Raoul Ruiz morreu. Embora os Mistérios de Lisboa (2011)
não tenha sido o seu derradeiro filme, a sua última cena já parecia de
certa forma premonitória: com a claridade a assaltar o plano final, a
confusão da reminiscência última e do nascimento de um jovem Pedro
jazendo ao contrário na cama de um colégio. Uma criança que no começo da
vida já conhecia (conhecíamos) o seu destino. Uma criança que não se
sabia morta (estava fria), se apenas doente.
Dez meses depois a realidade confirmou esse “cerimonial triste” e o
mundo do cinema teria de se haver sem o corpo, o olhar ágil e perspicaz
do cineasta chileno. Mas o sentimento da sua morte, como falta, talvez
só tenha surgido pelo facto de ter deixado este Linhas de Wellington em
preparação, transformando-o naquilo que ele não queria ser: uma herança
e/ou homenagem. Há portanto a pairar sobre o filme o espírito de um
“acto de generosidade” levado a cabo pela companheira Valeria Sarmiento
que decidiu terminar-lhe o filme (isto é, realizá-lo). A questão é que
já não há Camilo Castelo Branco, nem há Raoul Ruiz. Há apenas essa
vontade de ligação emocional com que a câmara de Valeria filma o célebre
episódio da história portuguesa – as linhas que o general Wellington
mandou constituir para suster o avanço das tropas jacobinas em pleno
período das invasões francesas.
Enquanto Ruiz filmava a uma certa distância a maioria das cenas dos Mistérios para
precisamente, preservando o mistério, melhor depois preparar o
“avanço”, Sarmiento mantém esse recuo mas como dado meramente
observacional (ou dramático). Mas talvez nem seja justo que a realização
carregue toda a “culpa”, uma vez que o mosaico histórico das
personagens de Carlos Saboga nunca permite esse “ir para dentro” das
pessoas de que se fala. Por isso o cast como valor de produção surge algo desaproveitado transformando-se em muitos casos numa espécie de colecção interminável de cameos.
Só alguns: John Malkovich como figura “napoleónica” do general
Wellington, obcecado em que o pintor de serviço corrija a sua imagem e
pinte as suas vitórias e não os seus massacres; Miguel Borges como
mercador soft on the inside, hard on the outside; Michel
Piccoli que, na melhor cena do filme (a par da loucura doce de Marisa
Paredes), fica a falar sozinho da saudade e do silêncio que irrompe nas
conversas dos portugueses; e depois há ainda o homem que anda à procura
da mulher, o homem dividido entre a descendência e lealdade francesa e
portuguesa, o sargento Francisco Xavier (Nuno Lopes) que se apaixona por
uma viúva inglesa; a mulher violada e traumatizada pela guerra. Nesta
rede todos são símbolos de episódios típicos que ajudam a ilustrar o
evento histórico, mas ninguém (diga-se o espectador) quer saber muito se
vivem se morrem, se amam ou odeiam.
Resta-nos assim o lado pesado do filme, em sentido não pejorativo, do name above the title
, o produtor Paulo Branco. Há nesta derradeira colaboração com Ruiz um
cuidado extremo em que o filme não falhe por aí. E precisamente a
fotografia no tom certo de André Szankowski, o trabalho de câmara, os
locais são de um apuro assinalável (a utilização da música menos). Mas
sabemos que quando lidamos com produções em grande todos os defeitos se
agigantam. Neste caso é essa esterilidade dramática que empurra o filme
para o drama de vida, superficial, romântico, com especial atenção aos
desgostos e separações de amor em tempo de guerra (atenção que Mistérios de Lisboa
não descurava o romance, antes pelo contrário, vivia dele, mas
colocando-o sempre em contexto: o choque do romance de Camilo com a ronde límpida e paciente de Ruiz).
Valeria confessou que, no início, sobre o tema do filme pouco sabia e
que foi o êxodo da população (que fez rimar com o seu próprio exílio) a
chave de entrada emocional no filme. Não é por isso de estranhar que
sejam precisamente os planos dessa massa de gente a percorrer os campos,
em fuga lenta, de uma diagonal à outra dos planos, os momentos mais
fortes de Linhas de Wellington. Por momentos, não era
preciso ir a caminho de nada porque as pessoas essas, e as linhas
também, vinham para nós, avançavam na nossa direcção. E é perante esse
avanço e essas pessoas que de repente nos lembramos que se está na
Europa a filmar um filme sobre uma guerra. Um filme que apesar de tudo
recusa um discurso tecnológico e de acção sobre o conflito (a batalha
final tem a dignidade proporcional à sua elipse) e prefere contar essa
perplexidade moderna que é isso de ter as pessoas a avançar e a avançar e
a avançar…
Sem comentários:
Enviar um comentário