segunda-feira, 24 de dezembro de 2012
quinta-feira, 13 de dezembro de 2012
The Hobbit: An Unexpected Journey (2012) de Peter Jackson
Quando damos um jantar em nossa casa o mais provável é que no almoço
seguinte tenhamos restos. Não me levem a mal, eu até gosto de restos - a
comida requentada tem até um certo je-ne-sais-quoi. Mas nunca tem o mesmo sabor da do dia anterior. Ora, é a mesma coisa com The Hobbit: an Unexpected Journey (O Hobbit: Uma Viagem Inesperada), a adaptação da prequela da trilogia The Lord of the Rings,
que Peter Jackson teve a “cozinhar” durante quase uma década em
consequência do sucesso dos primeiros (Guillermo del Toro era suposto
realizar este projecto, tendo-o abandonado por alegadas dificuldades
económicas da MGM).
Aqui
esta necessidade de fazer “mais do mesmo” tomou conta de todo o
projecto e justifica opções no mínimo discutíveis: partir à força o
romance que Tolkien escreveu em 36 (isto tem que dar uma outra trilogia
dê lá por onde der) anunciando já os próximos filmes para 2013 e 2014;
retomar todo o cast (a coisa acaba por nem resultar mal excepto o cameo estranho e desnecessário de Elijah Wood); ou o já estar agendado o lançamento da extended version com mais 20 minutos em cima. Dejá Vu? ou a máquina dos dólares. Agora escolha.
Despachado este ponto, é interessante pensar que foi também a popularidade de The Hobbit,
que alguns referiam como plasmando de certa forma as experiências da 1ª
Guerra Mundial, que levou Tolkien a criar a trilogia do senhor dos
anéis. Mas enquanto que no escritor inglês o ímpeto foi para a expansão
de um universo (que levou até retrospectivamente a alterar alguns pontos
nas edições futuras de The Hobbit), no cinema o movimento foi
inverso e a operação foi de rarefacção: um só romance, um só “tale” que
gerará três objectos distintos. A questão é, o que haverá lá por dentro?
Bom, é tempo para uma sinopse, embora ela não interesse assim tanto (é
outra vez uma quest): sessenta anos antes da luta pelo famoso
anel, o hobbit Bilbo Baggins (Martin Freeman) junta-se a uma companhia
de anões sem lar (esse é o seu dilema) e a Gandalf (Ian McKellen) para
procurar a Montanha Solitária (belo nome) e um tesouro roubado por um
dragão de nome Smaug.
O que chama a atenção apesar de tudo é que o
filme acaba por afirma-se como um objecto algo estranho. Por um lado,
porque há que distribuir o “mal narrativo pelas aldeias” (leia-se, três
filmes), o filme arranca num tom de auto-referencialidade que está nos
antípodas de qualquer ambição de subtileza: o mecanismo “vou-vos contar
uma história”, Bilbo a correr para se juntar aos companheiros dizendo
que “vai viver uma aventura”, etc. Depois a aventura do “hobbit e os
treze anões” é de um certo conservadorismo narrativo que justapõe
episódios de batalha, coragem e testosterona (rodam os adversários:
orcs, goblins, trolls) sob um fundo de honra, justiça e sobretudo de
crescimento do herói/teórico Bilbo Baggins. Mas por outro lado, e também
para compensar esta rarefação dramática, as “montanhas russas” do 3D,
desta feita em vertiginosos 48 fotogramas por segundo (a cópia que a
imprensa viu era em 24, contudo) que servirão para adensar a experiência
sensorial.
Mas tirando essa curiosidade da antítese rítmica e
dramática que permite ver Peter Jackson a duas velocidades, físicas e
emocionais, a operação de requentamento do espírito da primeira trilogia
raramente funciona e, excepção feita talvez ao reaparecimento de Andy
Serkis e do seu gollum, a maior parte das vezes é mesmo preciso que o
inesperado nos seja lembrado (como o “unexpected” do título), pois ele
é, de facto, inexistente.
domingo, 18 de novembro de 2012
"Detachment" de Tony Kaye
Custa um pouco ser cirúrgico e adoptar uma postura de detachment face a Detachment
(O Substituto, 2011) de Tony Kaye, sobretudo porque se trata de um
filme tão quixotesco. Abraçando temas que vêm estando há muito na ordem
do dia como a insubordinação escolar, a falência dos sistemas
educativos, a violência escapista e existencial dos adolescentes, o
filme veículo para Adrian Brody (é também produtor executivo) nunca é
capaz de formular um discurso muito rico de construção ideológica ou
formal face ao problema.
Brody é um professor substituto com nome de teórico da literatura
(Henry Barthes), que nunca tem obrigações de continuidade. É o
“homem-nota”, que passa de mão em mão, de escola em escola. Tem de
chegar a uma escola, manter a “ordem” por um período provisório e depois
seguir para a próxima. Rimando com esses saltos constantes está o seu
próprio passado atormentado que envolve um avô moribundo e uma mãe que
se suicidou quando era criança. Desde cedo que há um negrume no centro
do filme e da sua personagem (até na forma como Brody fala, trazendo a
gravidade mas também uma pseudo-noção de sabedoria) que é exponenciado
pelo mosaico de personagens que o circundam: a adolescente prostituta
(Sami Gayle), a directora do escola que será substituída em breve
(Marcia Gay Harden), o professor que tudo leva com sentido de humor e
comprimidos (James Caan), a jovem com problemas de auto-estima (Bety
Kaye), etc.
O problema aqui não será tanto uma simbologia que estas personagens
emprestam a um mal-estar que leva ao sofrimento, à deriva, à falta de
saída para um sistema em pane total. A questão é que essa dor em ronde, sem saída (reproduzida pelos flashes do
passado de Barthes, pelos movimentos de deambulação pelas ruas) é
concretizada por uma espécie de dor geral pelo estado do mundo (veja-se
por exemplo, a cena em que o professor chora no autocarro ou o momento
do discurso aos alunos sobre o “marketing holocaust” e a necessidade de
saber ler como forma de libertação da imaginação). Essa “falta de
saída”, este sea of pain, nunca é vista por Kaye como uma potencialidade [como fez Gus Van Sant em Elephant (Elefante,
2003), por exemplo] mas sempre com um beco, uma dor circular pelos
planos contrapicados, à mão, um pouco inconsequentes sobre o espaço da
escola. Ou até mesmo pela divagação musical dos Newton Brothers que
querem sempre reescrever a lágrima com a lágrima. Tudo isto produz um
certo olhar samaritano, difícil de encaixar, mas que se deve menos à
soberba e mais a uma postura algo naif.
E depois Barthes chega até nós, depois de todo este trajecto, como non person, como hollow, e
em que o espectador, mais do que acreditar nas modulações do seu drama,
se sentisse tentado a pensá-lo como preso no seu próprio trauma, preso
no seu próprio pessimismo, reproduzindo na idade adulta a dor
adolescente, atroz e única, que o filme tenta apaziguar. Poderia o
protagonista suicidar-se depois do filme acabar, em vez de ler uma
citação de Allan Poe exemplificando como The House of Usher é
sobretudo um estado de espírito? Poderia, sim senhora. Como se já não
houvesse nenhuma distinção entre a política mercantilista da educação,
do “no child left behind” e uma outra que já não deixa para trás os
próprios adultos.
Mas insistimos na boa vontade do argumento de Carl Lund, com algumas
boas tiradas, com a ajuda de Harold Pinter, Poe, Orwell, mas que é
contida numa armadura estilística (as câmaras subjectivas, à mão, os
discursos frontais para a câmara, as imagens da cidade, do passado) que
acabam por poluir essa genuína preocupação de base e transformar Detachment num
filme que não é particularmente inovador ou ambicioso, mas que contém
momentos interessantes o suficiente para nos fazer não dar por
desperdiçado o tempo que estivemos a vê-lo.
quarta-feira, 31 de outubro de 2012
Doclisboa: Lovely Diary
Sobre uma obra tão extraordinária como San Zi Mei
(Three Sisters) de Wang Bing, vencedor do prémio deste ano para melhor
longa metragem internacional no Doclisboa, apetece fazer de advogado do
diabo. Não porque não tenha gostado do filme, bem pelo contrário, mas
porque parece útil submete-lo a provações que melhor confirmem a sua
genialidade. Primeiro: será que a sensibilização ocidental e premiação
de um filme sobre a pobreza rural no outro lado no mundo é uma forma de
nos fazer sentir bem, caridosos? Segundo: haverá um sentimento de
compaixão perante as três irmãs que vivem e trabalham como adultos, o
que implica uma vitimização da família? Terceiro: será a longa duração
do filme de Wang Bing (153 minutos) um sinal de que não há no cineasta
chinês uma escolha muito criteriosa dos planos, com se a quantidade
fosse sinónimo de qualidade? Perante isto façamos de advogado do advogado
do diabo. As duas primeira questões resolvem-se numa só. Obviamente que
o nosso olhar não pode deixar de construir uma dificuldade, um engagement
emocional que a espaços vê a figura da irmã mais velha, Sun Yingying,
como heroína (que trabalha, vai à escola, é mãe) em relação à qual
canalizamos sentimentos de compaixão, admiração, etc. Contudo, essa
leitura surge por trabalho exclusivo da tecnologia mais relevante do
cinema: a mente do espectador. As imagens de Wang Bing não constroem,
quer simbólica, quer literalmente, essa vitimização ou exaltação de uma
ruralidade. São imagens muitas vezes secas, desnorteadas, que trabalham
sobretudo a micronarrativa no interior dos planos (de uma democracia
vivencial de onde tudo sai e tudo entra a todo o momento: a ovelha que
afugenta galinhas ou cães; o pai que arrota ou a irmã do meio que cai e
suja a roupa nova) e sobretudo uma noção de presença. E isto leva-nos à
desconstrução do terceiro ponto. Wang Bing filma muito, é incansável,
está sempre lá (num dos planos da chegada do pai e das irmãs mais novas
ao ponto em que caminham para o autocarro que os levará à cidade, o pai
diz a Wang Bing: “chegaste rápido”. E é verdade, Wang Bing mostra neste
seu último filme (como também já o fazia nas suas obras anteriores) uma
atitude ética irreprovável, um comprometimento absoluto e exaustivo em
relação ao tema e às pessoas dos seus filmes, mas também em relação ao
cinema. A sua hipotética “falta de ideias” não é antes uma falta mas sim
a compreensão de que a rodagem de um filme é o momento da procura. E
nesse sentido o seu olhar é um espelho luminoso que irradia tudo o que
vê com uma luz de serenidade frágil. Encontrar momentos que permitam
construir ideias emocionais, de acção que serão concretizadas pela
montagem. Wang Bing podia apenas aproveitar-se da singeleza do universo
infantil, tão permeável aos momentos delicodoces, para alimentar o seu
ego artístico. Muitos o fazem. Ao invés, San Zi Mei é sobre
passar tempo com estas pessoas a partir do qual surgem momentos de
intimidade com o espectador, compreensão da sua rotina, alegrias e
dificuldades. Que se veja aqui uma ode à pobreza e à compaixão isso é um
acrescento que algumas pessoas sentirão no seu olhar cansado, sedento
de apaziguamento. Mas isso não está no filme, quero dizer. Essa presença
e esse tempo que o filme busca são premiadas pela obtenção de momentos
que transformam o filme num verdadeiro monumento há dignidade humana. E
ao ver o último plano do filme penso no cinema Wang Bing como uma
dádiva. Como ter a melhor mãe do mundo, cantou-se.
O
filme de Salomé Lamas que arrecadou quase todo o palmarés este ano
(melhor longa portuguesa, melhor primeira obra, prémio do público,
prémio escolas) com Terra de Ninguém encontra um ponto de apoio no último filme de Rithy Pahn Duch, le maître des forges de l’enfer
(Duch, Master of the Forges of Hell) de que falávamos há uns dias. Em
ambos há uma figura que tem um passado ligado à execução de pessoas e em
ambos o realizador decide dar o espaço à pessoa para se expor, redimir,
reflectir. Enquanto que no filme de Rithy Pahn o espectador passa por
vários momentos (de crença, compaixão, fúria), no filme português um dos
seus paradoxos vai para além do “mundo entre mundos” do mercenário
Paulo de Figueiredo: em nenhum momento, por maiores que sejam as
diferenças culturais entre o protagonista e o espectador, por menos
intrusiva que seja a voz baixa e pausada de Salomé que vai introduzindo
notas sobre a sua relação com Paulo (e sobretudo com o seu discurso) –
nunca, dizíamos, fica em causa a ideia clara que estamos perante um
homem que até certo ponto estava numa posição “errada” (entre o regime e
a sua tekné) que o canalizou para a morte encomendada de
pessoas. E é muito curioso que esta “terra de ninguém” em que Paulo
viveu (até ao final dos seus dias, a sequência final é explícita)
produza um assassino de “brandos costumes” que ora explica quem são as
suas amigas (as suas armas) ora se emociona e vai lá fora fumar um
cigarro. Por sobre tudo isto, há uma outra “luta” a ser travada: a de
Salomé com o espaço na procura de uma identidade cinematográfica para Terra de Ninguém.
O dispositivo interpelante (as sombras, o negro, a “digestão” pelos
capítulos, a voz of) prolonga um “limbo criativo” estabelecido entre a
vídeo-arte e o cinema mas que ganha raízes num registo documental de
maturidade autoral. Depois toda a gente há-de falar na importância do
registo certo sobre um assunto sensível do passado pós-revolucionário
nacional. Mas isso já será ruído...
Ainda
algumas notas telegráficas sobre outros filmes e outras dispersões.
Sobre curtas-metragens, que vi poucas: Sergei Lonitza com O Milagre de Santo António não consegue disfarçar um olhar exótico sobre a dita festa portuguesa, é pena; Ziamlia, a curta-metragem de Victor Asliuk, que emparelhou com Arraianos,
é um belo filme que vai da terra à terra guiado por um forte sentimento
de humanidade que faz com que voluntários vasculhem e desenterrem os
restos mortais de soldados soviéticos que faleceram na segunda guerra
mundial para lhes poder dar um enterro digno; A Raia de Iván
Castiñeiras Gallego é uma hábil homenagem “tarkovskiana” às gentes da
Galiza, com um olhar curioso sobre o contrabando nessa zona de
fronteira; (já agora sobre O Sabor do Leite Creme de Hiroatsu Suzuki, Rossana Torres, que vi na mesma sessão de A Raia, penso
que insiste nesta ideia proustiana da lembrança da juventude em relação
a duas irmãs nonagenárias mas dá-nos pouco além de mimar a experiência
da lentidão na terceira idade no ritmo do filme). Ainda duas outras
curtas, as vencedoras: Aux Bains de la Reine, que venceu o prémio
nacional, dos luso-suiços Maya Kosa e Sérgio da Costa, mostra bons
indicadores sobretudo na construção de um universo imaginário que vai um
pouco buscar ideias ao cinema de João Nicolau. Pisca o olho ao
espectador com cenas que provocam o riso (há um gag que parece um pouco
uma imitação do national geographic nas termas) mas regra geral ainda padece dos problemas das primeiras obras, demasiadas ideias para tão pouco filme. O filme Dusty Night
de Ali Hazara, que venceu a competição internacional, escreve bem a
contra luz, uma mensagem de tristeza ditada pelo sísifico trabalho dos
varredores de Cabul.
E finalmente dizer que este ano não houve
“choques” na atribuição dos prémios (isso acontece em alguns festivais
sobretudo quando os júris são de composição muito heterogénea) e que a
insistência positiva em apenas três sessões diárias possíveis (não havia
filmes à meia noite ou às 11 da manhã por exemplo) mostraram uma
procura de coerência para o evento. O Doclisboa já há algum tempo
atingiu o patamar de um dos melhores festivais internacionais de
documentário e compreendeu que este ano tinha tempo para estabilizar e
limar o conceito (as limitações orçamentais "ajudaram"), aprofundando
algumas áreas ligadas à discussão e aos colóquios que prolongam essa
experiência dos festivais como lugares pluri-disciplinares para pensar o
cinema e o mundo através dele. Penso que nem sempre "mais é melhor" e,
por isso, aposta ganha. Até para o ano.
sexta-feira, 26 de outubro de 2012
Doclisboa 2012: “Julgava saber onde era a rua da saudade mas perdi-me.”
Tenho por hábito seguir sobretudo as competições quando estou num
festival. Agora que penso nisso, a principal razão é porque são filmes
que estão, em muitos casos, numa espécie de prova de fogo: ou alguém
repara neles ou passam muitas vezes ao esquecimento (isto não se aplica
tanto aos festivais “gigantes” claro).
Desta
vez, tentei abandonar isso e vou respigando por aí filmes das várias
secções. Também por isso dei comigo na secção que apresentava L’homme à la valise (1983) e Le déménagement
(1993) de Chantal Akerman. E estes dois filmes, ambos feitos para a
televisão e vistos hoje como intervalos entre as suas grandes obras,
permitem-me apaziguar uma dúvida. Li uma vez que a realizadora
identificava duas grandes influências na sua obra: os experimentais,
dizia ela, deram-lhe o sentido de abertura, a liberdade; e, falando da
importância de Pierrot le fou (Pedro, o Louco, 1965), puxava Godard e a nouvelle vague como
responsáveis por lhe terem dado o seu ânimo. Ora, a questão para mim
era: como identificar o ânimo de um cineasta? Ele não está
necessariamente no seu estilo mas no impulso de alma (anima) que o guia nas decisões de mise-en-scène,
a criação dos ambientes, etc. E baseando-nos nisto parece que nos vemos
encerrados no problema de ter de extrair dos índices de visibilidade o
que é invisível em Chantal. E assim sendo, tirando a luta punk com a cozinha e seus rituais da personagem principal na sua primeira curta-metragem, Saute ma Ville (1968), essa anima parecia-me ser muito anti-boulevard, anti-deambulação romântica, no fundo anti-nouvelle vague.
Mas e então? Quer dizer, estes dois filmes não ajudam a reequacionar
essa “neurose” de Akerman na relação com os interiores como espaços de
segurança, onde o pensamento surge como roda viva. Mas há neles uma
imagem idílica de felicidade. Em Le déménagement, o actor Samy
Frey acabou de mudar-se para um novo apartamento e depois de o medir,
num monólogo teatral que dura todo o filme (são trinta e poucos minutos,
era um episódio de televisão para a série Monologues) constrói
para nós a sua felicidade petrificada (um pouco como o Pigmaleão de
Ovídio), o momento do passado em que havia outro apartamento e este
estava cheio de mulheres, três para ser mais preciso. E estava
apaixonado por todas [outra desmistificação: para quem pensa que Akerman
faz um cinema de mulheres é preciso conferir este ou o último plano de La folie Almayer (A Loucura de Almayer, 2011), o seu último filme, que estreia esta semana em Portugal]. Em L’homme à la valise,
filme feito dez anos antes para a TV com o apoio do INA (Institut
National de L’Audiovisuel), a ideia de felicidade é mais corriqueira:
que o seu apartamento se veja livre da presença masculina (um amigo
enorme em estatura que Chantal, que protagoniza o filme, não consegue
expulsar da sua própria casa). O homem da “valise” é uma presença
incomodativa (surge cortado pelo peito na maioria dos seus planos e os
seus sapatos fazem muito barulho no corredor) e Chantal pensa em como
pode organizar-se nas suas rotinas diárias para nunca ter de o ver. Se o
tom do filme é cómico (e outra vez podemos adiantar o ânimo nouvelle vague
por aí), o espaço da sua casa (a cozinha, a casa-de-banho, o corredor)
ditam que a exploração da premissa desemboque (outra vez) numa obsessão
sombria, neurótica. Fica mais um pormenor importante, que Chantal quer o
seu espaço desimpedido para trabalhar. E é com ela a teclar
furiosamente numa máquina de escrever, de costas, que o filme termina.
Que a solução de todos os males seja o labor.
A transformação da comédia em obsessão de L’homme à la valise, começa
quando a belga decide instalar uma câmara à janela ligado a um monitor
para que possa ver a partir de dentro quando é que o seu companheiro de
quarto cruza a rua para reentrar em casa. Essa imagem, repetimos, de 83,
faz um raccord interessante com Low Definition Control Malfunctions #0 de 2011. Claro que o raccord
oficial a ser feito não é desses quase trinta anos de diferença que
separam as duas imagens, mas sim com a (re)evocação do problema da
segurança e do controlo que o reboot dos sistemas de segurança e vigilância fizeram em consequência do 11 de Setembro e do retórico we against them,
que apontava as câmaras a esses seres esquivos a que demos
convenientemente o nome de terroristas. O documentário do austríaco
Michael Palm debruça-se precisamente sobre as questões da ética das
imagens das câmaras de vigilância, a redefinição do conceito de espaço
público, o prolongamento arquivista do mundo pelo cinema (fazer um
arquivo de todas as imagens e criar um “worldfilm”, como se diz a dado
momento) mas sobretudo o prolongamento do controlo preventivo a partir
do sistema panóptico de Bentham (Orwell, Foucault e Deleuze, entre
outros, tinham tirado já ilações teóricas sobre isso mas as acções ainda
não tinham acompanhado).
O que é curioso é que há uma frieza
“germânica” na relação entre as imagens que são exclusivamente de
câmaras de vigilância, de ultra-sons, de ressonâncias magnéticas, de
detectores de movimento com a opinião dos especialistas que vão
trilhando um percurso teórico. À primeira vista parece ser um caminho
árduo, maçudo, que usa a imagem como ilustração do logos. Mas a
certa altura alguém diz, entre pessoas a passear na rua, em parques, a
sair de edifícios: o que ver na imagem? É que há um modelo estabilizado
pela cultura para o que vemos e não vemos, deixando “invisível” esse
excesso informativo que o fotográfico traz consigo. A questão é que,
tendo sido sempre o cinema uma máquina de controlo social, esse excesso
jazia subjugado muitas vezes em detrimento da arte. As imagens ao serem
inseridas no filme de Palm espelham esse limiar em que elas próprias se
encontram: as imagens perdem a marca estética (perdem, porque são
produzidas sem essa intenção) e convertem-se em interface, em bits,
em estatística de controlo. Como se a construção destas imagens
alterasse a desconfiança platónica face às mesmas na relação com o
mundo, mas prolongasse o platonismo nessa ânsia de catalogar o presente e
manipular a latência das imagens para um futuro perfeito: sem doenças,
sem crimes, sem hasard. Há algo de profético neste projecto, como
se a eliminação do erro escrevesse o futuro com a luz. Por isso, talvez
não seja possível a Low Definition Control Malfunctions #0 construir-se sem ser contra um modelo interno que temos de documentário e de cinema. Mas como se lê na Apologia de Sócrates de Platão (ou mais à mão nas paredes do nosso metro): “uma vida não examinada não vale a pena ser vivida”.
Um
bom exemplo de hermeneuta histórico, e mais particularmente dos efeitos
do massacre levado a cabo pelos Khmer Vermelhos no Cambodja, é o
cineasta Rithy Pahn. Não sendo conhecedor da sua obra (nem sequer
daquela que alguns consideram o seu melhor filme S-21: The Khmer Rouge Killing Machine de 2003) fico impressionado por este Duch, le maître des forges de l’enfer
(Duch, Master of the Forges of Hell, 2011). Sobretudo porque o sentido
de urgência que existe no cambodjano ao filmar Kaing Guek Eav, mais
conhecido por Duch, responsável pela prisão M3 e mais tarde pelo
mortífero centro de interrogações e execuções S21 nunca põe em causa o
espectador. Ao contrário do israelita Ra’anan Alexandrowicz [Shilton Ha’Chok (The
Law in These Parts, 2011)] aquele apaga os seus traços no ecrã e deixa
toda a performatividade à explicação, memória, remorso do próprio Duch. É
a sua voz, tão transparente e oposta ao seu olhar aguado, que quase
funciona como trilha sonora independente. Esta instaura um ritmo dolente
e cândido (heresia) na evocação das torturas e da justificação dos seus
actos. Por isso, há toda uma viagem que fazemos, um arco emocional que
ora o coloca a emitir justificações e raciocínios plausíveis (note-se
que Duch é um intelectual que cita a Bíblia ou o historicismo do
historiador Savigny), ora usa expressões como “destruir pessoas” ou a
frase do regime “mais vale matar um inocente do que deixar um inimigo
vivo”. Por vezes ainda matematiza as suas mortes colocando o seu
arrependimento em risco ante a câmara. Em planos frontais de Duch,
sentado à secretaria por várias vezes coloca a sua mão esquerda sobre a
mesa. E vemos sempre três dedos. Uma sensação de estranheza, mas pode
ser da posição da mão, penso. Não estava certo que lhe faltasse nada.
Mais tarde quando este examina fotografias e documentos finalmente vemos
que lhe falta um dedo. Quando Deus criou Adão estendeu-lhe a mão e é o indicador “divino”
que o toca. É esse o dedo que falta a Duch. Mas é nessas mãos,
despojadas sabe lá por que causa do dedo criador, que Pahn decide acabar
o filme: postas sobre a Bíblia num novo projecto de cristianismo que
Duch abraça no cárcere que será a sua casa até ao final dos seus dias.
Quem ainda não viu vale a pena espreitá-lo. Passa ainda dia 27 às 21:15
na Culturgest.
As mãos são também as paisagens cheias de sulcos e linhas preferidas de Stephen Dwoskin para o seu The Age is... (2012)
Elas são um indicador da idade e que funcionam como índice da sua
reflexão. Totalmente sem palavras e com música original de Alejandro
Balanescu, o filme parece um daqueles poemas em que o seu autor faz das
tripas coração para rimar. Tem desde a sua primeira imagem (e até à
última) um impositivo tom poético, completado pelo constante ralenti
das imagens. Parece uma visão um pouco anacrónica do tema, que nunca
chega realmente a afirmar grande coisa e que não adianta absolutamente
nada ao que já conhecíamos do cineasta. E não é porque as suas imagens
não o permitam - idosos captados nessa nova posição no mundo, a andar, a
fazer ginástica, a comer, a sorrir ou simplesmente a olhar. Parece que The Age is... nunca
consegue abandonar uma forma de esboço, não sabendo muito bem como
lidar com a herança simbólica de certas imagens levando-nos sempre para
paragens e estados de alma reconhecíveis e fetichistas: as rugas, a
pele, os ponteiros do relógio, a lentidão. Dwoskin tem no entanto o
mérito de retardar um pouco a nossa percepção do real muitas vezes ao
ponto de termos vontade de fechar os olhos e apenas ouvir. O
envelhecimento através da música do filme e de alguns elementos sonoros
que de forma pertinente se deixam presentes: o mastigar, o chupar um
dedo, os pássaros, o lavar da louça. No fim de tudo a velhice soa a
pós-clímax, a drama e a uma certa complacência romântica na dor de uma
juventude perdida (alguns idosos vemo-los novos em fotografias, como que
intimando o seu passado). A única coisa que aqui permanece jovem é a
vontade genuína de observar de Dwoskin, embora sempre contaminada pelo
lado ensaístico, vertido aqui em filme-lamento.
Embora haja notícias de que os dois últimos filmes de Apichatpong Weerasethakul, Mekong Hotel e Ashes (ambos
de 2012) terão estreia comercial brevemente, não me pareceu sensato
perdê-los em contexto de festival. Não há muitos cineastas que tenham
uma aura profética tão forte como o tailandês: parece que carrega às
costas o futuro do cinema. É certo que houve algum desapontamento no
final da sessão entre algumas pessoas (isto para além das que dormem com
Apichatpong, entenda-se; com esses a história é outra). E também é
certo que essa aura “exige” um tom prolífico em relação ao qual é muito
difícil manter índices de qualidade equiparáveis a obras como Sud Pralad (Febre Tropical, 2004) ou, claro, Loong Boonmee raleuk chat (O
Tio Boonmee que se Lembra das Suas Vidas Anteriores, 2010). O que
equivale a dizer que os seus últimos dois filmes não podem deixar de ser
periféricos em relação àqueles “gigantes”. Dito isto, e para além de um
certo regresso ao primitivismo como marca autoral - o hibridismo
genealógico dos seres, num contexto semi-realista, que volta a estar
presente em Mekong Hotel (há fantasmas que comem vísceras, para
ser curto e irónico), saliente-se dois pontos importantes no seu cinema e
que nesta sessão estiveram à vista.
O primeiro ponto liga-se um
pouco à tese heideggeriana do “homem como formador de mundo”. Essa
ideia, que no alemão contrastava com a pobreza de mundo no animal,
parece ganhar no contexto da arte, e mais particularmente no cinema do
tailandês, uma dimensão estética. Ashes, que foi feito quase
exclusivamente com uma LomoKino, parece comunicar com o dito cinema
experimental mas para logo “escavar” um mundo. Neste, a falha, o snap
(quer do shot, quer do som dele) parecem sugerir que o mecanismo rouba
(escava, é mesmo a palavra) pedaços ao meio envolvente. Com isso
Apichatpong produz algo ex novo, que é uma forma do documental
“criar” a realidade, desenhá-la (“I quit filmmaking. From now on, I will
draw”): o seu cão King Kong que já não ladra, uma jovem a pintar as
unhas dos pés, ciclistas, fogo de artifício. Dir-se-ia de uma Tailândia a
desaparecer, uma memória, um sonho, um sonho dentro de um sonho. O que é
que isso interessa? São imagens lentas, desfocadas, pesadas, de um
mundo visto como mancha e velocidade. E o mais chocante, ou
contemporâneo, é que parece que há algo vindo do futuro que caminha para
nós. O segundo ponto, mais presente em Mekong Hotel, liga-se a
uma ideia de serenidade que o tailandês trabalha a partir da distância
(a recusa dos planos aproximados que parecem contribuir para agigantar
uma noção de intimidade), mas também da heterogeneidade. Percebemos que
este segundo filme acopla momentos: a sugestão de uma atormentada
“existência” de um fantasma, uma história de amor, a relação do espaço
do hotel com o rio, a música omnipresente da viola de Chai Bhatana (o
compositor), o longo plano final sobre esse mesmo rio e os rapazes que
fazem jet ski. Na verdade, essa heterogeneidade, que é o oposto
do que agarra o espectador à maioria das obras, é precisamente aquilo
que constrói meticulosamente um projecto contemplativo e sobretudo de
estado de alma. Por isso, ver Apichatpong é uma experiência sensorial
mas sobretudo anímica. Há algo que conforta, que vem do domínio do
invisível, e que ironicamente coloca o espectador numa situação de
alheamento próxima daquela que, por outros meios, é certo, fazia o
cinema clássico.
E agora é tempo de falar de três filmes enormes. Os dois primeiros, A Última Vez Que Vi Macau de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata e Arraianos
de Eloy Enciso Cachafeiro, têm uma qualidade em comum: a hábil gestão
entre o registo documental e o ficcional. Sobre o primeiro diga-se que
tenho um certo receio de empregar a expressão que se vem desgastando com
o tempo: “é um filme onde nada se passa”. Esta fórmula tem sido
aproveitada para que se consiga excluir o filme de qualquer análise
teórica que o reduza, por vezes que o confronte (claro que não estou a
referir-me à expressão quando utilizada por aquelas pessoas que
equivalem o “tudo” à narrativa clássica). Mas neste caso o “nada” tem
uma natureza diferente, funcionando sobretudo como resíduo do ficcional.
Explicamo-nos. Numa entrevista recente,
João Rui Guerra da Mata salientava o desapontamento que sentiu quando
voltou a Macau para fazer um documentário, que a sua terra de infância
tinha agora muito menos interesse que a imagem que tinha em criança,
paredes-meias com certas idealizações próprias da idade. Ou dizia da
necessidade de inventar as histórias do Tintin que o seu pai lhe trazia
em francês e que ele não conseguia ler. Ora este regresso a Macau
corresponde a essa necessidade de ficcionalização de um espaço para lhe
poder prolongar uma determinada dimensão mítica. Por isso, A Última Vez Que Vi Macau,tem
um corpo documental mas uma cabeça ficcional. Um filme de acção sem
acção, ou antes em que esta consiste em ver Macau. Isto é, assistimos à
evolução de um filme de série B, noir - ou como num filme de John
Houston [pensamos em The Maltese Falcon (A Relíquia Macabra,
1941] - em que todos os seus elementos estão marcados pela voz, pela
sombra, pelo detalhe indicial no espaço. Todas as matrizes narrativas
desse cinema estão presentes: o amor (Candy) figura sempre ausente, o
encontro adiado pelo perigo, as mãos enluvadas dos malfeitores, o
exotismo criminoso, o objecto fetiche (neste caso uma gaiola), os nomes
extravagantes (Madame Lobo) e depois o cigarro, o whisky, a sombra.
Ficam apenas as traves-mestras de género, em que visualmente só
funcionam os indícios, o contorno, sendo que tudo o mais, a
concretização, é expulso para off (não vemos o “recheio”: as
mortes, o herói, o inimigo, a presença humana). Mas a intenção do filme,
e nisso reside a sua subtil inteligência, não passa por recriar um
projecto de ode ao detalhe, ao descentramento da acção, mas sim por
tirar a “carne” do ficcional e visualizá-la, em espelho (em contraste,
às vezes) com imagens de Macau, com o documental. Embora pareça que
exista um trajecto que o João Rui tem de perseguir, muito deste é do
domínio da espera, do gaze, da perda geográfica e emocional. A
palavra perda é mesmo uma das chaves do filme: perder um encontro, um
amor, mas também perder-se no espaço, perder uma visão idílica. E esse
percurso, num “terceiro acto” soberbo, descola desse ficcional que vinha
brincando com a verosimilhança, e ficamos com o espaço já perfeitamente
“contaminado” pela inspiração clássica – os tigres desmaiados, os tiros
e os fogos de artifício, os planos e o som das águias no céu. O filme
despede-se de Macau, sob a égide de um qualquer fim da humanidade. Ficam
os edifícios, os gatos e os cães omnipresentes e uma ideia de regressão
até ao início. Não ao início da imagem mítica de que se havia partido,
mas sim ao início dos tempos onde o fogo, os homens das cavernas, o
primitivo ainda tinha todo um caminho à sua frente para trilhar. Filme
soberbo que esperamos tenha a oportunidade de chegar às nossas salas em
breve.
Há
também uma importante participação da ficção no projecto de Eloy
Cachafero sobre a regressão da ruralidade, designadamente numa aldeia
entre a Galiza e Portugal. Mas ao contrário de Fogo de Yulene Olaizola, que também está na competição internacional e com o qual partilha uma intencionalidade, Arraianos é
um filme de uma extrema ambição que só chega a essa ruralidade depois
de impor uma destreza absolutamente excepcional na mescla de
preocupações de olhar documental, drama de costumes, performatividade,
tragédia e ensaio filosófico. Esta falta de fronteiras (o importante não
é unir tudo mas sobretudo tornar o processo criativo em algo uno, em
que não se pense na fronteira) parece estremecer tudo à sua volta,
deixando, curiosamente, o filme afirmar-se com algo da ordem do sólido,
do granítico. Sabíamos ser possível impor um olhar na incerteza e
relativismo, hoje? Eu tinha as minhas dúvidas... “O mundo está ao
contrário. (...) Fomos nós, ninguém mais que fez o cerco, esta gaiola
sem saída, transtornámos a ordem primordial”. Isto coloca Eloy na boca
dos seus arraianos, a partir de uma peça teatral. Uma “heresia” em forma
de fábula em que o ambiente fantástico (a fotografia de Mauro Herece e a
mistura sonora de Vasco Pimentel são um espanto: os guizos... os
guizos... o vento, os pássaros, o fogo, é toda uma orquestra) está muito
além do romantismo rural. Trabalha-se antes a nitidez do cinema nesse
processo em que as fotografias do passado queimam e as “árvores que são
todas iguais” geram uma individualidade da expressão misteriosa em quem
as abate. Próximo, despojado de intelectualismo, é a filosofia da espera
(esperar sempre) da luta (lutar sempre) que mostra a acção criativa
sobre a realidade como aquela que realmente a puxa para a frente. Entre a
cigarra e a formiga, entre sonhar e comer, não pode haver distinção.
Essa fluidez que trabalha o incompreensível e o mistério como aquilo que
realmente apanha a verdadeira dimensão documental de uma situação já
valeu a nomeação de Arraianos ao prémio cineastas do presente em Locarno. E não me parece que fique por aqui...
Como
isto já vai longo, queria apenas fazer breve referência a outra
obra-prima do cinema novo iraniano (por mim, podem mesmo tirar-lhe o
novo), Sib (A Maçã, 1998) de Samira Makhmalbaf. Agora
não me interessa tanto discutir se o filme, que recebeu uma menção
especial do Júri em Locarno, teve o dedo da família gerando a glória
precoce da cineasta então com 17 anos. Sendo uma obra indiscutível sobre
a formação infantil, a liberdade e a relação entre pais e filhos,
convém que se diga que esse estado de "lição" é feito com uma maçã e uma
serra: o pai tranca as filhas porque quando tem de sair a esposa
invisual não consegue controlar para onde estas vão; não sabem falar e
nunca foram à rua; uma queixa dos vizinhos traz uma assistente social a
casa que faz o inverso, tranca o pai que tem de serrar as grades para
poder sair e liberta as filhas; é aí que estas aprendem o valor do
dinheiro ou o sabor de uma maçã. Esta descrição serve para incitar todos
a irem ver o filme que ainda passa no último dia do festival, dia 28,
às 16:15 na Culturgest. Mas o que me merece a atenção é que esse
didactismo infantil do filme (tão caro ao cinema iraniano, basta
espreitar a carreira de Kiarostami) é atingido aqui por uma via que não
podia ser mais alheia a um dictum. Por isso, relembramos esse
lixo retórico que invade as escolas de cinema sobre a necessidade de
resumir um projecto numa frase e que vem na sequência da identificação
"indispensável", "tortuosa", "esotérica" entre uma história e o seu
realizador. Como se essa súmula de identificação, que em muitos casos
leva o inexperiente aluno a extrair logo a moral de uma história ainda
por narrar, pudesse converter o anónimo em autor. Por vezes, apaziguar o
terror de vir a ser um tarefeiro leva a inverter os papeis: um autor é o
que cria com uma marca e não o que marca através da criação.
domingo, 21 de outubro de 2012
Primeiros dias do Doclisboa: o desenraizamento também é uma questão de olhares
Os festivais de cinema abrem e fecham sempre com pompa e circunstância (eventos dentro do evento, momento revista Caras
ao qual muita gente vem mais marcar o ponto do que ver o filme em si).
Sobre isso, nenhuma crítica em particular, na medida em que o evento
pode ser também uma estratégia como outra qualquer do cinema chamar
pelas pessoas. Este intróito semi-ressabiado serve para dizer que há
muito era impossível obter bilhetes para ver o último filme do João Rui e
do João Pedro A Última Vez que Vi Macau (2012). Por isso a minha entrada foi pelas “traseiras”, discretamente, para ver Nuukuria Neishon (Nuclear
Nation, 2012), documentário do japonês Atsushi Funahashi sobre o êxodo
da população de Futaba, local que alojava há décadas a central nuclear
de Fukushima que sofreu rupturas na sequência do terramoto e tsunami que assolaram a região.
Entrei
na sala ainda com as imagens de poesia que Paradjanov criou para a
homenagem ao poeta Sayat Nova a ocupar toda a minha memória emocional [o
filme é, claro, Sayat Nova (A Côr da Romã, 1968), que tinha
visto umas horas antes]. E instalou-se imediatamente um choque que toda a
frontalidade e composição dos planos do cineasta arménio (o vinho a ser
despejado do cântaro, o plano picado da morte com o poeta estendido e
as galinhas a derrubar as velas) faziam falsos raccords e surgiam
desarmados pelo olhar instável, um pouco desleixado, dos primeiros
planos de Funahashi. Enfim, penas da poesia sobre a realidade. É que é
um olhar, o do japonês, que demora a instalar-se, titubeante, a entrar
em dois espaços descaracterizados: Futaba, do qual as sucessivas
catástrofes varreram a presença humana tornando-a numa paisagem de
destroço quase impressionista, e os locais de exílio destes refugiados
nucleares habitado agora por pessoas que estranham o local, a comida, o
desenraizamento. Por isso o cinema aqui presente mostra-nos o combate
que o documental trava consigo próprio quando entra nesses espaços que
são no fundo os espaços do trauma, do cinema pós-traumático. Quando o ar
se torna semi-respirável (literalmente) as câmaras entram e começa o
dilema de explorar ou não, o que contar, como gerir a emoção. O cineasta
japonês nisso é muito salomónico deixando que o lado procedimental do
filme [lembro sobre esse “método” a obra-prima que venceu a competição
internacional em 2005 Yan Mo (Before the Flood) de Yu Yan e Yifan
Li acerca do realojamento dos habitantes de Fengjie perante a iminência
da construção da barragem das Três Gargantas na China], acompanhado
pelos seus 125 minutos, ao longo das quatro estações (um élan muito oriental) engrossem a estrutura do que quer filmar.
Há
todo um mosaico de situações que apanham as impressões e os rostos dos
sem-casa (que dormem num ginásio, que não têm dentes para as refeições
que lhes são distribuídas, que entre a dor e a espera fazem aeróbica e
ouvem concertos improvisados de covers manhosas dos Beatles), mas
também o regresso temporário à terra da qual tiveram de sair. São os
momentos que servem para ir buscar coisas que deixaram saudades [sapatos
ou os DVDs de um senhor cinéfilo que relembra entre outros títulos Mad Max
(As Motos da Morte, 1979), porque será?)] e em que Funahashi deixa
entrar o vídeo (momento incrível) que um pai e um filho filmam na zona
contaminada: menos de duas horas para prestar homenagem à esposa e mãe
que faleceu na catástrofe; a duração limitada para os sentimentos.
Obviamente que a nação nipónica, nuclear pelas piores razões, como
sabemos, nunca permitirá que Nuukuria Neishon descarte um
discurso anti-nuclear. O focar no presidente da câmara de Futaba, nos
seus remorsos pela sua parte activa em ter perpetuado a aceitação da
instalação da central de Fukushima no seu território [era um balão de
oxigénio económico para a região, até descontos nas contas de
electricidade tinham (!)], abre o filme a esse problema político de
jogos estratégicos de poder, de supremacia do Estado em detrimento das
pessoas. Mas sempre numa circularidade aberta entre emoção e activismo
muito mais complexa. Um belo exemplo dessa célebre expressão de Levinas
que me surge a propósito desta circularidade: “pensar através do
outro”. Esse outro mostra a reconstrução das pessoas para quem Futaba
passa a ser uma homeland idílica, onde agora mumificam vacas
sem ter que comer e que beber e à qual um dia regressarão. Reconstrução
do papel do espectador que esperava uma lição mais asséptica, da lavagem
que se segue à experimentação do inferno.
O primeiro filme que vejo na competição internacional chama-se Fogo e
é uma co-produção mexicana e canadiana realizada por Yulene Olaizola.
Não conheço a realizadora e espreito os dois títulos anteriores Paraísos Artificiales (Artificial Paradises, 2011) e Intimidades de Shakespeare y Víctor Hugo de 2008. Leio também sobre os temas serem sugestivos, o lado construído do estilo documental, o ennui, os cigarros, os takes
longos, a influência de Pedro Costa. Tudo isto faz sentido nesta nova
tentativa da realizadora agora sobre o processo de avanço da tundra na
ilha de Fogo no norte do Canadá. Os seus habitantes têm de sair, o "fogo
deu lugar ao gelo", a paisagem é inóspita. Parece cirúrgica a inserção
da obra no centro do bom gosto da cinéfilia documental: os planos longos
em tableaux nas reticências do fade to black, o
desaparecimento da “ruralidade”, a relação visceral com a natureza (vai
lá cortar uma árvore para eu ver como isso é belo), o vento, a
orquestração dos diálogos (os planos dos interiores em que os habitantes
saboreiam uma última bebedeira – “it’s good til the last drop”, em que
se tratam por son, sir, boy, parecem reciclar para o
documental o ambiente de Béla Tarr), a pose ascética dos que não querem
partir. Parece que estou a caminhar no sentido de desfazer o contrato
de Olaizola. E estou de certa forma, na medida em que vejo as costuras
da sua boa vontade, na medida em que há uma espécie de nostalgia por
antecipação (do que era antes: não só da terra mas da juventude destes
senhores) que não dá uma visão desprendida do que é ter raízes num
espaço e num passado (porra, às vezes é preciso ter sorte para que o
genuíno, mesmo quando fabricado, irrompa). É o contrário das
extraordinárias Raíces (1943) de Frida Khalo. E é paradoxal: se essa fabricação à la mode ficção/documental
serve pouco o filme, são esses os momentos que nos esmurram. Os
diálogos no interior como já referi (num filme que procura preservar a
relação dos habitantes com o exterior que os “expulsa”) mas também essa
sugestão absolutamente ficcional e que vem do “fogo”, da luz do sol que
se põe, ainda radiante – numa altura em que todos se decidiram a ficar
custe o que custar, e os cães, esses, já partiram. Isso não deixa que
silencie o óbvio: a lentidão se tida como um mecanismo isolado soa a
lição de cátedra e o ritmo é um filho pródigo do filme, não da intenção.
Foi
um privilégio incrível ver a abertura da retrospectiva Chantal Akerman
com a própria a pouco mais de um metro de mim a apresentar D’Est (1993).
Pareço uma adolescente a falar do Robert Pattinson mas há uma razão que
extravasa a minha admiração. É que a realizadora belga, visivelmente
constipada e abatida, falou do facto do seu documentário não ter lá
nada, não ter planos informativos. Não há lá nada, só há pessoas e só há
olhares. Relembro o texto que escrevi aqui há dias a propósito da antevisão do festival. Sobre D’Est
(não tinha revisto o filme na altura) escrevia que as pessoas e os
lugares “parecem esperar pacientemente um futuro que os envolva”. Ora,
sobre isto, digo, é mandar para o caixote do lixo. Não é nada assim.
Depois de rever aquele que considero o melhor filme de Chantal vejo que a
espera é, quando muito, um tema subliminar do documentário. Costuma
dizer-se que há quatro estatutos que colocam Chantal fora da espinha
dorsal de uma noção de mainstream cultural (ou como ela lhe chamaria, do poder do dinheiro e do phallus).
São eles: o ser mulher, o ser belga, o ser judia e ainda cineasta
experimental. Estas quatro condições colocam-na numa margem
(identificável mas que não deixa de ser uma margem) a partir do qual
podemos receber esta sua obra rodada na Ucrânia, Polónia e Alemanha de
Leste. Não se trata de criar grelhas nem de fechar o filme no facto das
filas de espera que Akerman filma em gares, nas ruas geladas à noite, em
mercados, poderem remeter para essas outras filas históricas da Segunda
Guerra Mundial (embora Chantal tenha despertado para essa ideia à
medida que o filme ia sendo feito). O interessante, dizia, passa também
por pensar a importância, a poeticidade e a beleza de D’Est como ligada à capacidade desse seu estatuto de outsider lhe ter permitido ver o leste a partir de um mecanismo — o travelling
(literalizando-o como forma de viagem e sempre da direita para a
esquerda, isto é, de leste para oeste) que constrói e destrói a todo o
tempo a paisagem. Mas que sobretudo esvazia (não há lá nada, repito)
para depois poder(mos) construir coisas de vário fabrico. Por exemplo,
essa lateralidade do seu cinema (onde resta a questão de saber se é o spot ideal ou o mais seguro
para a observação de Chantal) permite criar essa fronteira no espaço
(outro dos seus temas) para a construção de um monumento político ao
olhar dos povos. Esse olhar e devolução de olhar em circuito, que parece
às vezes literalizar o museu imaginário e Malraux, possui esse alcance
de criar um espaço de contemplação in locus. E depois essa contemplação é também deixada à fruição do tempo (como se lêssemos a Avenida Nevsky de
Gógol e substituíssemos a pseudo-animação realista da sua voz por uma
frieza que é o animo próprio de Akerman). Tudo isto e mais alguma coisa
em D’Est, obra bela, importante e poética, não
necessariamente por esta ordem, filmada em 16mm e que tivemos a
oportunidade de ver em 35. Um privilégio. Só mais uma coisa: a dada
altura há um plano lateral de um palco e de uma pista de dança. E claro
cantam e dança-se. As influências podem surgir de onde menos se espera.
Será de mim ou é possível antever o Miguel Gomes aqui?
E ao terceiro dia do Doclisboa continuou-se a falar de raízes. Shilton Ha’Chok (The
Law in These Parts, 2011) do israelita Ra'anan Alexandrowicz é um
daqueles filmes que encaixa na perfeição nesse dilema que é fazer um
filme importante. A intenção é explorar os mecanismos que deram origem a
um ordenamento jurídico ex novo por parte de magistrados,
conselheiros e legisladores israelitas que permitiram dar cobertura
legal à ocupação da Faixa de Gaza e da Cisjordânia desde 1967. O
cineasta com imagens de julgamentos, recursos, leis, tudo found footage,
tinha esse problema específico de dar-lhe uma forma cinematográfica. O
que pensou não foi mau. Foi colocar os magistrados que ia entrevistar
num estúdio com algumas dessas imagens a passar em fundo. E depois fazer
uso de um paralelo entre criar um ordenamento e a possibilidade que o
realizador tem de criar realidades através das imagens, tudo isto bem à
vista pelo uso do dispositivo meta-documental. Que dizer? As pessoas
baterem palmas e com razão uma vez que se trata de mostrar a lei como
ficção para cobrir atrocidades e porque ninguém desinteressado e com
poder (isso é impossível?) fez ainda alguma coisa contra isso. Contudo,
há um problema em tentar pensar uma forma para um conteúdo ou
vice-versa. As suas coisas casam-se mal em Shilton precisamente
porque as imagens que o cineasta usa não comunicam (vão muito para além)
do programa pesado de filmar como redenção do realizador: o julgamento
dos juízes. A cadeira, o modo de entrevista indiciam isto, um
interrogatório, com a voz baixa e controlada do realizador na penumbra.
Mas há um outro julgamento a decorrer muito mais subterrâneo: o das
acções daqueles homens (que acreditam nessa possibilidade de criar uma
lei para aplicar a um outro que não nós) perante as imagens, os
documentos produzidos por esse esquema imaginário a que deram origem. E
desse julgamento, por muito que nos custe, todos eles saem ilibados...
Pode ser que surja o tal “julgamento da História” (o tal que Ra'anan não
sabe do que se trata) e repare isso. Para já fica o moto claro no final
do filme: “o tema deste documentário aguarda julgamento”. É verdade e
por isso paremos as filosofias.
Até
porque a história da sessão seguinte sobre cinema experimental começa
com um rapaz dos seus 12 anos sentado na fila em frente à minha a
explicar à mãe o que é a expressão “pioneer in action sequence”. Dizia
ele: “é uma cena de acção nunca vista como no The Bourne Ultimatum (Ultimato, 2007) ou no North by Northwest
(Intriga Internacional, 1959)”. Perdão? Como disse? Enquanto isso,
Augusto Seabra apresentava a sessão e falava dos modos de olhar e dos
festivais como espaços para pensar o cinema. Ora, nem mais. Sobre Free Radicals: a History of Experimental Film (2011) há um lado meio poético que tem a ver com o free do
título. Este parece indiciar que Pip Chodorov, pelo facto de ser ele um
cineasta experimental (também porque o seu pai Stephan Chodorov, um
produtor de televisão, fomentou desde que ele era criança a convivência
com pessoas como Jonas Mekas ou Stan Brakhage), vê quase todas as
figuras do cinema experimental ora como amigos, ora como ídolos. Daí
essa noção romântica de liberdade, que até está presente no filme por
uma certa naiveté, um certo gosto mainstream (provocamos) que trai um pouco a exegese necessária à fabricação de um história. E por isso Free Radicals
é menos uma história do experimentalismo no cinema e mais uma homenagem
sobretudo aos cineastas que depois estiveram juntos na edificação dessa
“cinemateca” norte-americana do cinema independente e avant-garde
que é o Anthology Film Archives. Nenhum mal nisso. Ficamos sempre com
histórias inestimáveis para contar: o momento triste em que Ken Jacobs
confessa que no passado, sem dinheiro, faminto, tirou uma vez costeletas
de um caixote do lixo e as comeu; a fórmula de Hans Richter: “I give
chance a chance”; o último filme de Stan Brakhage feito na cama quando
estava prestes a ser levado pelo cancro; os filmes caseiros da família
do próprio Pip mijados pelo cão, dando-lhes automaticamente um look
experimental, etc etc. Fica por contar toda a História mas há histórias
suficientemente esclarecedoras que certamente cumprirão a sua função:
pôr o miúdo de 12 anos a pensar nesse lado B da história do cinema.
(Nota trágico-cómica: em homenagem às pessoas acometidas de um súbito laxismo intelectual eis a resenha de tom extremamente sarcástico - D’Est e Nuukuria Neishon um thumbs up. Free Radicals e Shilton Ha’Chok um thumbs down. E um middle thumb (o que é isso?) ao Fogo.)
terça-feira, 16 de outubro de 2012
Sistemas de Gosto
Is it possible to establish any kind of objective knowledge about these crossroads where cinema always is at? Can we get further than just a discussion of personal tastes and preferences?
Adrian Martin: Well, we must get further than just ‘personal tastes and preferences’! I deeply believe that taste is a kind of prison for oneself – when a critic finds himself or herself always rigidly repeating the same opinions, the same positions, the same likes and dislikes (that is the kind of bad posture which Pauline Kael bequeathed to criticism). Critics should feel free to bring in their own emotional reactions to films – it is hard to keep them out of writing – but the phenomenon known as the ‘gut feeling’ or gut reaction can become a terrible end in itself: ‘this film makes me angry or it makes me happy, so it's a rotten film or a great film, and I’m not going to discuss it any further.’ The important thing is always argument, analysis, logic. I have an irrational side (critics need it), but my rational side believes in logical demonstration: if you can prove to me that what are saying about a film makes internal sense, if you can marshal the evidence from the film itself to back up what you say, then I too can be persuaded to disregard my own first gut reaction and explore that film again in a new, more open way.
Your question mentions objective knowledge. I guess I am enough of a modern person to doubt the absolute value or reality of such so-called objectivity. I believe in the multiplicity of discourses, but I don’t believe in total, free-for-all, postmodern relativity where any one opinion or analysis is as good as anyone else’s. I believe that, through the constant dialectic of argument, through the richness of many personal views and systems, we can come, not to a consensus, but a sort of critical mass where each of us might be able to understand some of the key problems of our time, and the forces at work that shape our world. I believe that, somewhere amidst the veritable Babel of cinephilia, there is indeed some kind of new social community.
If young moviegoers don't seem to be very interested in reading about films, maybe they'll be less interested in reading about cinema from the past, about the black & white films ... Do you think there's some kind of miseducation/alienation which is negative for young cinephiles?
Adrian Martin: Well, I think there’s a big difference between film fans (or film nerds) and cinephiles. This difference has always existed, it’s nothing new, but it often causes friction and troubles. In my view, a cinephile is someone who likes to read, who likes to bring in ideas to think about and discuss movies. The fan/nerd doesn’t much like to read or analyse – and, if they do, it is a very particular kind of material: lists of films (best, worst, genre lists, ‘what I have seen this month’) – and a very particular kind of analysis: ‘in’ jokes for aficionados (‘John Landis appears in the background in a werewolf costume!’), very broad symbolic-political meanings (‘Romero’s supermarket zombies stand for mindless consumers!’). Nerds don’t like to read, but they sure love to write – the Internet is now full of this kind of stuff. The stance of the nerd is fiercely anti-intellectual, anti-authoritarian, and it comes with a particularly vicious variant of populism: ‘My opinion is as good as anybody’s, and therefore I deserve as much of the critical space as I can grab, so fuck you!’ It’s the ‘democratic’ attitude gone mad, and I really think it is the enemy of cinephilia – not least because the film culture of the nerd fixates on a very narrow, almost completely narrative, commercial or semi- commercial band of filmic production: horror movies, action films, sex films, trash comedies, the cult of Tarantino, etc. I love these kinds of films, too – but the cinephile is the person who can link the greatness of George A. Romero with the greatness of Hou Hsiao-hsien or Peter Tscherkassky, not just Kim Ki-Duk or Dario Argento! Yes, the nerd is miseducated and alienated – and, what’s worse, they choose to cultivate heir alienation, to imprison themselves in their anti-intellectualism, to wear it as a badge of pride. It is an ugly posture, the opposite of an open, generous cinephilia.
(Cinemascope interview 2007)
domingo, 7 de outubro de 2012
Linhas de Wellington
Raoul Ruiz morreu. Embora os Mistérios de Lisboa (2011)
não tenha sido o seu derradeiro filme, a sua última cena já parecia de
certa forma premonitória: com a claridade a assaltar o plano final, a
confusão da reminiscência última e do nascimento de um jovem Pedro
jazendo ao contrário na cama de um colégio. Uma criança que no começo da
vida já conhecia (conhecíamos) o seu destino. Uma criança que não se
sabia morta (estava fria), se apenas doente.
Dez meses depois a realidade confirmou esse “cerimonial triste” e o
mundo do cinema teria de se haver sem o corpo, o olhar ágil e perspicaz
do cineasta chileno. Mas o sentimento da sua morte, como falta, talvez
só tenha surgido pelo facto de ter deixado este Linhas de Wellington em
preparação, transformando-o naquilo que ele não queria ser: uma herança
e/ou homenagem. Há portanto a pairar sobre o filme o espírito de um
“acto de generosidade” levado a cabo pela companheira Valeria Sarmiento
que decidiu terminar-lhe o filme (isto é, realizá-lo). A questão é que
já não há Camilo Castelo Branco, nem há Raoul Ruiz. Há apenas essa
vontade de ligação emocional com que a câmara de Valeria filma o célebre
episódio da história portuguesa – as linhas que o general Wellington
mandou constituir para suster o avanço das tropas jacobinas em pleno
período das invasões francesas.
Enquanto Ruiz filmava a uma certa distância a maioria das cenas dos Mistérios para
precisamente, preservando o mistério, melhor depois preparar o
“avanço”, Sarmiento mantém esse recuo mas como dado meramente
observacional (ou dramático). Mas talvez nem seja justo que a realização
carregue toda a “culpa”, uma vez que o mosaico histórico das
personagens de Carlos Saboga nunca permite esse “ir para dentro” das
pessoas de que se fala. Por isso o cast como valor de produção surge algo desaproveitado transformando-se em muitos casos numa espécie de colecção interminável de cameos.
Só alguns: John Malkovich como figura “napoleónica” do general
Wellington, obcecado em que o pintor de serviço corrija a sua imagem e
pinte as suas vitórias e não os seus massacres; Miguel Borges como
mercador soft on the inside, hard on the outside; Michel
Piccoli que, na melhor cena do filme (a par da loucura doce de Marisa
Paredes), fica a falar sozinho da saudade e do silêncio que irrompe nas
conversas dos portugueses; e depois há ainda o homem que anda à procura
da mulher, o homem dividido entre a descendência e lealdade francesa e
portuguesa, o sargento Francisco Xavier (Nuno Lopes) que se apaixona por
uma viúva inglesa; a mulher violada e traumatizada pela guerra. Nesta
rede todos são símbolos de episódios típicos que ajudam a ilustrar o
evento histórico, mas ninguém (diga-se o espectador) quer saber muito se
vivem se morrem, se amam ou odeiam.
Resta-nos assim o lado pesado do filme, em sentido não pejorativo, do name above the title
, o produtor Paulo Branco. Há nesta derradeira colaboração com Ruiz um
cuidado extremo em que o filme não falhe por aí. E precisamente a
fotografia no tom certo de André Szankowski, o trabalho de câmara, os
locais são de um apuro assinalável (a utilização da música menos). Mas
sabemos que quando lidamos com produções em grande todos os defeitos se
agigantam. Neste caso é essa esterilidade dramática que empurra o filme
para o drama de vida, superficial, romântico, com especial atenção aos
desgostos e separações de amor em tempo de guerra (atenção que Mistérios de Lisboa
não descurava o romance, antes pelo contrário, vivia dele, mas
colocando-o sempre em contexto: o choque do romance de Camilo com a ronde límpida e paciente de Ruiz).
Valeria confessou que, no início, sobre o tema do filme pouco sabia e
que foi o êxodo da população (que fez rimar com o seu próprio exílio) a
chave de entrada emocional no filme. Não é por isso de estranhar que
sejam precisamente os planos dessa massa de gente a percorrer os campos,
em fuga lenta, de uma diagonal à outra dos planos, os momentos mais
fortes de Linhas de Wellington. Por momentos, não era
preciso ir a caminho de nada porque as pessoas essas, e as linhas
também, vinham para nós, avançavam na nossa direcção. E é perante esse
avanço e essas pessoas que de repente nos lembramos que se está na
Europa a filmar um filme sobre uma guerra. Um filme que apesar de tudo
recusa um discurso tecnológico e de acção sobre o conflito (a batalha
final tem a dignidade proporcional à sua elipse) e prefere contar essa
perplexidade moderna que é isso de ter as pessoas a avançar e a avançar e
a avançar…
domingo, 30 de setembro de 2012
Cielo Negro (1951) de Manuel Mur Oti
Se nos mês passado lembrámos no À Pala de Walsh, Cottafavi
e a ironia da sua carreira, agora chegou a vez de Manuel Mur Oti,
cineasta espanhol da geração de Luis García-Berlanga e Carlos Saura, que
começou a fazer cinema aos 41 anos e que, apesar da boa recepção pelo
público e pela crítica da generalidade dos seus filmes (chamavam-no “el
genio”), caiu no esquecimento a partir da morte do General Franco. A
explicação para tal é simples. É que com a entrada de um novo regime
eram precisas obras que simbolizassem a ruptura, não os sucessos
comerciais, feitos com o apoio e graças de uma ditadura e do seu líder.
Ao vermos um dos seus melhores filmes Cielo Negro (o segundo de uma carreira de 17), temos precisamente os temas queridos da ditadura como a importância da religião cristã ou a materialização do melodrama nos dilemas do amor como marcas de um género e de uma “atmosfera”. Contudo, a sua protagonista, Emília (Susana Canales), uma jovem que sempre viveu com a mãe, que nunca teve um namorado, que nunca foi à verbena (festa), que vê muito mal, não é o protótipo de mulher submissa que esperaríamos. Há nela uma força (apesar da inocência) com que agarra o homem que quer para namorado, com que rouba o vestido para a festa, com que obriga o poeta impostor [Fernando Rey instigado pela antagonista Lola (a presença da actriz portuguesa Teresa Casal, à data mulher de Arthur Duarte)] a prolongar a farsa até à morte da mãe. Uma força que em último instinto a impele a pôr a hipótese do suicídio.
É por sobre essa força que Mur Oti se revela como cineasta. Ao contrário de muitos filmes feito no Estado Novo em Portugal onde o folhetim era tudo e a expressividade cinematográfica algo raro, Cielo Negro controla a tragédia lacrimejante (o filme da ceguinha como lhe chamavam), com absoluta certeza. Eis alguns traços:
1. A ponte da cena final vista logo no primeiro plano do filme, a partir de casa de Emília, quando tudo estava bem (quando ainda não chovia). Se esse plano inicial nos mostra a simbologia da vida de Canales antes do amor, com os pássaros na gaiola à janela, a saída lá para fora revela o preço da liberdade;
2. A cegueira. Antes desta ser apresentada como elemento da tragédia [como o é por exemplo em Magnificent Obsession (Sublime Expiação, 1954) de Douglas Sirk] ela é, logo no início, trabalhada na relação com espaço: é o dia tan hermoso de Emília, onde o céu surge pequenino emparedado entre linhas de cimento; ou são os gerânios que ela pergunta à mãe se estão à janela da vizinha, ao que esta mente ante a visão das meias estendidas; ou essa sequência tão erótica quanto difusa da ida à festa com o amado Fortún. Como se a sua alegria que são 75 minutos e depois duas horas (ela conta o tempo que passa) fosse só uma questão de música, de luzes (os fogos de artifícios são estrelas) da proximidade dos corpos. Nessa sequência ela tira os óculos à boneca que ganha nas rifas, como o fizera a si própria antes de sair de casa. Mais do que se impor a beleza, Emília quer impor-se a cegueira, para poder amar Fortún por breves instantes (para ir-se à felicidade é preciso ir-se sin gafas), ainda que ele seja boémio, ainda que ele não a queira da mesma maneira. Esse acto perfeitamente edipiano, a auto-cegueira é uma etapa de crescimento que depois se converte numa inevitabilidade. É quando Emília sabe que vai ficar cega e que não pode trabalhar, o momento em que realmente “vê”: como se a cegueira física fosse o preço a pagar pela clarividência interior.
3. E quase nos esquecíamos da sequência final. A mãe morreu. Ela ficará cega. Tudo aponta o trágico. Emília revolta os olhos e sai. Junta às escadas perguntam-lhe: “¿A dónde vas Emília? Sube!”. Mas Emília desce. E nós sabemos onde vai. Sai para a rua. Chove, chove sempre. Voltamos a ver a ponte ainda com mais certeza de uma tragédia. Corre, resoluta, mesmo cega sabe o caminho. Quando chega à ponte vira-se para nós e sentimos outra vez essa força, essa espécie de abertura do ser ante o sofrimento extremo. Vira-nos costas, debruça-se sobre a ponte e a câmara com ela. Lá em baixo passa um eléctrico. Mur Oti põe a câmara junto ao solo para nos dar a distância. Mas é no último momento que Emília ouve os sinos, inesperados, belos, que numa torrente demencial a chamam. Das igrejas, de todas. A salvá-la. E para quem tinha dúvidas desse milagre rosseliniano no final, esses sinos não lhe pedem que viva, intimam-na a fazê-lo. E depois é o regresso à vida com os sinos “celestiais” cada vez mais intensos. Já se foi o vestido comido pelas traças e só há um xaile sobre os ombros a amparar da chuva num travelling inenarrável, considerado por muitos o mais belo de toda a história do cinema.
Ao vermos um dos seus melhores filmes Cielo Negro (o segundo de uma carreira de 17), temos precisamente os temas queridos da ditadura como a importância da religião cristã ou a materialização do melodrama nos dilemas do amor como marcas de um género e de uma “atmosfera”. Contudo, a sua protagonista, Emília (Susana Canales), uma jovem que sempre viveu com a mãe, que nunca teve um namorado, que nunca foi à verbena (festa), que vê muito mal, não é o protótipo de mulher submissa que esperaríamos. Há nela uma força (apesar da inocência) com que agarra o homem que quer para namorado, com que rouba o vestido para a festa, com que obriga o poeta impostor [Fernando Rey instigado pela antagonista Lola (a presença da actriz portuguesa Teresa Casal, à data mulher de Arthur Duarte)] a prolongar a farsa até à morte da mãe. Uma força que em último instinto a impele a pôr a hipótese do suicídio.
É por sobre essa força que Mur Oti se revela como cineasta. Ao contrário de muitos filmes feito no Estado Novo em Portugal onde o folhetim era tudo e a expressividade cinematográfica algo raro, Cielo Negro controla a tragédia lacrimejante (o filme da ceguinha como lhe chamavam), com absoluta certeza. Eis alguns traços:
1. A ponte da cena final vista logo no primeiro plano do filme, a partir de casa de Emília, quando tudo estava bem (quando ainda não chovia). Se esse plano inicial nos mostra a simbologia da vida de Canales antes do amor, com os pássaros na gaiola à janela, a saída lá para fora revela o preço da liberdade;
2. A cegueira. Antes desta ser apresentada como elemento da tragédia [como o é por exemplo em Magnificent Obsession (Sublime Expiação, 1954) de Douglas Sirk] ela é, logo no início, trabalhada na relação com espaço: é o dia tan hermoso de Emília, onde o céu surge pequenino emparedado entre linhas de cimento; ou são os gerânios que ela pergunta à mãe se estão à janela da vizinha, ao que esta mente ante a visão das meias estendidas; ou essa sequência tão erótica quanto difusa da ida à festa com o amado Fortún. Como se a sua alegria que são 75 minutos e depois duas horas (ela conta o tempo que passa) fosse só uma questão de música, de luzes (os fogos de artifícios são estrelas) da proximidade dos corpos. Nessa sequência ela tira os óculos à boneca que ganha nas rifas, como o fizera a si própria antes de sair de casa. Mais do que se impor a beleza, Emília quer impor-se a cegueira, para poder amar Fortún por breves instantes (para ir-se à felicidade é preciso ir-se sin gafas), ainda que ele seja boémio, ainda que ele não a queira da mesma maneira. Esse acto perfeitamente edipiano, a auto-cegueira é uma etapa de crescimento que depois se converte numa inevitabilidade. É quando Emília sabe que vai ficar cega e que não pode trabalhar, o momento em que realmente “vê”: como se a cegueira física fosse o preço a pagar pela clarividência interior.
3. E quase nos esquecíamos da sequência final. A mãe morreu. Ela ficará cega. Tudo aponta o trágico. Emília revolta os olhos e sai. Junta às escadas perguntam-lhe: “¿A dónde vas Emília? Sube!”. Mas Emília desce. E nós sabemos onde vai. Sai para a rua. Chove, chove sempre. Voltamos a ver a ponte ainda com mais certeza de uma tragédia. Corre, resoluta, mesmo cega sabe o caminho. Quando chega à ponte vira-se para nós e sentimos outra vez essa força, essa espécie de abertura do ser ante o sofrimento extremo. Vira-nos costas, debruça-se sobre a ponte e a câmara com ela. Lá em baixo passa um eléctrico. Mur Oti põe a câmara junto ao solo para nos dar a distância. Mas é no último momento que Emília ouve os sinos, inesperados, belos, que numa torrente demencial a chamam. Das igrejas, de todas. A salvá-la. E para quem tinha dúvidas desse milagre rosseliniano no final, esses sinos não lhe pedem que viva, intimam-na a fazê-lo. E depois é o regresso à vida com os sinos “celestiais” cada vez mais intensos. Já se foi o vestido comido pelas traças e só há um xaile sobre os ombros a amparar da chuva num travelling inenarrável, considerado por muitos o mais belo de toda a história do cinema.
segunda-feira, 24 de setembro de 2012
Plano Nacional de Cinema
Desculpem-se se começo por abordar uma iniciativa com tão boas
intenções como o Plano Nacional de Cinema (PNC), apresentando na última
sexta-feira na Cinemateca Portuguesa, com algum pessimismo. É que penso
realisticamente que há motivos para isso. Em primeiro lugar, se o
objectivo é a formação do olhar das crianças e jovens na relação com o
cinema, e mais genericamente com o fenómeno audiovisual, o que é que nos
garante que a “politiquice” não falará mais alto (de novo)
e que, como em 1991, o plano não cairá por terra quando mudar a cor do
governo? Depois, diga-se uma evidência. Naquela altura, Portugal já
estava atrasado em relação à maioria das escolas europeias e
norte-americanas. Hoje estar atrasado é uma expressão que já nem define
completamente a falta que faz uma pedagogia para o olhar nas estruturas
curriculares, desde o mais básico ao universitário. E finalmente não
posso deixar conter a ironia pelo facto de tal plano surgir num momento
em que genericamente já se estuda a curva de influência decrescente da
sétima arte nos suportes de acesso ao conhecimento e à arte. Como se
numa altura em que todos estivessem já virados para a “morte do cinema” e
as novas tecnologias ligadas à internet, redes sociais, second life,
iPads e por aí fora, o nosso sistema de ensino andasse a descobrir as
virtudes do cinema… Não sei se tudo isto é mais trágico ou se, dessa
discrepância histórica, possa resultar algo inesperadamente criativo. E
depois, como toda a gente sabe, esta ironia é duplamente reforçada pelo
facto de se tratar de uma iniciativa proposta em plena paralisação
funesta do próprio cinema em Portugal. Portanto, se politicamente o timing
não é o correcto (e historicamente ainda o é menos), sejamos humildes e
contidos na euforia da celebração de uma iniciativa que, de tão óbvia e
relevante, deveria ter sido pensada para aí a partir dos 80, pelo
menos.
Agora uma outra evidência. O importante neste PNC não é obviamente
mostrar filmes às crianças. Porque isso já eles fazem, em casa, com
amigos, no cinema, etc. O importante é construir uma estrutura para
controlar as condições de visionamento das obras escolhidas e sobretudo
construir um discurso pedagógico sobre essas imagens. Esse discurso tem
de integrar a importância do meio audiovisual como forma privilegiada de
transmissão de informação na actualidade, mas sempre salientando que
parte dessa transmissão é feita, quando ao cinema diz respeito, através
de um poderoso mecanismo de distorção da lógica informativa que é o
dispositivo artístico cinematográfico.
Desta forma, parece incrível mas é
verdade, é ainda hoje necessário combater a ideia de que, como a
maioria das pessoas nasceu com esse sentido inato e orientador que é a
visão não é necessário aprender a ver. Esse é um papel de cidadania
importante destinado a transformar o consumidor de imagens em alguém que
as sabe ler e por isso dotado de um sentido crítico face a estas. Mas
tudo isto parece tão óbvio que por isso mesmo merece ser repetido.
E depois há outros elementos que convém ter em conta no pensamento de
uma formação no quadro de um PNC (embora Alain Bergala no seu L’hypothèse cinéma já os tenha dissecado quase todos em 2002):
- Dotar os professores de formação adequada por forma a ensinar os
filmes como objectos de direito próprio, como arte e meio de expressão,
para além do receptáculo de conteúdos que os jovens podem discutir a
propósito de cada disciplina. Ensinar a ver um filme, a ler uma
sequência de imagens.
- Como explicar a forma como o cinema pode ser um “espelho” da
realidade, uma plataforma para discutir inúmeras questões de todas as
áreas?
- Estruturar o uso do cinema para fins pedagógicos de forma também a mostrar a História da própria sétima arte;
- Combater as grelhas críticas de análise aos filmes enquanto objectos fechados e redundantes;
- Articular as diferentes dimensões temporais dos filmes (ou clipes) com a duração das aulas;
- Articular o ensino e os filmes de forma a que não se renuncie ao
universo que os jovens reconhecem como seu (obras que estejam perto de
si), mas sem nunca abdicar da “violência construtiva do desconhecido”
que os clássicos do cinema ou obras importantes do cinema contemporâneo
podem trazer.
- Apesar da importância de estabelecer uma relação com o domínio
emotivo do cinema (ele é uma espectáculo e uma arte que convoca
sensações), não deixar de ser cirúrgico na relação com a linguagem do
cinema, tendo como efeito reflectir sobre certas questões: porque é que
um filme, ou uma cena é má? Ou boa? Ou perversa? Ou complexa?
Algumas questões parecem estar a clarificar-se no projecto piloto
prestes a arrancar este ano em 23 escolas do país. Mas estes pontos
referidos, que passam muito pela formação dos professores e articulação
dos filmes escolhidos com os planos curriculares de cada área e ano, são
decisivos se o desejo é o de realmente inserir o cinema na formação dos
indivíduos. Esquecê-los equivale a percorrer meio caminho. Equivale a
“olhar sem ver”.
Uma nota. Se é muito positivo começar pelos jovens, a julgar pelas entrevistas
aos pais a propósito de próprio plano, fica-se com a sensação de que a
iliteracia audiovisual em Portugal é um verdadeiro abismo que não sei se
iremos a tempo de transpor.
quinta-feira, 13 de setembro de 2012
Destaques MOTELx 2012
Num momento como o actual em que o “horror” social e político se vai
generalizando na nossa sociedade, pode soar quase a redundância falar do
início de um festival de terror. Seja visto como um festival, ou pela
sua dimensão como uma mostra, o MOTELx já vai para a sua sexta edição. E
quer pela sua concentração temporal (5 dias, de 12 a 16 de Setembro)
quer pela forma como junta as suas principais actividades num só cinema
(S. Jorge), o festival conseguiu perceber, como talvez nenhum outro
evento cinematográfico no país, uma dimensão “certa”, de conforto, pela
qual o espectador pode passar pelos seus eventos como quem passa por uma
narrativa que pode ou deve ser lida do início ao fim. A essa virtude
junta-se uma extraordinária dedicação dos seus fãs que envergam vestes a
rigor, participam em marchas zombie, ou simplesmente empunham o
programa do festival com as devidas cruzinhas assinaladas com os filmes
que mais querem ver.
Dito isto como herança positiva que já foi consolidada das edições anteriores, importa agora ajudar o pôr essas cruzinhas. A primeira, começando pelo terceiro acto do festival, o verdadeiro clímax, deve ser colocada nos cinco filmes que o MOTELx mostra de Dario Argento, com especial destaque para a trilogia das mães [Suspiria (1977), Inferno (1980) e La Terza Madre (Mãe das Lágrimas: A Terceira Mãe, 2007)] apenas concluída em 2007. A sua presença em Lisboa, com uma masterclass no último dia, domingo, às 16:30, será certamente um dos pontos mais altos do festival. Para além da presença do mestre do cinema de terror, este ano o festival decidiu ainda fazer uma breve e muito curiosa retrospectiva de Nobuo Nakagawa, um nome que provavelmente apenas dirá alguma coisa aos mais aficionados do género. Aquele que é considerado o pai do cinema de terror japonês e que fez alguns dos seus mais conhecidos filmes na célebre produtora Shintoho (na qual trabalharam Ozu, Mizoguchi e Kurosawa). Um das suas obras mais consideradas Tokaido Yotsuya Kaidan (Ghost Story of Yotsuya, 1959), sobre um samurai sanguinário perseguido pelos fantasmas das suas vítimas, baseado num conto tradicional japonês e ponto de viragem na linguagem cinematográfica de terror no país, é exibido na sexta-feira às 16:45. A completar a secção é mostrado na quinta-feira às 17:00, Borei Kaibyo Yashiki (Black Cat Mansion, 1959), sobre um casal assombrado por uma estranha figura feminina, em que se alterna a cor e o preto e branco, e, no sábado, pelas 14:45, Kaiidan: Ikiteiru Koheiji (The Living Koheiji, 1982), 97º e último filme de Nakagawa, uma violenta história de amor entre um trio de artistas, baseado numa peça de teatro.
Para além da já habitual secção competitiva do festival que premeia a melhor das 10 curtas-metragens nacionais na área do terror, e da secção de curtas internacionais, pode dizer-se que o grosso da sua programação se apresenta sob o nome de “Serviço de Quarto”. Neste ano mostram-se vinte sete longas-metragens das mais variadas partes do mundo, funcionando como uma espécie de estados gerais do cinema de terror e fantástico no último ano, ano e meio. Entre as escolhas que vão do gore ao torture porn, da comédia ao survival horror, há nomes que dispensam apresentações. Um deles é Kevin Smith que, com Red State (2011), experimenta o terror inspirando-se numa seita religiosa real cuja divisa é “God hates fags” (quinta às 16:45 e sábado às 19:30). Outro é o espanhol Jaume Balagueró (co-autor da saga [Rec] (2007), cujo terceiro capítulo tem honras de abertura do festival), que com Mientras Duermes (Sleep Tight, 2011) capta o microcosmos da vida em vizinhança de um apartamento através de uma personagem estranha de um porteiro (quinta-feira às 19:15). Talvez menos conhecido seja o japonês Shunji Iwai [Riri Shushu no subete (All About Lily Chou-Chou, 2011)] que apresenta Vuanpaia (Vampire, 2011), um filme de terror-ensaio que coloca os temas do suicídio e do vampirismo em territórios do drama (quarta às 16:45).
Ainda outras cruzinhas que se impõe fazer: o documentário sobre o lendário produtor de filme de série B, Roger Corman, Corman’s World: Exploits of a Hollywood Rebel (2011) que é exibido sábado às 22:00; V/H/S (2012), um filme a várias mãos feito por jovens realizadores norte-americanos [entre as quais Ti West de The Innkeepers (2011) e The House of the Devil (2009)] em territórios do subgénero found footage (sábado à 00:00 e domingo à 00:30); Livide (2011) que será exibido sexta às 21:30 é novo filme da dupla francesa Alexandre Bustillo e Julien Maury que nos deu o excepcional À L’interieur (2007); ainda no cinema francês, que agora mais precisamente junta esforços canadianos e norte-americanos, será apresentado, The Tall Man (2012), o novo filme de Pascal Laugier [Martyrs (2008)] que estará em Lisboa para apresentar a sessão de quinta-feira às 21:45; e finalmente, Crawl (2011), um exercício de suspense do australiano Paul China que quer seguir na trilha de Blood Simple (Sangue por Sangue, 1984) dos irmãos Coen ou então as obras mais conhecidas de Roman Polanski (quarta às 15:00 e sábado às 16:45).
Para além destes outros filmes serão certamente descobertos along the way. Por agora, que comece o terror.
(A programação completa pode ser consultada aqui.)
Dito isto como herança positiva que já foi consolidada das edições anteriores, importa agora ajudar o pôr essas cruzinhas. A primeira, começando pelo terceiro acto do festival, o verdadeiro clímax, deve ser colocada nos cinco filmes que o MOTELx mostra de Dario Argento, com especial destaque para a trilogia das mães [Suspiria (1977), Inferno (1980) e La Terza Madre (Mãe das Lágrimas: A Terceira Mãe, 2007)] apenas concluída em 2007. A sua presença em Lisboa, com uma masterclass no último dia, domingo, às 16:30, será certamente um dos pontos mais altos do festival. Para além da presença do mestre do cinema de terror, este ano o festival decidiu ainda fazer uma breve e muito curiosa retrospectiva de Nobuo Nakagawa, um nome que provavelmente apenas dirá alguma coisa aos mais aficionados do género. Aquele que é considerado o pai do cinema de terror japonês e que fez alguns dos seus mais conhecidos filmes na célebre produtora Shintoho (na qual trabalharam Ozu, Mizoguchi e Kurosawa). Um das suas obras mais consideradas Tokaido Yotsuya Kaidan (Ghost Story of Yotsuya, 1959), sobre um samurai sanguinário perseguido pelos fantasmas das suas vítimas, baseado num conto tradicional japonês e ponto de viragem na linguagem cinematográfica de terror no país, é exibido na sexta-feira às 16:45. A completar a secção é mostrado na quinta-feira às 17:00, Borei Kaibyo Yashiki (Black Cat Mansion, 1959), sobre um casal assombrado por uma estranha figura feminina, em que se alterna a cor e o preto e branco, e, no sábado, pelas 14:45, Kaiidan: Ikiteiru Koheiji (The Living Koheiji, 1982), 97º e último filme de Nakagawa, uma violenta história de amor entre um trio de artistas, baseado numa peça de teatro.
Para além da já habitual secção competitiva do festival que premeia a melhor das 10 curtas-metragens nacionais na área do terror, e da secção de curtas internacionais, pode dizer-se que o grosso da sua programação se apresenta sob o nome de “Serviço de Quarto”. Neste ano mostram-se vinte sete longas-metragens das mais variadas partes do mundo, funcionando como uma espécie de estados gerais do cinema de terror e fantástico no último ano, ano e meio. Entre as escolhas que vão do gore ao torture porn, da comédia ao survival horror, há nomes que dispensam apresentações. Um deles é Kevin Smith que, com Red State (2011), experimenta o terror inspirando-se numa seita religiosa real cuja divisa é “God hates fags” (quinta às 16:45 e sábado às 19:30). Outro é o espanhol Jaume Balagueró (co-autor da saga [Rec] (2007), cujo terceiro capítulo tem honras de abertura do festival), que com Mientras Duermes (Sleep Tight, 2011) capta o microcosmos da vida em vizinhança de um apartamento através de uma personagem estranha de um porteiro (quinta-feira às 19:15). Talvez menos conhecido seja o japonês Shunji Iwai [Riri Shushu no subete (All About Lily Chou-Chou, 2011)] que apresenta Vuanpaia (Vampire, 2011), um filme de terror-ensaio que coloca os temas do suicídio e do vampirismo em territórios do drama (quarta às 16:45).
Ainda outras cruzinhas que se impõe fazer: o documentário sobre o lendário produtor de filme de série B, Roger Corman, Corman’s World: Exploits of a Hollywood Rebel (2011) que é exibido sábado às 22:00; V/H/S (2012), um filme a várias mãos feito por jovens realizadores norte-americanos [entre as quais Ti West de The Innkeepers (2011) e The House of the Devil (2009)] em territórios do subgénero found footage (sábado à 00:00 e domingo à 00:30); Livide (2011) que será exibido sexta às 21:30 é novo filme da dupla francesa Alexandre Bustillo e Julien Maury que nos deu o excepcional À L’interieur (2007); ainda no cinema francês, que agora mais precisamente junta esforços canadianos e norte-americanos, será apresentado, The Tall Man (2012), o novo filme de Pascal Laugier [Martyrs (2008)] que estará em Lisboa para apresentar a sessão de quinta-feira às 21:45; e finalmente, Crawl (2011), um exercício de suspense do australiano Paul China que quer seguir na trilha de Blood Simple (Sangue por Sangue, 1984) dos irmãos Coen ou então as obras mais conhecidas de Roman Polanski (quarta às 15:00 e sábado às 16:45).
Para além destes outros filmes serão certamente descobertos along the way. Por agora, que comece o terror.
(A programação completa pode ser consultada aqui.)
Subscrever:
Mensagens (Atom)