sábado, 4 de abril de 2015

Manoel

Foi no ano de 2008, aquando da minha breve passagem pela Cinemateca Portuguesa, que um certo jovem cineasta português se preparava para fazer 100 anos. Casa em peso organizada para prestar a homenagem mais do que merecida ao sr. cinema português, Manoel de Oliveira. Recordo um ou dois fins de tarde, na minha típica timidez, no gabinete do então director, João Bénard da Costa. Ele a fumar cigarros em cadeia, eu a medir todas as palavras e a Rita Azevedo Gomes a compor o trio. A tarefa, a mais importante que se podia imaginar: a revisão das provas do que viria a ser um dos mais belos catálogos editados pelo museu do cinema, Manoel de Oliveira 100 anos, livro que acompanharia o ciclo integral das suas obras até à data. Tão entretido estava a ler todas aquelas prosas sobre o mestre e outras tantas fotografias de uma vida tão preenchida que nem me apercebi que a data do início do ciclo estava a chegar. Nesse dia a Cinemateca enfeitou-se para receber Manoel de Oliveira. Lembro-me de que pela primeira vez me passou pela cabeça que, vindo ele para a estreia e tendo eu trabalhado no catálogo, devia aproveitar a oportunidade de lhe dirigir uma palavras. No corredor da entrada da Cinemateca apresentaram-mo e eu, aproveitando que ele mirava a exposição de fotografia que tinha sido montada para o evento, aproximei-me do seu ouvido, visto que já ouvia mal, e disse-lhe a coisa mais parva que podia ter dito a alguém a quem muito se admira. Foi qualquer coisa como “parabéns pelos seus filmes, é incrível, parece que as grandes obras, como é a caso da sua, em vez de envelhecerem, rejuvenescem”. Olhou para mim, meio surpreendido e disse-me que tinha razão, certamente mais por tacto do que por realmente concordar comigo.

Seja como for essa ideia do rejuvenescimento cerca-me agora que deixamos de ter Manoel de Oliveira. Dos primeiros planos de Douro, Faina Fluvial (1931), pateados pelo público de então, a O Velho do Restelo (2014), que a televisão nacional hoje exibe em jeito de homenagem, fica claro que além da profunda coerência de uma vida tornada cinema, os filmes de Oliveira irradiavam juventude. Juventude no sentido em que o seu mundo se lançava num diagnóstico social, cultural, espiritual, mágico, poético da cultura portuguesa que hoje é perfeitamente premónitório dos novos falsos quinto-impérios por vir. O estereótipo da populaça que o via como um cineasta velho, porque lento e demasiado complexo, longe de saber que falava de qualidades intrínsecas ao cinema, apenas evidenciava o que evidente era: Manoel de Oliveira era infinitamente superior ao público que para ele esteve disponível. Como com os grandes artistas, de resto. Ainda hoje é com uma certa mágoa que leio nas entrelinhas das múltiplas e merecidas homenagens que teve ao longo destes últimos anos a excitação pela curiosidade meio parva de que tínhamos o cineasta mais velho em actividade no planeta. Como se só a idade justificasse o posto. Nada de mais errado e imerecido. Manoel de Oliveira não se celebrava por ir a caminho dos 107, celebrava-se porque era um dos melhores cineastas do mundo. E era português.

Em todos nós, penso, houve um momento em que surgiu a ilusão de que Manoel de Oliveira nunca morreria. Talvez até nem ilusão seja porque, como dizia um amigo meu a propósito de outro vulto da cultura nacional que nos deixou há dias, Herberto Hélder: morreu aquele que não morrerá. Oliveira não morreu, o seu cinema fica, fica-nos.

E o mestre filmou até ao fim. Oliveira no final da sua vida duvidava se além do instinto que comanda o homem haveria algo mais que o responsabilizasse pelas suas acções. Se esse algo mais existe, resta agora estar à altura do mestre. E vê-lo, incansavelmente, apaixonadamente, até ao fim.

(para ler as homenagens do resto da equipa do À pala de Wlash, cliquem aqui.)

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