quinta-feira, 21 de julho de 2011

Culpa espontânea


Perguntamo-nos como pode hoje um funcionário público ler «O Castelo», de Kafka?

Diríamos que será a mesma coisa que espreitar por um espelho distorcido que em vez de retribuir uma imagem molenga, desfocada, de homens gorduchos ou envelhecidos precocemente, endeusa, mitifica o funcionarismo. Kafka unia a distinção de classes, o rastro da autoridade fantástica do soberano, ao ridículo de uma novidade: a burocracia. Hoje, o burocrata já não é «Deus», nem mesmo sequer o demónio. É uma personagem secundária que paralisa o enredo, que congela o diálogo.

No «Castelo» os funcionários têm inúmeras qualidades, são ardentes amantes, possuem inteligência suprema e subjugam os membros da aldeia apenas com o pensamento. Mais: conduzem os pobres, os habitados pelo espírito do povo, a pedirem perdão. E a culpa nasce no aldeão sem que o funcionário lhe aponte uma falta. Culpa, hum, espontânea. Menos de 100 anos se passaram desde que Kafka concebeu este universo de inversões e o sentimento de culpa mantém-se. Foi transferida a fonte das turbações para outras classes: magnatas, empreendedores, tecnocratas, boys. Os funcionários transformaram-se em funcionários públicos mas o mais perturbador é que estes já não possuem a capacidade de perdoar. Perderam-na? Não perdoam porque já não há nada a perdoar. Porque a política é cada menos da esfera da culpa.

Mas então que fazer com esta culpa?

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