Um prédio pode ter sempre muitos andares, mas, se lhe virmos apenas o cume, nada mais será do que uma montanha. Conto seis. Seis andares cravejados de pequenas janelas - umas com os estores corridos, outras abertas - e ninguém à espreita. Cidade deserta feita de meia montanha, meio prédio. A cor dele é o amarelo sujo, gasto. As manchas do tempo surgem-lhe às linhas, de um cinzento claro, uma escrita em caderno sem pauta, hieróglifos de podridão. Ocasionalmente, um avião vem sorridente, piscando, com dentes de vigília, e sobrevoa-lhe o topo. Acredito que a sensação de tal deva ser incrível do ponto de vista de um pássaro ou de alguém que tenha ido, de propósito, ao terraço, passar um bom bocado no jardim. O jardim de que vos falo não tem árvores. Tem antenas de fruto, que, quando o tempo aquece, pendem suculentos e coloridos canais prontos a serem colhidos por uma viúva, uma criança acorrentada, ou um homem com desgostos espetados no peito. Nesse jardim, os troncos das árvores são metal muito escuro a furar o céu, e as parabólicas assentos de macaco, embondeiros dourados. De um dos lados desta meia montanha pode ver-se ainda um pequeno friso de betão cor-de-rosa. Nesse seu rosado dorso, janelinhas redondas vislumbram os restantes montículos de telha, as clarabóias, um ou outro guindaste, girafa de recto pescoço. Cheira a aço, betão, granito, lamento, dourado, doença. Por detrás dos outros telhados habita a parte invisível desta montanha, o seu sopé, a sua porteira, a sua rua enlameada a agarrar o chão pelos cornos. Mas desta parte do meu Inverno, dessa outra metade da montanha, ninguém quer saber, pois é sempre dos pontos mais altos que as criaturas mitológicas jogam um relâmpago ou uma lágrima.
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