segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

A outra metade da montanha

Um prédio pode ter sempre muitos andares, mas, se lhe virmos apenas o cume, nada mais será do que uma montanha. Conto seis. Seis andares cravejados de pequenas janelas - umas com os estores corridos, outras abertas -  e ninguém à espreita. Cidade deserta feita de meia montanha, meio prédio. A cor dele é o amarelo sujo, gasto. As manchas do tempo surgem-lhe às linhas, de um cinzento claro, uma escrita em caderno sem pauta, hieróglifos de podridão. Ocasionalmente, um avião vem sorridente, piscando, com dentes de vigília, e sobrevoa-lhe o topo. Acredito que a sensação de tal deva ser incrível do ponto de vista de um pássaro ou de alguém que tenha ido, de propósito, ao terraço, passar um bom bocado no jardim. O jardim de que vos falo não tem árvores. Tem antenas de fruto, que, quando o tempo aquece, pendem suculentos e coloridos canais prontos a serem colhidos por uma viúva, uma criança acorrentada, ou um homem com desgostos espetados no peito. Nesse jardim, os troncos das árvores são metal muito escuro a furar o céu, e as parabólicas assentos de macaco, embondeiros dourados. De um dos lados desta meia montanha pode ver-se ainda um pequeno friso de betão cor-de-rosa. Nesse seu rosado dorso, janelinhas redondas vislumbram os restantes montículos de telha, as clarabóias, um ou outro guindaste, girafa de recto pescoço. Cheira a aço, betão, granito, lamento, dourado, doença. Por detrás dos outros telhados habita a parte invisível desta montanha, o seu sopé, a sua porteira, a sua rua enlameada a agarrar o chão pelos cornos. Mas desta parte do meu Inverno, dessa outra metade da montanha, ninguém quer saber, pois é sempre dos pontos mais altos que as criaturas mitológicas jogam um relâmpago ou uma lágrima.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

"O zoom é o que a masturbação é ao amor."

Serge Daney

domingo, 18 de fevereiro de 2018

Semelhanças



«Pediram que fizesse alterações. Estou nessa disposição, mas para eu fazer essas alterações, expor-me menos e ir menos ao Facebook, os sportinguistas terão de se mobilizar naquilo que é a militância. Não brinquem comigo e isto é fundamental perceberem. Só assim é que conseguiremos ultrapassar as barreiras que nos colocam na frente:

Ponto um: a partir de hoje não compraremos nem mais um jornal desportivo, assim como o Correio da Manhã. 

Ponto dois: não vejam nenhum canal português de televisão, além da Sporting TV. 

Ponto três: que todos os comentadores afetos ao Sporting abandonem de imediato os programas. Que nenhum sportinguista mais aceite participar e estar ao lado desses cartilheiros e paineleiros».


Bruno de Carvalho

[Mas sim ele é um grande presidente e um grande gestor e fez os sportinguistas voltar a querer saber das derrotas ao fim-de-semana. E sim, construiu um pavilhão. Viva.]

Se eu fosse...

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Ironia mui bela

Não deixa de ser de uma ironia mui bela que seja no clube dos condes e viscondes que assistamos a este fulgurante ensaio estalinista com pozinhos de discurso calimero-fidelcastrizante. E como me dizia um amigo, de ironia ainda mais bela é a resposta maioritária a tudo isto, no mais prosaico estilo salazarento: "pelo menos põe ordem na casa, e as finanças estão muito bem." 

Phantom Thread

Neste texto do Bernardo sobre Phantom Thread ele aborda a ideia de uma trilogia que avançava de Boogie Nights para There Will Be Blood e deste a The Master. Talvez os grandes cineastas também sejam isto, a capacidade de trilhar na sua obra múltiplos caminhos, como uma tapeçaria ongoing e pessoal. Digo isto porque, ao ver o último filme de Paul Thomas Anderson, não pude deixar de sentir nestas recorrências um retrato em múltiplas camadas  - como se cada filme fosse um plano pictórico, um detalhe, de um omniquadro de Hieronymus Bosch -, mas, ao mesmo tempo,  também um certo esgotamento. Como se o estilo, o quadro, fossem ainda o mesmo e saltassem à vista.


Creio que existe claramente uma separação entre os filmes-mosaico de Anderson (Boogie, Magnolia, Inherent) e aqueles onde o múltiplo devém uno e o discurso sobre a coincidência, a multiplicidade e a acumulação se torna mais afirmativo. Quiçá até dogmático. Nesta oposição, Phantom Thread tem uma forte relação com There Will Be Blood e The Master. No primeiro, PTA utiliza a metáfora da extração para falar do capitalismo e da concorrência americanas; no segundo o pilar espiritual como bóia de salvação do trauma das guerras. E o que dizer deste Reynolds Woodcock - pila de madeira - em confronto com a sua Alma?

Se é verdade que Boogie Nights, como disse o Bernardo, tem a mira apontada à questão da potência e liberdade sexual, aqui joga-se esta dualidade muito puritana do homem que quer trabalhar e a mulher que quer o amor. Contudo, se este pode ser um traço do homem americano - cujos valores desta "trilogia" seriam os do capitalismo concorrencial (There Will), da espiritualidade (The Master) e do trabalho (Phantom) -  também é verdade que Anderson vai mais longe. O trajecto de Alma passa pela evolução em que quer deixar de ser apenas "alma", ou musa inspiradora (na perspectiva de Reynolds, a mulher-manequim ou mulher-auxiliar), e passar a ser corpo. Corpo actuante, pensante, objecto e sujeito de desejo. E isto Anderson faz brincando um pouco com o estereotipo dos filmes góticos, das mulheres encerradas em mansões com "perfect strangers" como maridos controladores e tenebrosos (Rebecca, Spellbound, Gaslight, etc). E neste sentido, a personagem de Daniel Day Lewis é esse estereotipo do mestre trabalhador, disciplinado, com uma mulher que mais não é do que uma trave arquitectural (sem grande vida ou liberdade) do seu edifício ou projecto de vida.

Mas falava em esgotamento em relação a este seu último filme precisamente porque ao longe desta "trilogia" detecto um modo de operar que se sedimenta (cristaliza), e que passa por procurar um traço importante na cultura (no masculino) americana e trazê-la à tona, e de forma mais ou menos subtil, através de actores (Lewis, Phoenix) que tem o poder de afundar em si próprios a qualidade da "mensagem" do filme. E assim Phantom Thread até parece ser mais um veículo de Lewis do que outra coisa qualquer. Julgo que há qualquer coisa neste último filme de Anderson que se repete, que já foi feito em There Will Be Blood. Ao contrário do que se poderia definir como a aura dos grandes actores - expansiva, iluminadora - a de Daniel Day Lewis (e Phoenix substitui-o, até certa medida em The Master) é o inverso disso. Uma aura interior, que suga, como um buraco negro que nos pusesse em confronto com uma certa interioridade que Anderson vai aos poucos povoando das suas preocupações. E se na personagem que tinha em There Will, Daniel Plainview, essa interioridade ainda era uma novidade, aqui, em Reynolds Woodcock, já é, e acima de tudo, dispositivo.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018


sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Novo número da Aniki



Está cá fora mais um número da revista Aniki: Revista Portuguesa de Imagem em Movimento, desta vez com um dossier dedicado ao tema "Música e som no cinema". Vale a pena ler.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

The Shape of Water (2017) de Guillermo del Toro

Este romance e abracinho do plano abaixo parecem-lhe familiares? Pois não é para menos, já todos vivemos isto. Quem nunca sentiu os joelhos a tremelicar por um lagartixo?; quem nunca mirou de forma lasciva os húmidos bíceps de um aquaman/woman (vulgo nadador/a) salvador/a)?; ou quem nunca deu beijinhos, guelra com guelra, entre os tubos de um parque aquático da periferia? Bom, talvez as nossas memórias de Verão, caro leitor, não andem sincronizadas e assim não há possibilidade de pilotar este Jaeger da memorabilia em direcção ao planeta Del Toro. Mas não há mal maior, porque tenho a certeza que, pelo menos, já ouviu falar do filme de Jack Arnold, Creature from the Black Lagoon (O Monstro da Lagoa Negra, 1954), em que se caçava um "homem-guelra", um jeitoso anfíbio que a páginas tantas raptava uma jovem beldade e a levava para a sua gruta. Agora imagine: e se fosse a beldade a raptar a criatura, a bela a trazer o monstro direitinho para a sua banheira? Pois bem, The Shape of Water (A Forma da Água, 2017) é a história desse líquido amor.




De certa forma, pode dizer-se que parte da carreira de Guillermo Del Toro - os projectos mais pessoais, pelo menos - têm sido a resposta aos seus ímpetos de grande fan boy do cinema de género. El Labinto del fauno (O Labirinto do Fauno, 2006) era uma entrada de cabeça na toca do coelho do cinema fantástico; Pacific Rim (Batalha no Pacífico, 2013) brincava com monstros godzillescos e robots transformers; Crimson Peak (Crimson Peak: A Colina Vermelha, 2015) recriava-se no glamour gótico das casas assombradas e das velas de chama fantasmática. Agora é a vez da aura dos monstros da Universal dos anos 50 e os códigos daquilo que significa(va) ser monstruoso, numa América do pós-guerra.

Esta lista, embora não exaustiva já dá para perceber que o cinema de Toro se sente bem no papel da reescrita, do fazer o que foi feito, encontrando a nesga de espaço para a sua voz autoral. Como dizia, Shape of Water é uma história de amor líquida. Mais concretamente uma muda e um homossexual (com a ajuda de uma negra) que raptam uma criatura anfíbia de um laboratório secreto em pleno ambiente de guerra fria russo-americano. Quanto mais poderemos nós querer sobre o tema: "A Discriminação"? Segue-se empatia, comunicação não verbal, a muda apaixonada enche a banheira de sal e o amor consuma-se. Mas... ela tinha enchido a casa-de-banho de água e, nos eflúvios do prazer "inter-criatural", começa a pingar cá em baixo, exactamente na boca aberta do espectador adormecido na sala de um cinema, situado no rés-de-chão do prédio onde tudo acontece. Momento decisivo pois que literaliza aquilo que sucede de mais único no filme de del Toro. É a nostalgia pelo poder encantador do cinema (e da imagem televisiva) - quer seja, dando-nos pedaços de musicais de Alice Faye, das séries Bonanza ou Mr. Ed, quer quando a muda e o lagarto galã dançam apaixonadamente em momento Ginger Rogers/Fred Astaire - que, ao mesmo tempo que vai tecendo com minúcia uma América puritana, cheia de aspirações de grandeza e personagens ambiciosas e sinistras, vem também pingar no nosso imaginário, acordar-nos do pastelão e da seriedade.

Se Crimson Peak é o filme vermelho de De Toro, Shape é o seu filme verde. (Tudo é verde, das paredes da casa de Sally às tartes de lima que pintam a língua.) E se naquele era o ar e o vento (que enfunavam a cortina e apagavam a vela) os elementos centrais, aqui essa leveza é líquida e transbordante e assume múltiplas formas consoantes os recipientes que a contêm. O que quero dizer com isto é que The Shape of Water é um filme que, ao mesmo tempo que nos faz querer acreditar numa certa grandeza humana e familiar do poder maravilhoso do cinema, acena com o universo meloso de Splash (Splash, a Sereia, 1984), ou com o mundo de Jean Pierre Jeunet. A casa de Sally vem do espaço cartoonesco de Delicatessen (1991) e a própria personagem da muda tem algo de Amélie Poulain entristecida, ou se quiserem, de Bjork a cegar na fábrica de produtos líricos, marca von Trier. Sim, e já que estamos nisso, não era escândalo nenhum tomar a banda sonora de Alexandre Desplat pelo delicado Yann Tiersen. Mas claro, face a este delicodoce, o cineasta mexicano toma as suas distâncias de ironia, veja-se o plano das duas gotas de chuva no vidro de um autocarro, a dançar ao som de La Javanaise.

Relembremos: The Shape of Water venceu o Leão de Ouro de Veneza mas já tem à sua espera 13 hipóteses de levar para casa um óscar. Cinema de autor light? Romantismo mainstream? Esta obra de Del Toro temo bem que ilustre perfeitamente aquilo que se poderia designar como o "paradoxo pós-spielberguiano" que vamos vivendo. Talvez hoje se olhe para E.T. the Extra-Terrestrial (E.T. - O Extra-Terrestre, 1982) de uma forma irrequieta e contraditória: uma mão limpa uma lágrima pela partida do melhor amigo de Elliot, enquanto a outra empunha uma pistola para dar um tiro mesmo em cheio naquele alienígena que afinal não passa de um enorme cagalhão de borracha. A mesma coisa acontece de certa forma quando olhamos para a delicadeza low fi e a serenidade romântica deste underwater love. Por um lado, acreditamos (ainda) na humanidade do cinema bigger than life, mas por outro lado, os dedos dessa humanidade já estão pretos e apodrecem, como acontece com os de Michael Shannon. Cheiram mal e vão eventualmente cair. Ou ser arrancados.

[Reparo agora que del Toro anunciou para breve uma versão de Pinóquio. O que me pergunto é: quanto mais tempo, quantos mais filmes aguentará ele nesta corda bamba entre esta ingenuidade encantada e o cinismo, sem cair nos abismos do tim burtianismo ou do spielberguianismo puro e duro. É que creio, se e quando isso acontecer, de lá não mais poderá sair, dessas profundezas de pura superfície.]