Em 2001, o realizador Manoel de Oliveira, quase quinze anos antes da sua morte, filmou Michel Picolli em Je rentre à la maison (Vou Para Casa, 2001). Este representava uma espécie de alter ego do autor que percebia, perante a súbita morte da sua família e às custas de uma estranha adaptação de Ulysses de James Joyce, que havia uma mudança (um “regresso”) na sua vida a que tinha de atender. Quinze anos depois do filme de Oliveira, Almodóvar filma em Julieta (Julieta, 2016) o seu “regresso a casa”, também apoiando-se em Ulisses, desta vez a personagem de Homero.
Importa clarificar o paralelismo. Se “regressar a casa” recorrentemente funciona como moribunda metáfora para morte ou mesmo para marcar um regresso às raízes do seu cinema, o mesmo não se passa aqui. A exausta Julieta (Emma Suárez) é uma personagem habitada/julgada pelo desaparecimento. Vemo-la inicialmente a encaixotar livros e outros pertences para uma “saída de casa”, uma ida planeada de Madrid para Portugal com o seu companheiro Lorenzo (Darío Grandinetti). Nesta “ilha de Calipso” que reconstruiu para si, os livros, os filmes, os quadros (Sakamoto, Duras, Lucien Freud) fazem parte de um muro erguido contra a lembrança da sua desaparecida Penélope. Mas depois de doze anos de ausência, Julieta, ao ouvir falar novamente da sua filha Antía, terá de “regressar a casa”, uma Ítaca imaginária, no qual o presente terá finalmente de encarar os destinos trágicos do passado.
Se tudo isto parece um tanto genérico é precisamente porque Almodóvar não quer afinal filmar a consumação de nenhuma casa específica, nem sequer de um regresso. Julieta, baseado em contos da escritora Alice Munro, é um filme alicerçado, como toda a sua obra, de depuração em depuração, numa poética do desaparecimento. O passado é uma máquina de devorar presenças, as personagens limitam-se a reagir, como podem, à fuga, ao coma, à doença, à traição, à morte dos outros. São todos habitantes-amantes-passageiros dos quais o realizador se limita a extrair uma imagem da vida como descoincidência e de uma melancolia que, à falta de melhor, tudo liga.
Mas como sabemos nem sempre assim foi. A movida almodovariana dos seus primeiros filmes – aqui evocada nas cores marítimas de uma Julieta jovem e muito pintada (Adriana Ugarte) e de um pescador demasiado belo (Daniel Grao) – foi como que sendo abafada pelos sinais da tragédia. Das comédias passamos aos dramas mas ainda de forte intensidade, de música que explode o sentimento das perdas e dos desencontros. Aqui essa evolução (ia escrever oposição, mas não me parece que seja o caso) é esboçada pelo desdobramento das duas Julietas. A Julieta jovem que se apaixona sobre o signo do desaparecimento misterioso (um velho passageiro que se evapora numa viagem de comboio, numa noite de neves e renas) e de um cenário hitchcockiano, Rebecciano. E a Julieta adulta, aprisionada pelo exílio emocional que as desmesuras do passado lhe trouxeram.
A passagem do tempo mostra Julieta como um filme/personagem que simboliza a descoincidência do cinema em Almodóvar. Um cinema que perdeu os seus fetiches, mas também as suas lágrimas inspiradoras e que se depura a um ponto que recusa qualquer excepcionalidade. As cores fortes de Almodóvar parecem então separar-se da ousadia e afirmar-se por si além do histrionismo das histórias (e quem diz as cores, diz os corpos). Mas também a narrativa parece perder o fulgor das grandes tragédias. Por paradoxal que pareça, talvez por isso Julieta possa afinal habitar finalmente a verdadeira tragédia. E passar, à primeira vista, como o mais banal dos filmes do espanhol, escondendo em si toda uma subtil riqueza. Uma riqueza e profundidade tornadas invisíveis por um extraordinário pensamento sobre a desaparição.
E assim Julieta é um sereno desfiar contra o desespero, feito de caixotes frágeis, de cartas escritas como armas de defesa e percursos narrativos já traçados. Um lento caminhar para casa, uma casa que já nem paredes tem. Alicerçada apenas naquilo que se sente e cujo rosto e contorno já Julieta não recorda e que Almodóvar esboroou.