiva, ambas substâncias de vitalidade “ausentes” mas em oposição? Se a moralidade desistiu do terror, porque é que aqui se aposta no sexo oral? Porque é que o sémen é desaproveitado (o sexo é só oral ou masturbação, em cenas tão inusitadas) e se punem estes actos com o único acto de penetração verdadeira - o das raparigas pelas plantas – com a seiva a tomar o lugar do sémen? “I feel it inside me!”, grita em desespero Stacy.
Desta feita, a primeira longa-metragem de Carter Smith, que os distribuidores americanos não quiseram mostrar aos críticos antes de estrear em sala (receio? marketing? Provavelmente ambos) é uma agradável estreia no campo do terror produzido em estado de necessidade. Darius Khondji, iraniano, director de fotografia de filmes como “Seven”, “Panic Room”, “Delicatessen”, consegue na perfeição dar a cor própria a um sentimento de hopelessness que consome “The Ruins” e quem o vê.
D. Quixote e a Crise
Quem pelo menos tiver visto os anúncios que Clive Owen fez para a BMW sabe que este teria sido, a par do escolhido Daniel Craig, uma interessante escolha para a pele do agente secreto mais famoso do mundo. Quem vir este “The International”, uma espécie de prémio de consolação para Owen, ficará a indagar como seria um 007 assim, de um glamour traumatizado, homem verdadeiramente preocupado com o sucesso da sua façanha.
Quase que bastaria o plano inicial da obra de Tom Tykwer, com o dito olhar transtornado de Owen, para perceber que este seu Louis Salinger, agente de Interpol em luta titânica contra uma gigantesca e tentancular rede conspirativa do qual a alta finança é só uma das pontas do icebergue, para perceber que se trata de um homem fora da sua ficção. Ou por outra, o peso interior da sua personagem aporta a “The International” uma seriedade que o convencionalismo do argumento de Eric Singer não suporta. O mundo é povoado dos lugares comuns dos thrillers de espionagem, desde as falsas identidades, a troca de informações secretas em lugares insuspeitos como parques de estacionamento ou museus, assassinatos encobertos, etc., tudo secundado por uma intriga “internacional”, que sob a ligeireza de tudo poder integrar como sistema opaco (desde bancos, juntas militares, líderes políticos, a máfia), nada desenvolve, generalizando mais um macguffin capitalista. Por isso, pouco importa que este “The International” tenha estreado, por coincidência ou não, em plena crise económica mundial, com a falência de inúmeros bancos.
Mas seria injusto dizer que, se Clive Owen dinamita as possibilidades de “The International” se arvorar a thriller pouco preconceituoso, Tom Tykwer, o seu realizador, não tente tirar partido da sua elegância a lançar ritmos de empolgamento (“Lola Rennt”). Por isso, assistimos a um carrossel, com frequentes paragens e arranques, nos quais as sequências de acção em espaços controlados fazem o filme lançar alguma da tensão que revisita Hitchcock especialista nesses dispositivos (“The Men Who Knew Too Much”, “Sabotage”). Assinale-se, como exemplo, o confronto em pleno museu Guggenheim, durante o qual, o som dos disparos, a interacção com as instalações vídeo a estender o “campo visível” ou a progressiva destruição da criação de Frank Lloyd Wright, (para lá da evidente metáfora artística), rompem momentaneamente o desinteresse. Estas acelerações narrativas que pululam no espaço global e cosmopolita de “The Internacional” (Milão, Nova Iorque, Istambul, Berlim), deixam entrever uma analogia que o cineasta alemão explicitou entre a arquitectura moderna de muitos dos locais onde a acção decorre, num misto de transparências e opacidades, e a dupla natureza das grandes instituições capitalistas em causa, simples no exterior, densas no seu interior. Uma espécie de “diz-me onde moras, dir-te-ei quem és” da espionagem.
Se é a verdade que o filme de Tykwer resiste pela desenquadrada obstinação quixotesca do seu protagonista, transformando o seu conflito contra as ilicitudes do gigante banco europeu IBBC, numa luta ideológica, o certo é que a não concretização do pecado capitalista (“quando eu morrer outros 100 banqueiros como eu estarão desejosos de ocupar o meu lugar”, diz Skarssen, o presidente do IBBC, perto do final) é aproveitada como discutível mensagem de resignação. E então tudo volta ao mesmo. A única diferença é que ao menos poder-se-ia ter aproveitado melhor a “viagem”.
quinta-feira, 16 de abril de 2009
Jogos de Sobrevivência
É um facto. Não parece haver nos últimos anos forma de o cinema brasileiro se exportar, pelo menos desde o boom “Cidade de Deus”, senão através da exploração do seu mundo de pobreza abissal, em que as suas histórias, os seus actores, mascaram um “charmoso” statement terceiro mundista. Ora, essa obsessão não é inédita, nem necessariamente empobrecedora. Cinematografias há que, lidando com o trauma histórico ficcionalizável (veja-se muito do recente cinema palestiniano e mesmo israelita), dele se souberam libertar, politicizando sempre, mas com o cuidado de evitar os sublinhados panfletários e a desambiguação.
Infelizmente, não se passa o mesmo com o Brasil. O seu cinema mais recente tem conquistado visibilidade exterior contando sempre a mesma crónica de miserabilismo sobre um país com profunda desigualdade de classes, miséria e violência extremas. Curioso é que Walter Salles (“Central do Brasil”, “Diários de Motocicleta”), cineasta sem vícios reconhecíveis, ao entroncar-se nessa tendência com este “Linha de Passe”, filme nomeado à palma de ouro em Cannes no ano transacto, se apoderou de outros esquemas, mais ou menos reconhecíveis e eficazes.
Por um lado, a temática do fresco familiar com propósitos de denúncia social, conhece a clara influência do documentarismo do irmão, João Salles. Mas se João trabalha em pleno na “dobragem” do real, Walter, lança mão de uma estratégia de ficcionalização do mesmo. Por exemplo, uma das personagens de “Linha de Passe”, o pequeno Reginaldo, que procura obsessivamente conhecer o seu pai, pega a dado momento num autocarro e parte nele em busca do progenitor. Nesse episódio, retirado de um fait divers que apaixonou a opinião pública brasileira, é possível ver a clara intenção de usar essa veridicidade para fortalecer o activismo da mensagem. E há outros dispositivos naturalistas à vista: a utilização da câmara à mão, o cast de actores amadores, a improvisação como método preferencial. Porém, o que ressai de todas estas manobras de aproximação ao realismo documental é um esforço inglório, contrasensual mesmo, uma vez que as situações, as personagens, todas elas, são embrulhos para ideias maneirinhas e toda a obra acaba por se afirmar como explosão metafórica mais ou menos óbvia (veja-se a metáfora do lavatório entupido) sobre o social brasileiro que urge modificar.
Para esse excesso metafórico contribui indelevelmente uma ideia de montagem que procede linearmente por uma acção/uma ideia (esta última de cariz abstracto, pronta a ser veiculada). Isto além das suas preocupações quase obsessivas de alternar e ligar emocionalmente universos semi-distantes (preocupações essas provindas de filmes como “Babel” de Alejandro González Iñarritu, ou “Crash”, de Paul Haggis). O efeito é simples, o menosprezo enorme.
O mais interessante é que essa montagem de “associação ditatorial” é o cimento que mantem unidas as personagens de “Linha de Passe”: a mãe, que espera um quinto filho e que teme perder o emprego de empregada de limpeza devido a essa gravidez; e os seus quatro filhos, cada um jogando individualmente o jogo da sobrevivência, procurando na religião, no futebol, na delinquência e no modelo paternal, estratégias de consolo.
Se o futebol é um jogo de colectivo, onde “quem não passa a bola, está fora” (como se diz no início), a lei do asfalto é bem diferente. Essa coloca os indivíduos das classes baixas brasileiras, num estado de alerta urbano único. Por isso, todas as personagens de “Linha de Passe” passam o tempo todo a tentar desencantar as tais linhas de passe, sendo que parece não existir ninguém em posição de jogar com eles.
O problema é que esse individualismo desesperado, esse estado de alerta, se ameaça tornar bilhete postal de uma arte brasileira, a par do futebol ou do samba, pelo menos, enquanto o seu cinema continuar a “distribuir jogo” desta maneira....
domingo, 12 de abril de 2009
O Alienista, 1882 (PAPÉIS AVULSOS)
“Positivamente o terror”.
Só depois de ler os dois romances mais conhecidos de Machado de Assis surgiu a ideia iluminada de escrever a proprósito do brasileiro. A “culpa” é da sua função contista e daquele que provavelmente é considerado o seu melhor exercício: “O Alienista”.
Extraordinária é, desde logo, a sua mutação estilística, que faz de Machado de Assis escritor igualmente culto mas menos histriónico. A revelação da loquacidade exibida em “Memórias Póstumas de Brás Cubas” é eficaz, surpreendente, mas com prazo de validade mais ou menos preciso. Ora, em “O Alienista” essa neutralidade, essa ausência de um narrador forte, “engraçadisso”, faz sair para primeiro plano uma reflexão fascinante, modé, sobre a loucura como nova malaise, assente numa estratégia de aparente contaminação (como uma peste, ou uma cegueira progressiva).
Em Itaguaí, pequena cidade brasileira, o dr. Simão Bacamarte é um médico que pede a construção de um asilo, “a casa verde”, para assim colocar em local apropriado de estudo os loucos da zona. Tudo com intuito científico. Mas Simão, imune ao amor de D. Evarista, começa obsessivamente a mandar internar qualquer pessoa da cidade que possua sinais da dita “loucura”. Loucura é, no entender do médico, qualquer manifestação de bizarria, diferença. A dado momento, “o alienista”, assim é designado Simão, parece instrumentalizar a ciência como sinal de domínio político, naquele que se assemelha a um banal trajecto de um tirano. É pelo menos essa a leitura da cidade, quando liderada é a sua revolta pelo barbeiro. Este sim instrumentaliza a insurreição para ganhar o controlo da cidade. A animização do sentimento de revolta é usada para obter poder: uma vez atingido este, há uma tranquilidade que é sinal de falsa simpatia, de falsa segurança, mas que pode ser também o gérmen da sua “queda”. É o que acontece quando a revolta do barbeiro é substituída por outra revolta e logo derrubada. A política, o poder, não são puros, ao contrário da ciência lunática de Simão, e por isso, estão condenados a sucederem-se de forma vazia.
O grano de salis é que é só quando o poder governamental instituído repõe a ordem na cidade e Simão Bacamarte coloca a própria mulher no asilo, que este dá ordens para libertar todos os “loucos”, os contestatários das suas ideias. Porém, mantém-se a dúvida: o alienista é louco pela pureza com que leva as suas ideias? Ou é louco pelo equilíbrio, que entretanto se formou em torno da sua personalidade, equilíbrio quase ficcional, por medo, criado pela sociedade? Ou equilíbrio porque tudo à sua volta se modifica e só a certeza da definição de loucura, em toda a sua obstinação, se mantém sã?
Mimando a forma de ver a loucura ao longo dos séculos, também o alienista constata que o louco não é o que age de forma diferente mas aquele que é demasiado igual: loucos são os sãos (Freud). E por isso, apenas os demasiado justos, ponderados, coerentes, conhecem agora a “casa verde”. Os juízes, o vereador razoável que se opunha à irrazoabilidade da lei (que excluía os políticos desta nova definição de loucura), todos estes, são os novos loucos. Ironia máxima é que, “preso por ter cão, preso por não ter”, e o barbeiro que agora se recusava a encetar nova revolução contra o alienista, porque dizia, a “câmara tinha autorizado a sua nova experiência por um ano” e que confessava que o seu móbil da primeira vez tinha sido exclusivamente a ambição, será, segundo a nova visão, o demente, e então, de imediato, aprisionado.
Como nas grandes façanhas e investigações, a grande sabedoria reconhece a importância do pequeno passo, do papel da natureza, e Simão encontra maneira de colocar os novos loucos em posições em que a natureza e/ou sociedade os corromperia, os tornaria um pouco menos razoáveis e inatacáveis, os “curaria” em suma.
Seja esta ideia uma grande invenção da inteligência do “alienista” ou o decorrer normal da natureza, o certo é que este concluiu que não existiam, na realidade, loucos em Itaguaí. Ou melhor, se algum louco haveria - pelo menos as qualidades, atestavam-nas a sociedade, que o eregia como homem de bem e honra inestimável - era ele. Por isso, Simão Bacamarte se encerra na sua “casa verde” e lá, louco ou são, ou ambos, morre.
Machado de Assis sugere que é preciso grande dose de loucura para reflectir razoavelmente sobre a demência humana. E que esta, consoante as circunstâncias sociais, políticas, históricas, pode colocar-se a sel bel prazer onde quisermos. Como a religião, a ciência, tem tanto de ficcional, como factual. Cabe à imaginação, e sobretudo à ambição humanas, ir gerindo fronteiras e barreiras. No fundo, não há cimento, construções, palavras, conceitos, atitudes, que separem o racional do irracional, a sanidade da demência. E ainda bem.
sábado, 4 de abril de 2009
Vredens Dag (Day of Wrath) -Carl Dreyer
“Meu Deus, a vida que os homens levam!”
Após o fracasso comercial de Vampyr, Carl Dreyer teria de esperar onze anos para voltar às longas-metragens. Vredens Dag, adaptação de uma peça de Hans Wiers-Jenssen continua o périplo pela representação de mulheres fortes e obstinadas da galeria do dinamarquês. Ficou famosa na história a trilogia (não assumida, entenda-se) composta por esta obra, La Passion e Gertrud. Como nestas, a heroína é uma jovem que vê o seu amor ameaçado pelas normas de uma sociedade patriarcal obtusa que as julga e em última instância as condena. Amor no caso físico contraposto ao amor espiritual em Jeanne e intelectual em Gertrud.
Anne é uma jovem que está casada com um Reverendo bastante mais velho e pelo qual não nutre o menor afecto. Além da frustração erótica tem de lidar com a concorrência da mãe do marido, símbolo de uma religiosidade castradora. Quando Martin, o filho do Reverendo chega, confirma-se o pré-anunciado escândalo: o envolvimento dos dois. Dreyer desde o início que não se preocupa em filmar a tragédia que daí advém mas sim em ensaiar motivos para a sua confirmação.
Sobre esses motivos não é possível esconder que se estava a fazer cinema num país ocupado pela Alemanha nazi. Desta forma, a força do mal, ou antes do desvio, parece encontrar-se num herdado poder místico da protagonista (a sua mãe tinha sido perdoada por actos de bruxaria pelo Reverendo) ou na maldição que Marthe, uma velha bruxa, lança sobre o casal no momento da morte na fogueira. Mas o que na realidade parece existir é um certo desvio em relação à causa da condenação do próprio desvio. Por outras palavras, Dreyer sabe utilizar o misticismo como um acessório para falar do que realmente interessa- a ignorância do ser humano.
Vredens Dag apenas é sobre corpos que querem amar, que têm medo de morrer, que querem ceder a impulsos e não ameaças. É esse o sentido da confissão final de Anne: um acto de libertação quando o seu amante vergado ante o peso do “pecado” a abandona. Uma mulher triste que não teve espaço para ser feliz.
Desta forma, o olhar “puro inocente e claro” de Anne, mais do que carregar um erotismo fechado, alicerça a menos espiritual das obras de Dreyer. Por isso, quando Anne se convence que ela própria pode ser uma bruxa a sua ruptura representativa é tão teatral. Por isso, a figura de Marthe é a menos complexada, aquela cuja tortura e morte mais nos impressiona e por isso aquela que mais claramente permite ver um dedo apontado ao jugo nazi. Marthe apenas tem medo de morrer não se interessando sobre se vai encontrar Deus ou o Diabo quando partir.
Apesar da intemporalidade da cólera humana retratada são curiosamente os elementos mais exteriores ao enredo que fizeram o sucesso de Vredens Dag. Falamos do cenário em que decorre e sobretudo da luz que percorre todo o filme numa homenagem à pintura flamenca. As sombras muito marcadas permitem enclausurar o espaço de Anne e sobretudo afirmam-se como marcas de expressão das personagens, numa continuação exterior do seu rigor representativo.
Estilisticamente Vredens Dag afasta-se do grande plano de Jeanne D’Arc. Procura antes a montagem alternada e a estrutura episodal como em algumas das suas obras menos vistas – Blad Af Satans Bog ou Die Gezeicheneten. Veja-se o episódio cruel de Marthe que parece ser uma antecâmara da intriga principal ou a sequência dos jovens amantes do campo alternada com a morte do velho Laurentius.
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