Um dos episódios com que Jonathan Crary abre o seu "24/7 Late Capitalism and the End of Sleep" é, se não me falha a memória, o projecto de usar satélites terrestres como sistemas de redireccionamento da luz solar. Essa é uma forma de terminar com o conceito de noite, além da fugacidade da luz eléctrica, e, consequentemente, trazer às regiões do planeta com escuridão de meses a "dignidade" luminosa que merecem. Isto além, claro, dessa notinha de rodapé de interesses que é o sistema comercial funcional sem horário de fecho - 24/7.
A capa do livro tem essa montagem feliz das janelas-gaveta, num ambiente matrix-suburbano. Sem cortinas (a cortina corta a luz, a cortina é o fim do espectáculo) numa composição feita de milhares de micro-composições, são os rectângulos a perder de vista ao género "onde está Wally?" sem Wally. Podemos dizer que não há porque olhar para um ponto específico, que é o efeito de conjunto - tal qual parada chinesa em abertura de jogos olímpicos - o que interessa. O enquadramento final, aquilo que delimita o olhar, são os bordos do livro e, de certa maneira, os garrafais números laranja que, em toda a sua pompa, funcionam como sinais publicitários. Estão lá com a sua função de trabalhar o "fundo" das gentes, mas aqui em primeiro plano, fazendo inverter auraticamente o jogo do próximo e do distante.
Não me interessa tanto aqui fazer a semiótica apressada e abusiva da montra do livro de Crary. Pensava apenas na forma como o cinema, além do branco e preto como começou (num sistema de significações que compõe a forma pelo doseamento da aparição e desaparição do negro sobre o branco e viceversa), se popularizou com um enquadramento arquitectónico do negro das salas que delimitava o outro enquadramento que se movia, feita de imagens irrequietas mas aprisionadas/contextualizadas por essa escuridão. Esse negro da sala, como rebordo das imagens a ver, funcionava como limitação, como indicação do: para onde olhar. Se a decadência do cinema corresponde à decadência da sua aura (que se erigia por sobre esse negro da sala), pode estabelecer-se, inocentemente ou não, uma correspondência de negros. Entre o negro que enquadra o cinema e lhe dá a especialidade e a negro do sono, enquadramento do dia, como pressuposto da especialidade do humano.
São todos esses negros - na medida em que envolvem o limite da forma- que têm hoje a cabeça a prémio. É preciso manter os olhos abertos para o sono.
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