O desafio colocado pelo digital é a aprendizagem do uso da matemática com o objectivo de atingir a inexactidão.
segunda-feira, 27 de junho de 2016
sábado, 25 de junho de 2016
Encher o balão
Há um momento em "Morte a Crédito" de Céline em que Ferdinand, o seu protagonista, vai com a esposa do seu genial mentor-mentiroso Roger-Marin Courtial des Péreires ao antigo escritório deste, agora em ruínas, para tentar salvar os últimos pertences antes de rumarem ao campo e a um "esplendoroso futuro". A senhora, que sempre tinha dado na cabeça ao marido por não cuidar o suficiente do seu zélé, o seu balão, no qual fazia ascensões para todo o mundo contemplar, lá o desencanta. Todo roto num dos cantos do escritório, quer, a toda a força, carregar com ele para o novo mundo que os aguarda.
No mês passado, em período de mudança de casa, fui eu que, laboriosamente, construí, dia-a-dia, a ruína em que se ia transformando a minha antiga moradia. A cada viagem, o meu antigo Ramalhete olhava os antigos donos no crescente esplendor do seu vazio. Desenchíamos cada canto, furtando as outrora alegres paredes dos seus objectos, das suas memórias. A pouco e pouco, a sala, o quarto, a cozinha foram sendo habitados pelo vazio, pela mudez. A mudança afinal não é de coisas, é de memórias. Lembranças que dançam, pairam entre as paredes e que se transferem agarradas a um prato, a um quadro, a uma roupa gasta ou a uma bola de cotão.
Viajar entre a casa antiga e a cada nova é dizer adeus e olá no espaço de pouco momentos. Dilacera. Entusiasma. Questiona. Entro na nova casa com tudo o que é meu, mas serei eu ainda naquelas coisas que eram minhas? Neste espaço com outro vento, ruas inclinadas, rostos diferentes e por ler dos vizinhos. Enche-se o balão, como medo de encontrar remendos. E vemos toda a mesma preocupação na cara dos nossos. Esses pouco mudam pois são, de facto, a nossa casa: aquela que resiste a mudanças, a caixotes sentimentais. Mas a nova casa olha-nos, de expressão carregada, desconfiada, que alguém venha perturbar o seu silêncio, a sua orgulhosa solidão de balão vazio.
Aos poucos, todos os dias, conversamos um pouco mais com a casa nova. O balão enche-se, sem dar por isso, ganha forma. O "sombrio casarão de paredes severas" recebe as nossas coisas por simpatia, pois é a nós que quer ouvir contar quem fomos. Para nos ajudar com a trouxa amarrada ao de leve que é a existência que sempre trazemos como mendigos, por aqui e por acolá. Lembro-me de pôr as bananas na fruteira nova, de sentir o liso das paredes na testa carregando qualquer coisa volumosa, de esculpir a sala com a pesada poesia das nossas traquitanas. Tudo a nova casa recebeu de bom grado, desejosa que deixássemos de a tratar como nova. A antiga casa ficou lá à espera de se tornar nova outra vez. As memórias vieram connosco e era o que pesava mais.
A senhora Des Pereires tinha razão em querer levar o balão consigo, apesar de usado, destroçado, desfeito. Nas mudanças não interessa se cidade se campo, se rico se pobre. O que importa é força nos pulmões para soprar.
quinta-feira, 23 de junho de 2016
Conversas recentes
Duas conversas em que participei. Uma já mais antiga, como moderador da Lisbon Talk sobre a obra de Paul Verhoeven, com a presença de Luís Miguel Oliveira, Vasco Câmara e Vasco Baptista Marques. A outra com Luis Mendonça e Ricardo Vieira Lisboa sobre La Academia de las Musas, de José Luis Guérin, na já habitual rubrica do À pala de Walsh, Filme Falado. Enjoy.
Pensamento gorduroso
Quando por algum motivo a meio da noite desperto, e as minhas inquietações
não me deixam retomar o sono, penso que posso ser uma pequena nódoa de gordura
na toalha de mesa da humanidade mas mesmo assim estou vivo. Ou creio que estou.
Depois disto deixo-me envolver nos braços acolchoados da insónia, confortável,
sujo.
sexta-feira, 17 de junho de 2016
Where to Invade Next (2015) de Michael Moore
Se nos deixarmos entusiasmar pela algo moribunda semiótica então é no entumescido corpo de Michael Moore que pode começar a desenhar-se o paradoxo do seu cinema. Se de um lado ele é a encarnação dos excessos (alimentares e outros) do sistema norte-americano, do outro não deixa de ser também aquele que procura denunciar, muitas vezes, a todo o custo, o sistema que ideologicamente o “alimenta”, a si e ao seu povo. Transposto para miúdos (para continuar no vocabulário alimentar), pode dizer-se que esse paradoxo do “corpo pesado e da alma leve” é, figurativamente, o dilema dos seus documentários. Por um lado, ele manipula com mão pesada os intervenientes dos seus filmes, as informações para chegar aonde precisa. Por outro lado, a sua intenção, pode dizer-se, é a de atingir as mentes, e, nesse particular, da finura estética versusgrossa eficácia política, o argumento com que se tem defendido os seus filmes é este: para quem é basta. Ou seja, para quem são sobretudo destinados os seus filmes (a massa norte-americana) é preciso ser, propositadamente, muito óbvio e simplista, astuto – numa palavra, massificador – , para poder abanar umas quantas consciências.
Neste seu último filme, seis anos já desde Capitalism: A Love Story (Capitalismo: Uma História de Amor, 2009), a premissa não deixa de ter a sua graça. Como os Estados-Unidos perderam todas as guerras em que se envolveram desde a 2ª Guerra Mundial, Moore, perfeito duplo humano de Peter Griffin da série Family Guy, vai por esse mundo, de bandeira em punho, “invadir” pacificamente outros países em busca de ideias brilhantes para importar para o seu país. Nessa cruzada, o realizador passa por países como Islândia, França, Finlândia, Itália, Portugal, entre outros, deixando-se seduzir pelo “maravilhoso paraíso” que estas nações encerram, nomeadamente, ao nível das políticas de educação, descriminalização das drogas, períodos de férias, sistemas prisionais, gastronomias saudáveis para as crianças ou a valorização do papel das mulheres em algumas sociedades.
Depois, o argumento é, uma vez mais, muito simples (ou demasiado simples): se eles vivem tão bem, porque é que nós não aplicamos estas medidas em nossa casa? Mas vale a pena continuar a falar de invasão para perceber a totalidade de Where to Invade Next (E Agora Invadimos o Quê?, 2015). Este é um documentário que, ao contrário dos seus anteriores, faz esse interessante gesto de olhar de dentro para fora. Essa viagem fez-me lembrar alguns dos filmes mais recentes de Wiseman – National Gallery (2014), La danse (2011), Crazy Horse (2011); o primeiro em Londres, os outros dois em Paris – e em boa hora, pois se Moore é o anti-Wiseman, é ainda de invasões que falamos quando definimos o cinema do maior documentarista americano.
As invasões de Wiseman são silenciosas e invisíveis, isto é, ao contrário de Where to Invade Next, não procuram invadir, em primeiro lugar, o lugar de liberdade do espectador. Desta forma, a instituição invadida apresenta-se na medida em que se denuncia a si própria. Com Moore, estamos ante um combate de propagandas. A propaganda do regime capitalista onde o realizador vive deve ser combatida com uma contra-propaganda, igualmente eficaz. Disso resulta uma oposição interessante:Where to Invade Next funciona, à primeira vista, como uma indistinta carta de amor ao Outro exótico, genericamente sempre melhor do que nós. Estratégia imediatamente oposta (e por isso tão próxima) à postura muito difundida do americano médio no resto do mundo: ignorante, apressado e prepotente.
Escrevo estratégias à primeira vista opostas por uma simples razão. É que, se a dimensão manipuladora de Moore é um traço visível do seu programa cinematográfico, neste filme – talvez nós, enquanto europeus, o detectemos melhor pois estão a falar de nós – essa manipulação atinge um grau ainda mais forte. Basta ver o segmento passado em Portugal para perceber como os polícias retratados estão a dizer coisas que não lhes surgiram originariamente no pensamento. Desta forma, a mão de Moore só secundariamente elogia o Outro, ela procura, como o tal americano apressado e prepotente, construir um argumento e rápido, no matter what. Nem que para isso todas as idiossincracias do velho continente sejam colocadas no mesmo bolo do bem estar, superioridade e inteligência. Mas será mesmo assim tudo tão bom? Talvez nem tanto, mas o que interessa é arrumar a casa, “usando”, invadindo os outros.
Dito isto, a mistura que Moore utiliza, entre a sátira e a propaganda, é cinematograficamente também ela muito eficaz, deixando o espectador algo desprotegido, violado, entre o humor e o horror. Essa intensidade é o melhor de Where to Invade Next, que nos seus últimos minutos se deixa resvalar do seu simplismo divertido para uma lamechice impossível que envolve “yes, we can” face a futuros muros de Berlim e sapatinhos e regressos a Kansas como em The Wizard of Oz(O Feiticeiro de Oz, 1939).
terça-feira, 14 de junho de 2016
Últimos textos e conversas
Textos recentes: a minha crítica ao novo filme de Werner Herzog "Queen of the Desert" e uma recensão crítica, na revista Interact, ao livro de Girish Shambu "The New Cinephilia".
Participo ainda nesta conversa sobre Lucio Fulci com o Luís Mendonça, João Lameira e o nosso convidado, Vasco T. Menezes.
Céline e os cactos
O prazer que retiro de ler “Morte a Crédito” de Céline é o mesmo de vasculhar um cacto de 530 páginas à procura dos lugares estratégicos onde nele foram colocadas as flores. Cacto não por causa da secura (longe disso), mas sim devido aos seus espinhos, entenda-se. É que a escrita do francês – cheia de terrores, humores, vapores – procura dar um retrato da pobreza, do “assim é que isto é”, sem pudores ou almofadinhas para leitor deleitar. E nós vamos com Ferdinand sem problemas. A genialidade de Céline consiste contudo em não brincar às oposições: de um lado a dureza da realidade e do outro a softness do romantismo burguês. É que essas tais “flores de cacto” não surgem apenas no catarse final. Elas crescem semeadas geometricamente ao longo do livro, mostrando que um morto a crédito ou um cadáver adiado que procria cresce invisivelmente, a golpes de balão meio-furado que, sem darmos por isso, se eleva ainda no ar. [Já voltarei à questão do balão no próximo post]
domingo, 12 de junho de 2016
Peixes com fominha
Conhece-se a célebre lenda da morte de Osíris: ardilosamente encerrado num cofre à sua medida, reencontrado após inúmeras peripécias por sua mulher, Isis, quando seu cadáver foi despedaçado e depois disperso em catorze pedaços; Isis os reencontrou todos, à excepção do fálus, engolido por um peixe oxirinco.
quarta-feira, 8 de junho de 2016
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