sábado, 25 de junho de 2016

Encher o balão

Há um momento em "Morte a Crédito" de Céline em que Ferdinand, o seu protagonista, vai com a esposa do seu genial mentor-mentiroso Roger-Marin Courtial des Péreires ao antigo escritório deste, agora em ruínas, para tentar salvar os últimos pertences antes de rumarem ao campo e a um "esplendoroso futuro". A senhora, que sempre tinha dado na cabeça ao marido por não cuidar o suficiente do seu zélé, o seu balão, no qual fazia ascensões para todo o mundo contemplar, lá o desencanta. Todo roto num dos cantos do escritório, quer, a toda a força, carregar com ele para o novo mundo que os aguarda.

No mês passado, em período de mudança de casa, fui eu que, laboriosamente, construí, dia-a-dia, a ruína em que se ia transformando a minha antiga moradia. A cada viagem, o meu antigo Ramalhete olhava os antigos donos no crescente esplendor do seu vazio. Desenchíamos cada canto, furtando as outrora alegres paredes dos seus objectos, das suas memórias. A pouco e pouco, a sala, o quarto, a cozinha foram sendo habitados pelo vazio, pela mudez. A mudança afinal não é de coisas, é de memórias. Lembranças que dançam, pairam entre as paredes e que se transferem agarradas a um prato, a um quadro, a uma roupa gasta ou a uma bola de cotão. 

Viajar entre a casa antiga e a cada nova é dizer adeus e olá no espaço de pouco momentos. Dilacera. Entusiasma. Questiona. Entro na nova casa com tudo o que é meu, mas serei eu ainda naquelas coisas que eram minhas? Neste espaço com outro vento, ruas inclinadas, rostos diferentes e por ler dos vizinhos. Enche-se o balão, como medo de encontrar remendos. E vemos toda a mesma preocupação na cara dos nossos. Esses pouco mudam pois são, de facto, a nossa casa: aquela que resiste a mudanças, a caixotes sentimentais. Mas a nova casa olha-nos, de expressão carregada, desconfiada, que alguém venha perturbar o seu silêncio, a sua orgulhosa solidão de balão vazio.

Aos poucos, todos os dias, conversamos um pouco mais com a casa nova. O balão enche-se, sem dar por isso, ganha forma. O "sombrio casarão de paredes severas" recebe as nossas coisas por simpatia, pois é a nós que quer ouvir contar quem fomos. Para nos ajudar com a trouxa amarrada ao de leve que é a existência que sempre trazemos como mendigos, por aqui e por acolá. Lembro-me de pôr as bananas na fruteira nova, de sentir o liso das paredes na testa carregando qualquer coisa volumosa, de esculpir a sala com a pesada poesia das nossas traquitanas. Tudo a nova casa recebeu de bom grado, desejosa que deixássemos de a tratar como nova. A antiga casa ficou lá à espera de se tornar nova outra vez. As memórias vieram connosco e era o que pesava mais. 

A senhora Des Pereires tinha razão em querer levar o balão consigo, apesar de usado, destroçado, desfeito. Nas mudanças não interessa se cidade se campo, se rico se pobre. O que importa é força nos pulmões para soprar.

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