quinta-feira, 14 de julho de 2011

Stellet Licht: a renovação de um milagre

A captação e retrato do movimento, uma obsessão marcante do Sec. XIX que teve o condão de unir cépticos e místicos em torno de inúmeras aparelhagens e técnicas, deixou perceber que o filão de onde nasceria o cinema revestiria na sua génese um ideal aglutinador: a ilusão de pôr a humanidade a ver a vida tal qual ela era. Se isso é um facto e sobre ele se aplicou à sétima arte o estatuto de arte popular, de massas, de fenómeno artístico do «mais um», também é verdade que no seu interior o cinema conteve sempre a génese da sua destruição, ou por outra, o momento fracturante em que o «um» recusa ser «mais um» e luta pelo estatuto de «outro».

O famoso final de ORDET, de Carl Dreyer, (1955) expressamente recriado em STELLET LICHT, de Reygadas (2007), é um desses momentos. A «ressurreição» de Inger é um instante da História do Cinema que separa as águas e permite identificar quem «está com o cinema» e quem não está, quem incorpora, não sem dificuldade, os limites da descrença, do milagre, do descrédito, que trazem o cinema para dentro de um espaço onde o pensamento remói, reestrutura, transforma a identidade daqueles que o vêem.

Neste sentido, mais do que uma homenagem de Reygadas ao mestre dinamarquês e mais do que o exercício intelectual de perceber se é a comunidade Menonita mexicana (a comunidade anabatista com origem prussiana na época da Reforma que STELLET retrata) que potencia um ambiente apropriado para um «remake» da obra de Dreyer ou viceversa, o importante é identificar o ponto de tensão de um filme de ritmo tão cerimonial. STELLET LICHT enquadrado entre duas majestosas sequências do nascer e morrer de um dia, vive sempre na «angústia», na luta silenciosa, entre aquilo que é e aquilo que quer representar.

O que é que STELLET é? É o drama rural de Johan e da sua escolha entre duas mulheres, a esposa, Esther e a amante, Marianne, escolha entre a fé e a carne, o sagrado e o profano, o tema de Dreyer por excelência.

O que é que STELLETrepresenta? Aqui é mais complicado avançar uma resposta. O filme de Reygadas, talvez represente o desejo de renovação de um «milagre». «Milagre» do cinema contemporâneo na potencialidade de fracturar esquemas sensoriais dominantes, na sua capacidade de parar o tempo, (como Johan que pára o relógio para o filme começar) e, ao contrário do que diz Marianne a Johan, ser capaz de «voltar atrás». Mas esse olhar para trás não nasce de uma imobilidade purista e nostálgica mas sim de necessidade de introduzir momentos de retrospecção que questionam, que tornam tortuosa a marcha triunfante que parece levar o cinema em frente.

E essa luta apresentação/representação multiplica-se em vários pontos atravessando todo o filme. Os seus personagens representam, mas a stillness da sua direcção de actores ordena-lhes que, paradoxalmente, apenas sejam. A mise-en-scène decide representar o naturalismo da desordem (o affair), apresentando-o num contexto de simetria, quase autista, dos seus planos e composições. Depois, a apresentação do poder dos corpos - particularmente a ressurreição, «deus ex machina» final, que se converte num verdadeiro «deus ex corpo», o corpo da salvadora Marianne, na resolução do dilema da transcendência que o filme representa. E ainda os movimentos de câmara, particularmente os seus zooms lentos e planos fixos que ao «tremerem» na sua presença humana, representam o feixe de acções ritualistas, ora no pequeno-almoço ora no amor, mas nunca abandonam uma vontade primitivista, diria-se, de comunicar. O espectador sente que Reygadas esteve lá, sempre lá. E a «need to feel» que Johan confessa ao pai que motivou o seu affair é também a nossa. Necessidade de sentir, é isso que o filme nos deixa como herança. Herança hoje, cada vez mais, simultaneamente leve e pesada.

Sem comentários:

Enviar um comentário