Sobre uma obra tão extraordinária como San Zi Mei
(Three Sisters) de Wang Bing, vencedor do prémio deste ano para melhor
longa metragem internacional no Doclisboa, apetece fazer de advogado do
diabo. Não porque não tenha gostado do filme, bem pelo contrário, mas
porque parece útil submete-lo a provações que melhor confirmem a sua
genialidade. Primeiro: será que a sensibilização ocidental e premiação
de um filme sobre a pobreza rural no outro lado no mundo é uma forma de
nos fazer sentir bem, caridosos? Segundo: haverá um sentimento de
compaixão perante as três irmãs que vivem e trabalham como adultos, o
que implica uma vitimização da família? Terceiro: será a longa duração
do filme de Wang Bing (153 minutos) um sinal de que não há no cineasta
chinês uma escolha muito criteriosa dos planos, com se a quantidade
fosse sinónimo de qualidade? Perante isto façamos de advogado do advogado
do diabo. As duas primeira questões resolvem-se numa só. Obviamente que
o nosso olhar não pode deixar de construir uma dificuldade, um engagement
emocional que a espaços vê a figura da irmã mais velha, Sun Yingying,
como heroína (que trabalha, vai à escola, é mãe) em relação à qual
canalizamos sentimentos de compaixão, admiração, etc. Contudo, essa
leitura surge por trabalho exclusivo da tecnologia mais relevante do
cinema: a mente do espectador. As imagens de Wang Bing não constroem,
quer simbólica, quer literalmente, essa vitimização ou exaltação de uma
ruralidade. São imagens muitas vezes secas, desnorteadas, que trabalham
sobretudo a micronarrativa no interior dos planos (de uma democracia
vivencial de onde tudo sai e tudo entra a todo o momento: a ovelha que
afugenta galinhas ou cães; o pai que arrota ou a irmã do meio que cai e
suja a roupa nova) e sobretudo uma noção de presença. E isto leva-nos à
desconstrução do terceiro ponto. Wang Bing filma muito, é incansável,
está sempre lá (num dos planos da chegada do pai e das irmãs mais novas
ao ponto em que caminham para o autocarro que os levará à cidade, o pai
diz a Wang Bing: “chegaste rápido”. E é verdade, Wang Bing mostra neste
seu último filme (como também já o fazia nas suas obras anteriores) uma
atitude ética irreprovável, um comprometimento absoluto e exaustivo em
relação ao tema e às pessoas dos seus filmes, mas também em relação ao
cinema. A sua hipotética “falta de ideias” não é antes uma falta mas sim
a compreensão de que a rodagem de um filme é o momento da procura. E
nesse sentido o seu olhar é um espelho luminoso que irradia tudo o que
vê com uma luz de serenidade frágil. Encontrar momentos que permitam
construir ideias emocionais, de acção que serão concretizadas pela
montagem. Wang Bing podia apenas aproveitar-se da singeleza do universo
infantil, tão permeável aos momentos delicodoces, para alimentar o seu
ego artístico. Muitos o fazem. Ao invés, San Zi Mei é sobre
passar tempo com estas pessoas a partir do qual surgem momentos de
intimidade com o espectador, compreensão da sua rotina, alegrias e
dificuldades. Que se veja aqui uma ode à pobreza e à compaixão isso é um
acrescento que algumas pessoas sentirão no seu olhar cansado, sedento
de apaziguamento. Mas isso não está no filme, quero dizer. Essa presença
e esse tempo que o filme busca são premiadas pela obtenção de momentos
que transformam o filme num verdadeiro monumento há dignidade humana. E
ao ver o último plano do filme penso no cinema Wang Bing como uma
dádiva. Como ter a melhor mãe do mundo, cantou-se.
O
filme de Salomé Lamas que arrecadou quase todo o palmarés este ano
(melhor longa portuguesa, melhor primeira obra, prémio do público,
prémio escolas) com Terra de Ninguém encontra um ponto de apoio no último filme de Rithy Pahn Duch, le maître des forges de l’enfer
(Duch, Master of the Forges of Hell) de que falávamos há uns dias. Em
ambos há uma figura que tem um passado ligado à execução de pessoas e em
ambos o realizador decide dar o espaço à pessoa para se expor, redimir,
reflectir. Enquanto que no filme de Rithy Pahn o espectador passa por
vários momentos (de crença, compaixão, fúria), no filme português um dos
seus paradoxos vai para além do “mundo entre mundos” do mercenário
Paulo de Figueiredo: em nenhum momento, por maiores que sejam as
diferenças culturais entre o protagonista e o espectador, por menos
intrusiva que seja a voz baixa e pausada de Salomé que vai introduzindo
notas sobre a sua relação com Paulo (e sobretudo com o seu discurso) –
nunca, dizíamos, fica em causa a ideia clara que estamos perante um
homem que até certo ponto estava numa posição “errada” (entre o regime e
a sua tekné) que o canalizou para a morte encomendada de
pessoas. E é muito curioso que esta “terra de ninguém” em que Paulo
viveu (até ao final dos seus dias, a sequência final é explícita)
produza um assassino de “brandos costumes” que ora explica quem são as
suas amigas (as suas armas) ora se emociona e vai lá fora fumar um
cigarro. Por sobre tudo isto, há uma outra “luta” a ser travada: a de
Salomé com o espaço na procura de uma identidade cinematográfica para Terra de Ninguém.
O dispositivo interpelante (as sombras, o negro, a “digestão” pelos
capítulos, a voz of) prolonga um “limbo criativo” estabelecido entre a
vídeo-arte e o cinema mas que ganha raízes num registo documental de
maturidade autoral. Depois toda a gente há-de falar na importância do
registo certo sobre um assunto sensível do passado pós-revolucionário
nacional. Mas isso já será ruído...
Ainda
algumas notas telegráficas sobre outros filmes e outras dispersões.
Sobre curtas-metragens, que vi poucas: Sergei Lonitza com O Milagre de Santo António não consegue disfarçar um olhar exótico sobre a dita festa portuguesa, é pena; Ziamlia, a curta-metragem de Victor Asliuk, que emparelhou com Arraianos,
é um belo filme que vai da terra à terra guiado por um forte sentimento
de humanidade que faz com que voluntários vasculhem e desenterrem os
restos mortais de soldados soviéticos que faleceram na segunda guerra
mundial para lhes poder dar um enterro digno; A Raia de Iván
Castiñeiras Gallego é uma hábil homenagem “tarkovskiana” às gentes da
Galiza, com um olhar curioso sobre o contrabando nessa zona de
fronteira; (já agora sobre O Sabor do Leite Creme de Hiroatsu Suzuki, Rossana Torres, que vi na mesma sessão de A Raia, penso
que insiste nesta ideia proustiana da lembrança da juventude em relação
a duas irmãs nonagenárias mas dá-nos pouco além de mimar a experiência
da lentidão na terceira idade no ritmo do filme). Ainda duas outras
curtas, as vencedoras: Aux Bains de la Reine, que venceu o prémio
nacional, dos luso-suiços Maya Kosa e Sérgio da Costa, mostra bons
indicadores sobretudo na construção de um universo imaginário que vai um
pouco buscar ideias ao cinema de João Nicolau. Pisca o olho ao
espectador com cenas que provocam o riso (há um gag que parece um pouco
uma imitação do national geographic nas termas) mas regra geral ainda padece dos problemas das primeiras obras, demasiadas ideias para tão pouco filme. O filme Dusty Night
de Ali Hazara, que venceu a competição internacional, escreve bem a
contra luz, uma mensagem de tristeza ditada pelo sísifico trabalho dos
varredores de Cabul.
E finalmente dizer que este ano não houve
“choques” na atribuição dos prémios (isso acontece em alguns festivais
sobretudo quando os júris são de composição muito heterogénea) e que a
insistência positiva em apenas três sessões diárias possíveis (não havia
filmes à meia noite ou às 11 da manhã por exemplo) mostraram uma
procura de coerência para o evento. O Doclisboa já há algum tempo
atingiu o patamar de um dos melhores festivais internacionais de
documentário e compreendeu que este ano tinha tempo para estabilizar e
limar o conceito (as limitações orçamentais "ajudaram"), aprofundando
algumas áreas ligadas à discussão e aos colóquios que prolongam essa
experiência dos festivais como lugares pluri-disciplinares para pensar o
cinema e o mundo através dele. Penso que nem sempre "mais é melhor" e,
por isso, aposta ganha. Até para o ano.
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