domingo, 7 de outubro de 2012

Linhas de Wellington


Raoul Ruiz morreu. Embora os Mistérios de Lisboa (2011) não tenha sido o seu derradeiro filme, a sua última cena já parecia de certa forma premonitória: com a claridade a assaltar o plano final, a confusão da reminiscência última e do nascimento de um jovem Pedro jazendo ao contrário na cama de um colégio. Uma criança que no começo da vida já conhecia (conhecíamos) o seu destino. Uma criança que não se sabia morta (estava fria), se apenas doente.

Dez meses depois a realidade confirmou esse “cerimonial triste” e o mundo do cinema teria de se haver sem o corpo, o olhar ágil e perspicaz do cineasta chileno. Mas o sentimento da sua morte, como falta, talvez só tenha surgido pelo facto de ter deixado este Linhas de Wellington em preparação, transformando-o naquilo que ele não queria ser: uma herança e/ou homenagem. Há portanto a pairar sobre o filme o espírito de um “acto de generosidade” levado a cabo pela companheira Valeria Sarmiento que decidiu terminar-lhe o filme (isto é, realizá-lo). A questão é que já não há Camilo Castelo Branco, nem há Raoul Ruiz. Há apenas essa vontade de ligação emocional com que a câmara de Valeria filma o célebre episódio da história portuguesa – as linhas que o general Wellington mandou constituir para suster o avanço das tropas jacobinas em pleno período das invasões francesas.

Enquanto Ruiz filmava a uma certa distância a maioria das cenas dos Mistérios para precisamente, preservando o mistério, melhor depois preparar o “avanço”, Sarmiento mantém esse recuo mas como dado meramente observacional (ou dramático). Mas talvez nem seja justo que a realização carregue toda a “culpa”, uma vez que o mosaico histórico das personagens de Carlos Saboga nunca permite esse “ir para dentro” das pessoas de que se fala. Por isso o cast como valor de produção surge algo desaproveitado transformando-se em muitos casos numa espécie de colecção interminável de cameos. Só alguns: John Malkovich como figura “napoleónica” do general Wellington, obcecado em que o pintor de serviço corrija a sua imagem e pinte as suas vitórias e não os seus massacres; Miguel Borges como mercador soft on the inside, hard on the outside; Michel Piccoli que, na melhor cena do filme (a par da loucura doce de Marisa Paredes), fica a falar sozinho da saudade e do silêncio que irrompe nas conversas dos portugueses; e depois há ainda o homem que anda à procura da mulher, o homem dividido entre a descendência e lealdade francesa e portuguesa, o sargento Francisco Xavier (Nuno Lopes) que se apaixona por uma viúva inglesa; a mulher violada e traumatizada pela guerra. Nesta rede todos são símbolos de episódios típicos que ajudam a ilustrar o evento histórico, mas ninguém (diga-se o espectador) quer saber muito se vivem se morrem, se amam ou odeiam.

Resta-nos assim o lado pesado do filme, em sentido não pejorativo, do name above the title , o produtor Paulo Branco. Há nesta derradeira colaboração com Ruiz um cuidado extremo em que o filme não falhe por aí. E precisamente a fotografia no tom certo de André Szankowski, o trabalho de câmara, os locais são de um apuro assinalável (a utilização da música menos). Mas sabemos que quando lidamos com produções em grande todos os defeitos se agigantam. Neste caso é essa esterilidade dramática que empurra o filme para o drama de vida, superficial, romântico, com especial atenção aos desgostos e separações de amor em tempo de guerra (atenção que Mistérios de Lisboa não descurava o romance, antes pelo contrário, vivia dele, mas colocando-o sempre em contexto: o choque do romance de Camilo com a ronde límpida e paciente de Ruiz).

Valeria confessou que, no início, sobre o tema do filme pouco sabia e que foi o êxodo da população (que fez rimar com o seu próprio exílio) a chave de entrada emocional no filme. Não é por isso de estranhar que sejam precisamente os planos dessa massa de gente a percorrer os campos, em fuga lenta, de uma diagonal à outra dos planos, os momentos mais fortes de Linhas de Wellington. Por momentos, não era preciso ir a caminho de nada porque as pessoas essas, e as linhas também, vinham para nós, avançavam na nossa direcção. E é perante esse avanço e essas pessoas que de repente nos lembramos que se está na Europa a filmar um filme sobre uma guerra. Um filme que apesar de tudo recusa um discurso tecnológico e de acção sobre o conflito (a batalha final tem a dignidade proporcional à sua elipse) e prefere contar essa perplexidade moderna que é isso de ter as pessoas a avançar e a avançar e a avançar…

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