Num dos textos
mais conhecidos de Serge Daney, espécie de artigo confessional e
testamentário, o crítico francês que trouxe o sexy-intelectual de volta
com a sua boina, compara a aproximação da câmara no travelling de Kapò de Gillo Pontecorvo e o afastamento, o falso desleixe, da objectiva de Mizoguchi ao filmar a morte de Miyagi (59′) em Ugetsu Monogatari
(Contos da Lua Vaga, 1953). Se numa tínhamos a câmara a escarafunchar a
abjecção do espectáculo da morte nos campos de concentração, na outra
havia a sensação de que o realizador japonês filmava Miyagi (a gritar de
filho às costas e a ser apunhalada nos bosques), de forma velada, a
custo, com uma mão à frente dos olhos, numa lentidão impessoal e
respeituosa. Estas antónimas posições morais vieram-me à cabeça quando a
seguir ao título inicial deste filme de Naomi Kawase, um senhor velho e
barbudo (experiente, é o que se quer dizer) degola uma cabra em grande
plano. Sangue a rodos, o animal lá se fina, e ficamos com a primeira das
inquietantes imagens de um filme que também quer o espectador de
garganta aberta a todo o tempo. E pergunta-se: para onde foi a morte en passant
de que falava Daney, esse espécie de apaziguamento apudorado do cinema
japonês que mostrava a força das perdas em dois ou três discretos
planos?
Que não se pense que estou contra a violência animal (até estou) mas
aqui estou certamente contra o que ela significa: a importação que
Kawase faz de um certo olhar do cinema ocidental que filmou a ruralidade
tal como ela é, sem pruridos. Essa “contaminação ocidental” continua ao
longo de Futatsume no mado (A Quietude da Água, 2014),
como se pode ver pelo bilhete postal directamente extraído da Lagoa
Azul que ilustra este texto. Os dois jovens amantes, de virgindade
perdida e despidos de medo em relação ao futuro, nadam no azul do mar
que banha a ilha onde vivem. Na cena anterior tinham feito amor pela
primeira vez (ela já refeita da morte da sua mãe, xamã; e ele, já
refeito do choque de saber que tem uma mãe com vida sexual activa após o
divórcio do seu pai) no meio das árvores, com a luz a entrar na
objectiva de Kawase, a mostrar como a natureza pode ser bela segundo os
padrões de nosso senhor Malick. Ainda perfeitamente vendável é a ideia
de uma certa sensibilidade exótica oriental onde a morte é uma ida para
casa para sempre e os seres humanos são como ondas que vão e vêm.
Se o filme quer ser “de uma beleza
exuberante”, “intenso”, “belo” (e outras expressões que ficam tão bem na
capa dos dvds), raros são os momentos em que se dispensa a sofreguidão
de uma certa profundidade e se entra no terreno da intensa, exuberante,
bela… honestidade.
Curioso que se diga a certa altura que devemos confiar na natureza.
Kawase coloca isso na boca das suas personagens mas não é que o creia,
pois confunde transcendência e espiritualidade com constantes planos de
mar e vento (ora apaziguado, ora revolto) a dar nas árvores (lá está a
metáfora a levantar as suas patorras). Assim, a natureza aparece
“morta”, como automatismo, que quer ser o espelho de uma lágrima ou de
um sorriso. As personagens, que tenho dificuldade em decorar os nomes
pois parecem pairar inconsequentes pela história, são arquétipos do
crescimento e falam por soundbites (“o mar está tranquilo” ou
“para substituir o calor do corpo há o calor do coração”) entre momentos
graves de silêncio, e olham muito para cima, para o céu e para as
árvores, como que dando o sinal que para cima é que é o caminho (da
Graça).
Se o filme quer ser “de uma beleza exuberante”, “intenso”, “belo” (e
outras expressões que ficam tão bem na capa dos dvds), raros são os
momentos em que se dispensa a sofreguidão de uma certa profundidade e se
entra no terreno da intensa, exuberante, bela… honestidade. E quando lá
estamos é porque o filme parece querer comentar-se a ele próprio. Como
logo no título inicial, quando surgem entre-cortados planos de um mar
revolto e de um mar, afinal de contas, pleno da tal quietude. Sim, ora
estamos por cima, ora por baixo, evidente. Menos evidente mas tão certo é
que nessa dualidade se explica que Kawase queira filmar a quietude
oriental e se lance nas imagens revoltas das tempestades de lugares
comuns. Ou, quando a segunda cabra conhece o criador (sim, há outra
sangria lá mais para a frente), e o bicho continua a balir, a balir, e o
miúdo, incomodado com a morte lenta, pergunta (como se nos tivesse
ouvido): isto ainda vai demorar muito?
Não demora muito mais, demora o tempo de todos fazerem as pazes e
irem à sua vida. Isso tem uma certa justeza, sejamos justos. Mas volto
mentalmente à morte em Mizoguchi para ver a sequência da morte da mãe da
rapariga no filme de Kawase. Aqui há uma cena antes da dita em que a
família, cá fora, partilha uma última refeição. O pai fuma, a esposa
ri-se, a filha toca e canta, o pai dança. Sob a voz doce da filha, a mãe
sorri, ouve o vento a dar nas árvores e olha para o céu. Prepara-se a
despedida. Uma cena depois a mãe já está moribunda deitada em casa e
familiares e amigos juntam-se para cantar e dançar até chegar o fim da
senhora. Se não se pode dizer que a música e a dança não deixam de ser
um costume local, elas são sobretudo suporte para os planos aproximados
do rosto moribundo da mãe que, sorrindo, se despede. Não há dúvida que o
momento é forte, e assim tem de ser quando a alegria da vida e da morte
de encontram. Mas se a coisa até resulta, isso acontece contra a mise-en-scène de Kawase, que, nunca confiando verdadeiramente na natureza (do acontecimento), prefere asfixiar o espectador com esses closes da
cara chupada da senhora. Talvez não se possa dizer que estejamos ante
um deleite pela morte, mas sim uma hiper consciência dos efeitos do
drama.
Hiper consciente fina-se também o filme nessa mensagem de beleza do
mundo que acomoda a vida dos que partem e a dos que ficam, com um plano
aquático de uma bolhinha de oxigénio a ascender das profundezas da água à
luz da superfície. Tudo muito belo, tudo muito leve. Tudo muito belo
num filme que carrega em si o peso dessa própria beleza.
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