Se nos deixarmos entusiasmar pela algo moribunda semiótica então é no entumescido corpo de Michael Moore que pode começar a desenhar-se o paradoxo do seu cinema. Se de um lado ele é a encarnação dos excessos (alimentares e outros) do sistema norte-americano, do outro não deixa de ser também aquele que procura denunciar, muitas vezes, a todo o custo, o sistema que ideologicamente o “alimenta”, a si e ao seu povo. Transposto para miúdos (para continuar no vocabulário alimentar), pode dizer-se que esse paradoxo do “corpo pesado e da alma leve” é, figurativamente, o dilema dos seus documentários. Por um lado, ele manipula com mão pesada os intervenientes dos seus filmes, as informações para chegar aonde precisa. Por outro lado, a sua intenção, pode dizer-se, é a de atingir as mentes, e, nesse particular, da finura estética versusgrossa eficácia política, o argumento com que se tem defendido os seus filmes é este: para quem é basta. Ou seja, para quem são sobretudo destinados os seus filmes (a massa norte-americana) é preciso ser, propositadamente, muito óbvio e simplista, astuto – numa palavra, massificador – , para poder abanar umas quantas consciências.
Neste seu último filme, seis anos já desde Capitalism: A Love Story (Capitalismo: Uma História de Amor, 2009), a premissa não deixa de ter a sua graça. Como os Estados-Unidos perderam todas as guerras em que se envolveram desde a 2ª Guerra Mundial, Moore, perfeito duplo humano de Peter Griffin da série Family Guy, vai por esse mundo, de bandeira em punho, “invadir” pacificamente outros países em busca de ideias brilhantes para importar para o seu país. Nessa cruzada, o realizador passa por países como Islândia, França, Finlândia, Itália, Portugal, entre outros, deixando-se seduzir pelo “maravilhoso paraíso” que estas nações encerram, nomeadamente, ao nível das políticas de educação, descriminalização das drogas, períodos de férias, sistemas prisionais, gastronomias saudáveis para as crianças ou a valorização do papel das mulheres em algumas sociedades.
Depois, o argumento é, uma vez mais, muito simples (ou demasiado simples): se eles vivem tão bem, porque é que nós não aplicamos estas medidas em nossa casa? Mas vale a pena continuar a falar de invasão para perceber a totalidade de Where to Invade Next (E Agora Invadimos o Quê?, 2015). Este é um documentário que, ao contrário dos seus anteriores, faz esse interessante gesto de olhar de dentro para fora. Essa viagem fez-me lembrar alguns dos filmes mais recentes de Wiseman – National Gallery (2014), La danse (2011), Crazy Horse (2011); o primeiro em Londres, os outros dois em Paris – e em boa hora, pois se Moore é o anti-Wiseman, é ainda de invasões que falamos quando definimos o cinema do maior documentarista americano.
As invasões de Wiseman são silenciosas e invisíveis, isto é, ao contrário de Where to Invade Next, não procuram invadir, em primeiro lugar, o lugar de liberdade do espectador. Desta forma, a instituição invadida apresenta-se na medida em que se denuncia a si própria. Com Moore, estamos ante um combate de propagandas. A propaganda do regime capitalista onde o realizador vive deve ser combatida com uma contra-propaganda, igualmente eficaz. Disso resulta uma oposição interessante:Where to Invade Next funciona, à primeira vista, como uma indistinta carta de amor ao Outro exótico, genericamente sempre melhor do que nós. Estratégia imediatamente oposta (e por isso tão próxima) à postura muito difundida do americano médio no resto do mundo: ignorante, apressado e prepotente.
Escrevo estratégias à primeira vista opostas por uma simples razão. É que, se a dimensão manipuladora de Moore é um traço visível do seu programa cinematográfico, neste filme – talvez nós, enquanto europeus, o detectemos melhor pois estão a falar de nós – essa manipulação atinge um grau ainda mais forte. Basta ver o segmento passado em Portugal para perceber como os polícias retratados estão a dizer coisas que não lhes surgiram originariamente no pensamento. Desta forma, a mão de Moore só secundariamente elogia o Outro, ela procura, como o tal americano apressado e prepotente, construir um argumento e rápido, no matter what. Nem que para isso todas as idiossincracias do velho continente sejam colocadas no mesmo bolo do bem estar, superioridade e inteligência. Mas será mesmo assim tudo tão bom? Talvez nem tanto, mas o que interessa é arrumar a casa, “usando”, invadindo os outros.
Dito isto, a mistura que Moore utiliza, entre a sátira e a propaganda, é cinematograficamente também ela muito eficaz, deixando o espectador algo desprotegido, violado, entre o humor e o horror. Essa intensidade é o melhor de Where to Invade Next, que nos seus últimos minutos se deixa resvalar do seu simplismo divertido para uma lamechice impossível que envolve “yes, we can” face a futuros muros de Berlim e sapatinhos e regressos a Kansas como em The Wizard of Oz(O Feiticeiro de Oz, 1939).
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