Desculpem-se se começo por abordar uma iniciativa com tão boas
intenções como o Plano Nacional de Cinema (PNC), apresentando na última
sexta-feira na Cinemateca Portuguesa, com algum pessimismo. É que penso
realisticamente que há motivos para isso. Em primeiro lugar, se o
objectivo é a formação do olhar das crianças e jovens na relação com o
cinema, e mais genericamente com o fenómeno audiovisual, o que é que nos
garante que a “politiquice” não falará mais alto (de novo)
e que, como em 1991, o plano não cairá por terra quando mudar a cor do
governo? Depois, diga-se uma evidência. Naquela altura, Portugal já
estava atrasado em relação à maioria das escolas europeias e
norte-americanas. Hoje estar atrasado é uma expressão que já nem define
completamente a falta que faz uma pedagogia para o olhar nas estruturas
curriculares, desde o mais básico ao universitário. E finalmente não
posso deixar conter a ironia pelo facto de tal plano surgir num momento
em que genericamente já se estuda a curva de influência decrescente da
sétima arte nos suportes de acesso ao conhecimento e à arte. Como se
numa altura em que todos estivessem já virados para a “morte do cinema” e
as novas tecnologias ligadas à internet, redes sociais, second life,
iPads e por aí fora, o nosso sistema de ensino andasse a descobrir as
virtudes do cinema… Não sei se tudo isto é mais trágico ou se, dessa
discrepância histórica, possa resultar algo inesperadamente criativo. E
depois, como toda a gente sabe, esta ironia é duplamente reforçada pelo
facto de se tratar de uma iniciativa proposta em plena paralisação
funesta do próprio cinema em Portugal. Portanto, se politicamente o timing
não é o correcto (e historicamente ainda o é menos), sejamos humildes e
contidos na euforia da celebração de uma iniciativa que, de tão óbvia e
relevante, deveria ter sido pensada para aí a partir dos 80, pelo
menos.
Agora uma outra evidência. O importante neste PNC não é obviamente
mostrar filmes às crianças. Porque isso já eles fazem, em casa, com
amigos, no cinema, etc. O importante é construir uma estrutura para
controlar as condições de visionamento das obras escolhidas e sobretudo
construir um discurso pedagógico sobre essas imagens. Esse discurso tem
de integrar a importância do meio audiovisual como forma privilegiada de
transmissão de informação na actualidade, mas sempre salientando que
parte dessa transmissão é feita, quando ao cinema diz respeito, através
de um poderoso mecanismo de distorção da lógica informativa que é o
dispositivo artístico cinematográfico.
Desta forma, parece incrível mas é
verdade, é ainda hoje necessário combater a ideia de que, como a
maioria das pessoas nasceu com esse sentido inato e orientador que é a
visão não é necessário aprender a ver. Esse é um papel de cidadania
importante destinado a transformar o consumidor de imagens em alguém que
as sabe ler e por isso dotado de um sentido crítico face a estas. Mas
tudo isto parece tão óbvio que por isso mesmo merece ser repetido.
E depois há outros elementos que convém ter em conta no pensamento de
uma formação no quadro de um PNC (embora Alain Bergala no seu L’hypothèse cinéma já os tenha dissecado quase todos em 2002):
- Dotar os professores de formação adequada por forma a ensinar os
filmes como objectos de direito próprio, como arte e meio de expressão,
para além do receptáculo de conteúdos que os jovens podem discutir a
propósito de cada disciplina. Ensinar a ver um filme, a ler uma
sequência de imagens.
- Como explicar a forma como o cinema pode ser um “espelho” da
realidade, uma plataforma para discutir inúmeras questões de todas as
áreas?
- Estruturar o uso do cinema para fins pedagógicos de forma também a mostrar a História da própria sétima arte;
- Combater as grelhas críticas de análise aos filmes enquanto objectos fechados e redundantes;
- Articular as diferentes dimensões temporais dos filmes (ou clipes) com a duração das aulas;
- Articular o ensino e os filmes de forma a que não se renuncie ao
universo que os jovens reconhecem como seu (obras que estejam perto de
si), mas sem nunca abdicar da “violência construtiva do desconhecido”
que os clássicos do cinema ou obras importantes do cinema contemporâneo
podem trazer.
- Apesar da importância de estabelecer uma relação com o domínio
emotivo do cinema (ele é uma espectáculo e uma arte que convoca
sensações), não deixar de ser cirúrgico na relação com a linguagem do
cinema, tendo como efeito reflectir sobre certas questões: porque é que
um filme, ou uma cena é má? Ou boa? Ou perversa? Ou complexa?
Algumas questões parecem estar a clarificar-se no projecto piloto
prestes a arrancar este ano em 23 escolas do país. Mas estes pontos
referidos, que passam muito pela formação dos professores e articulação
dos filmes escolhidos com os planos curriculares de cada área e ano, são
decisivos se o desejo é o de realmente inserir o cinema na formação dos
indivíduos. Esquecê-los equivale a percorrer meio caminho. Equivale a
“olhar sem ver”.
Uma nota. Se é muito positivo começar pelos jovens, a julgar pelas entrevistas
aos pais a propósito de próprio plano, fica-se com a sensação de que a
iliteracia audiovisual em Portugal é um verdadeiro abismo que não sei se
iremos a tempo de transpor.
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