quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Phantom Thread

Neste texto do Bernardo sobre Phantom Thread ele aborda a ideia de uma trilogia que avançava de Boogie Nights para There Will Be Blood e deste a The Master. Talvez os grandes cineastas também sejam isto, a capacidade de trilhar na sua obra múltiplos caminhos, como uma tapeçaria ongoing e pessoal. Digo isto porque, ao ver o último filme de Paul Thomas Anderson, não pude deixar de sentir nestas recorrências um retrato em múltiplas camadas  - como se cada filme fosse um plano pictórico, um detalhe, de um omniquadro de Hieronymus Bosch -, mas, ao mesmo tempo,  também um certo esgotamento. Como se o estilo, o quadro, fossem ainda o mesmo e saltassem à vista.


Creio que existe claramente uma separação entre os filmes-mosaico de Anderson (Boogie, Magnolia, Inherent) e aqueles onde o múltiplo devém uno e o discurso sobre a coincidência, a multiplicidade e a acumulação se torna mais afirmativo. Quiçá até dogmático. Nesta oposição, Phantom Thread tem uma forte relação com There Will Be Blood e The Master. No primeiro, PTA utiliza a metáfora da extração para falar do capitalismo e da concorrência americanas; no segundo o pilar espiritual como bóia de salvação do trauma das guerras. E o que dizer deste Reynolds Woodcock - pila de madeira - em confronto com a sua Alma?

Se é verdade que Boogie Nights, como disse o Bernardo, tem a mira apontada à questão da potência e liberdade sexual, aqui joga-se esta dualidade muito puritana do homem que quer trabalhar e a mulher que quer o amor. Contudo, se este pode ser um traço do homem americano - cujos valores desta "trilogia" seriam os do capitalismo concorrencial (There Will), da espiritualidade (The Master) e do trabalho (Phantom) -  também é verdade que Anderson vai mais longe. O trajecto de Alma passa pela evolução em que quer deixar de ser apenas "alma", ou musa inspiradora (na perspectiva de Reynolds, a mulher-manequim ou mulher-auxiliar), e passar a ser corpo. Corpo actuante, pensante, objecto e sujeito de desejo. E isto Anderson faz brincando um pouco com o estereotipo dos filmes góticos, das mulheres encerradas em mansões com "perfect strangers" como maridos controladores e tenebrosos (Rebecca, Spellbound, Gaslight, etc). E neste sentido, a personagem de Daniel Day Lewis é esse estereotipo do mestre trabalhador, disciplinado, com uma mulher que mais não é do que uma trave arquitectural (sem grande vida ou liberdade) do seu edifício ou projecto de vida.

Mas falava em esgotamento em relação a este seu último filme precisamente porque ao longe desta "trilogia" detecto um modo de operar que se sedimenta (cristaliza), e que passa por procurar um traço importante na cultura (no masculino) americana e trazê-la à tona, e de forma mais ou menos subtil, através de actores (Lewis, Phoenix) que tem o poder de afundar em si próprios a qualidade da "mensagem" do filme. E assim Phantom Thread até parece ser mais um veículo de Lewis do que outra coisa qualquer. Julgo que há qualquer coisa neste último filme de Anderson que se repete, que já foi feito em There Will Be Blood. Ao contrário do que se poderia definir como a aura dos grandes actores - expansiva, iluminadora - a de Daniel Day Lewis (e Phoenix substitui-o, até certa medida em The Master) é o inverso disso. Uma aura interior, que suga, como um buraco negro que nos pusesse em confronto com uma certa interioridade que Anderson vai aos poucos povoando das suas preocupações. E se na personagem que tinha em There Will, Daniel Plainview, essa interioridade ainda era uma novidade, aqui, em Reynolds Woodcock, já é, e acima de tudo, dispositivo.

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