terça-feira, 27 de setembro de 2016

Julieta (2016) de Pedro Almodóvar

Em 2001, o realizador Manoel de Oliveira, quase quinze anos antes da sua morte, filmou Michel Picolli em Je rentre à la maison (Vou Para Casa, 2001). Este representava uma espécie de alter ego do autor que percebia, perante a súbita morte da sua família e às custas de uma estranha adaptação de Ulysses de James Joyce, que havia uma mudança (um “regresso”) na sua vida a que tinha de atender. Quinze anos depois do filme de Oliveira, Almodóvar filma em Julieta (Julieta, 2016) o seu “regresso a casa”, também apoiando-se em Ulisses, desta vez a personagem de Homero.
Importa clarificar o paralelismo. Se “regressar a casa” recorrentemente funciona como moribunda metáfora para morte ou mesmo para marcar um regresso às raízes do seu cinema, o mesmo não se passa aqui. A exausta Julieta (Emma Suárez) é uma personagem habitada/julgada pelo desaparecimento. Vemo-la inicialmente a encaixotar livros e outros pertences para uma “saída de casa”, uma ida planeada de Madrid para Portugal com o seu companheiro Lorenzo (Darío Grandinetti). Nesta “ilha de Calipso” que reconstruiu para si, os livros, os filmes, os quadros (Sakamoto, Duras, Lucien Freud) fazem parte de um muro erguido contra a lembrança da sua desaparecida Penélope. Mas depois de doze anos de ausência, Julieta, ao ouvir falar novamente da sua filha Antía, terá de “regressar a casa”, uma Ítaca imaginária, no qual o presente terá finalmente de encarar os destinos trágicos do passado.
Se tudo isto parece um tanto genérico é precisamente porque Almodóvar não quer afinal filmar a consumação de nenhuma casa específica, nem sequer de um regresso. Julieta, baseado em contos da escritora Alice Munro, é um filme alicerçado, como toda a sua obra, de depuração em depuração, numa poética do desaparecimento. O passado é uma máquina de devorar presenças, as personagens limitam-se a reagir, como podem, à fuga, ao coma, à doença, à traição, à morte dos outros. São todos habitantes-amantes-passageiros dos quais o realizador se limita a  extrair uma imagem da vida como descoincidência e de uma melancolia que, à falta de melhor, tudo liga.
Mas como sabemos nem sempre assim foi. A movida almodovariana dos seus primeiros filmes – aqui evocada nas cores marítimas de uma Julieta jovem e muito pintada (Adriana Ugarte) e de um pescador demasiado belo (Daniel Grao) – foi como que sendo abafada pelos sinais da tragédia. Das comédias passamos aos dramas mas ainda de forte intensidade, de música que explode o sentimento das perdas e dos desencontros. Aqui essa evolução (ia escrever oposição, mas não me parece que seja o caso) é esboçada pelo desdobramento das duas Julietas. A Julieta jovem que se apaixona sobre o signo do desaparecimento misterioso (um velho passageiro que se evapora numa viagem de comboio, numa noite de neves e renas) e de um cenário hitchcockiano, Rebecciano. E a Julieta adulta, aprisionada pelo exílio emocional que as desmesuras do passado lhe trouxeram.
A passagem do tempo mostra Julieta como um filme/personagem que simboliza a descoincidência do cinema em Almodóvar. Um cinema que perdeu os seus fetiches, mas também as suas lágrimas inspiradoras e que se depura a um ponto que recusa qualquer excepcionalidade. As cores fortes de Almodóvar parecem então separar-se da ousadia e afirmar-se por si além do histrionismo das histórias (e quem diz as cores, diz os corpos). Mas também a narrativa parece perder o fulgor das grandes tragédias. Por paradoxal que pareça, talvez por isso Julieta possa afinal habitar finalmente a verdadeira tragédia. E passar, à primeira vista, como o mais banal dos filmes do espanhol, escondendo em si toda uma subtil riqueza. Uma riqueza e profundidade tornadas invisíveis por um extraordinário pensamento sobre a desaparição.
E assim Julieta é um sereno desfiar contra o desespero, feito de caixotes frágeis, de cartas escritas como armas de defesa e percursos narrativos já traçados. Um lento caminhar para casa, uma casa que já nem paredes tem.  Alicerçada apenas naquilo que se sente e cujo rosto e contorno já Julieta não recorda e que Almodóvar esboroou.

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Ghostbusters (2016): fantasmas do passado II


Em 1984, quando surgiu Ghostbusters havia pelo menos duas ideias que eram inovadoras. Os efeitos especiais já permitiam então criar fantasmas que esvoaçavam pela cidade como gomas coloridas e estes podiam ser caçados como coelhos numa lógica de buddy movie. Trinta anos depois, metade das personagens de Hollywood já são, por princípio, essas tais gomas coloridas e a caçada exportou-se para as ruas, desta vez, sob a forma de apetitosos e igualmente vazios pokémons. Assim sendo, que sentido terá refazer hoje o original de Ivan Reitman? Algumas cenas icónicas recriam-se para acender o coração dos saudosistas e o elenco vira ao feminino, pormenor "político" inane dos tempos em que vivemos. E que mais? Os fantasmas esses já não espantam e por isso só podem devir para o espectador cores abstractas e vivas como num quadro de Pollock. Já o argumento e caçadores de carne e osso espectralizam-se, sendo que as piadas que disparam têm apenas como finalidade adiar o fim do filme, que ameaça prolongar-se numa espécie de transe superficial sem progressão. Tudo é, em resumo, muito chato e muito "antigo" (no pior sentido do termo) e o espectador sente que é ele o alvo daquelas maquinetas que permitem encapsular os espíritos, apanhado (busted) que é na lógica do facilitismo com que hoje o remake se faz. O original tinha uma hora e quarenta e cinco, o remake "apenas" mais dez minutos. Esse insuflar temporal é claramente um caso de "more is less". Mas mais. Ele demonstra que o cinema é hoje um privilegiado campo de retórica, como um interminável discurso político que aborrece, e que nos pede à força para acreditar nesse pobre simulacro (o cinema torna-se simulacro de um simulacro, degradando-se) em que, em parte, se tornou.

terça-feira, 13 de setembro de 2016


Para quem viu "The Shallows" de Jaume Collet-Serra: lembram-se daquele momento em que Blake Lively coloca o seu parceiro na luta pela sobrevivência - a gaivota baptizada de Steven Seagal - num bocado de prancha de surf e o deixa a boiar na água, antes de nadar em direcção à bóia de sinalização? Pois bem, nesse momento pensei cá para mim que se tivesse de sacrificar uma das duas "personagens", não hesitaria na escolha. É que a uma eu já sabia o que lhe ia suceder. Por esta ordem: salvar-se, acabar o curso de medicina, pôr mais uma tatuagem ou um anel nos dedos e chatear até à morte um homem qualquer. Já o Steven: que dizer? Voltará a voar? Cuidará de vez daquela asa estragada? Conhecerá os ares de outro país? Será devorado pelo obsessivo tubarão? Tirando esta bricolage de espectador entediado, o argumento de "Shallows" é isso: raso e superficial. Mas depois, a imagem também ela é agradavelmente superficial. Superfície onde o cinema joga a batalha da sua sobrevivência, inserindo mensagens de telemóvel, fotografias, cronómetros, etc. Mesmo assim, o genérico final com os planos da água é o que de melhor se vê, num filme de um cineasta que nem desgosto.

sábado, 10 de setembro de 2016

Don’t Breathe


Em 2009, o uruguaio Fede Alvarez chamou a atenção no youtube com este micro Independence Day sobre as ruas de Montevideo. Com um bilhete postal de tão elevado grau de destruição era mais do que previsível que qualquer experiência nos Estados Unidos viesse a ser na área da ficção científica. Em vez disso fizeram-lhe uma proposta que não pôde recusar, um remake do “sagrado”The Evil Dead (A Noite dos Mortos-Vivos, 1981), apadrinhado pelos “santos” criadores Sam Raimi e Bruce Campbell eles próprios. Tal como aconteceu com o salto do francês Alexandre Aja, que veio a fazer um remake do clássico de Wes Craven, The Hill Have Eyes (Os Olhos da Montanha, 1977), a estratégia era a mesma: pegar num filme fetiche do jovem e perceber como podia ele retocá-lo, sem perder a narrativa de base que o sustinha. Quer no caso de Aja, quer no de Alvarez, o resultado foi um endurecimento do material em mãos, embora neste último a ligeira ironia do original se tivesse transformado num verdadeiro baile de sangue e facas eléctricas, como se alguém tivesse deixado à solta um “Minnelli maléfico”.

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terça-feira, 6 de setembro de 2016

Cartas da Guerra (2016) de Ivo M. Ferreira


Num artigo encontrado na internet sobre o livro D'Este Viver Aqui Neste Papel Descripto, que compila cartas que António Lobo Antunes enviou à primeira mulher durante a sua estadia em Angola durante a guerra colonial, e que serve de material de base à terceira longa-metragem ficcional de Ivo M. Ferreira, o escritor revela: "O que sinto perante aquelas cartas é muita ambivalência"(...) nunca pensei publicá-las e não sei se têm valor literário, porque onde jogo a vida é nos livros que agora escrevo. Mas quem sabe sirva para que as pessoas compreendam o horror da guerra e a destruição de uma geração." Nestas palavras parece já ensaiar-se o dilema que o realizador se colocou (e com ele o espectador): se é certo que a intimidade não deve ser por norma objecto de violação, também é verdade que a guerra colonial essa, para ser finalmente compreendida e exorcizada, só o pode ser a golpes de violenta intimidade.

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segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Entrevista a Girish Shambu

Fiz há uns meses uma entrevista, em colaboração com o Luís Mendonça, ao cinéfilo Girish Shambu.

Girish Shambu: “a cultura cinéfila precisa de ser mais transpessoal e transindividualista”

domingo, 4 de setembro de 2016

Criatura

Chega cá criatura,
E repousa neste paradoxo de algodão.
Diz-me: como é suave a contradição?
Habita essa casa que ora aproxima, ora afasta
Cria-dura, e conta-me:
É duro tudo o que dura?

Sabes bem que o que abriga esconde
E o que esconde prende.
Mas criatura, fura.
Vive além da existência pura.
Para lá dessa morada onde
o ar da certeza jaz e cura.

Eis-te de patas à beira-mar,
E ao longe, aceso o contra-senso.
Um paradoxo parad’osso 
que mói a consciência e afina a solidão.
Mas criatura, jura. Vive além do que
repele e repuxa, do enigma que mura.

Ou então, ao menos, vai-te criatura!
Sai para a rua! Respira esse aço paradoxal!
E sê antes
cria-tua.

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

S-i-m-p-l-i-f-i-q-u-e-m-o-s.
Acordas com o olho no centro exacto de um diamante
E não compreendes logo qual é a cor que toma a felicidade.
Tudo parece estar no sítio devido:
-as formigas são as empreendedoras,
-as flores voltam-se para o sol,
-e a água é feita de cristalinas e ágeis borboletas.

No interior desta casa de cristal
tudo reluz de uma adormecida lucidez.
Alerta, percorres todas as ruas que encontras
em busca de um sinal de saída.
Oferecem-te uvas douradas, palavras de
prata, assentos acolchoados e umas
vestes à prova de dignidade.
Há quem diga que uma vez foi possível
ver o céu de lá de dentro.
Ninguém o segurava e caía apenas sobre
a tarde, caleidoscópica e abissal.

Simplifiquemos.
O diamante acorda no exacto centro do olho...