É escusado negar uma aura quase mística que ainda hoje rodeia CORTE DE CABELO, estreia nas longas-metragens do realizador Joaquim Sapinho. Nomeado ao Leopardo de Ouro em Locarno em 1995, o filme parte de um acontecimento trivial - o casamento civil de uma jovem que trabalha numa perfumaria (Carla Bolito) e de um realizador (Marco Delgado) e de uma «lua-de-mel» mais atribulada pela incerteza do próprio amor entre ambos do que por peripécias exteriores. O que ainda permanece forte em CORTE DE CABELO é que, por um lado, existem tiques de uma primeira obra, com o excessivo veicular de ideias demasiado sugestivas, sobretudo ao nível da mise-en-scène, fazendo de uma história comum um emaranhado de falsa complexidade, um apanhado de maneirismos que hoje vemos como ingenuidades (-«Ainda hoje de manhã éramos amigos, c*!», diz uma personagem a dada ocasião). Mas por outro, esse excesso joga pontual e inadvertidamente a favor do filme: há uma miscenização entre o tom ultra moderno do cinema europeu da altura cuja influência Joaquim Sapinho veio a beber, e um certo classicismo americano, sobretudo veiculado na montagem nas suas sequências finais (lembramo-nos da fuga de Maria e Orlando dos skinheads durante a noite). Desta feita, tratemos de elogiar a virtude da experimentação que vai do risível ao sublime em espaço de poucos minutos. Veja-se ainda a cena inicial após o genérico, na apresentação da protagonista, onde a luz, a cor, a música concebem uma atmosfera kitsch que não mais iria ser largada pelo cinema português, como na cinematografia de um cineasta como João Pedro Rodrigues, por exemplo.
domingo, 31 de julho de 2011
quarta-feira, 27 de julho de 2011
O fardo de Amy
Sobre a morte de Amy Winehouse nada adianta ser dito sobre a maior ou menor elasticidade do músculo do gosto que a posiciona mais acima ou mais baixo na escala da sua condição artística. Muito menos adianta escrutinar o interesse semi-mórbido pela efeméride, que a coloca como mais uma da lista do malogrado clube dos 27, composto por outros artistas que morreram com a referida idade. Ou melhor, aquilo que sobre estes vectores se pode dizer é que a qualidade musical da cantora sempre foi ensombrada pelo seu estatuto de ícone da fragilidade. O amparo que inspirava - a pena de uma biografia atribulada pela adolescência difícil, as drogas, desgostos de amor - tudo isto foram elementos que transpareciam na sua qualidade de performer. Ou seja, o seu insucesso biográfico determinava o seu sucesso artístico. No entanto, essa transparência converteu-se em choque de linguagens (a pessoal e a pública) no exacto momento em que as contradições de uma vida passaram a ser veiculadas sem filtro no palco do seu estatuto público. A sua mitificação resulta então de um penoso processo de transferência das normais agruras do quotidiano para uma plataforma de escrutínio, que, ora as punha a nu, ora as potenciava.
Desta forma, o que se nos oferece dizer sobre a morte de Amy é que esta demonstra que o estatuto de estrela (como as repartições públicas ou as escolas, como referia Hofmannsthal), define-se hoje como instituição em que a vida é descurada em detrimento de um certo mecanismo de vida. Neste mecanismo de vida, a de uma estrela, existe uma premeditação do gesto, do comportamento, na qual o tempo, compartimentado, faz sobressair o fosso entre o que é essencial ao género humano- o manter tudo junto, tudo como possível – e a contradição que separa o que Amy Winehouse era, do que devia ser.
Amy tinha consciência desta diferença, entre o ser «tudo possível» e o mecanismo omnipoderoso da sua persona musical, que a elevava acima dos demais, fazendo do púlpito um estado de permanente vivência. Se às crianças se retira, por convenção, o sentido do imediato das coisas, do superior «divino» que daí pode advir, no modo de vida de uma estrela (como Amy foi), o imediato era o presente inabarcável. Um presente como uma crença em que toda a experiência de um modo de viver pudesse substituir a verdadeira vida, aquela onde tudo é uno, aquela onde não há contradição no «vivível».
segunda-feira, 25 de julho de 2011
Em jeito de epitáfio
«Quero que a minha existência
Seja uma suprema ofensa
Aos abutres impacientes
Desde os anos quarenta,
Por eu ilustrar sem complexo
O sangue, a merda e o sexo.»
in PENSE-BÊTES- Roland Topor
domingo, 24 de julho de 2011
sexta-feira, 22 de julho de 2011
Vítima do Dever
-Não é bonito fazer nas calças! - digo em voz alta, sem avaliar bem a situação.
Com olhar feroz, a boca torcida, a nuca congestionada («Atenção, Nicolas, não tenhas nenhuma apoplexia!... Vamos lá ver, Nicolas, podias ser pai dele!...), por três vezes o Nicolas espetou a faca no coração do pobre polícia, que caiu redondo no chão ensaguentado, vítima do dever. »
in UMA VÍTIMA DO DEVER- Eugène Ionesco
quinta-feira, 21 de julho de 2011
Uma ideia, um plano
Quem segue os enconsos meandros da blogosfera cinéfila sabe que ela vive da obsessão revitalizadora de gente que ama à la folie o cinema e de pequenas grandes iniciativas que têm o condão de pôr o «people» a pensar. Um bom exemplo destas iniciativas é a rubrica do João Palhares no seu Cine Resort: periodicamente convida bloggers de cinema a escolher um plano de um filme qualquer e a falar sobre ele. A ideia não podia ser mais simples e, consequentemente, estimulante. Espreitem a minha contribuição aqui.
Culpa espontânea
Diríamos que será a mesma coisa que espreitar por um espelho distorcido que em vez de retribuir uma imagem molenga, desfocada, de homens gorduchos ou envelhecidos precocemente, endeusa, mitifica o funcionarismo. Kafka unia a distinção de classes, o rastro da autoridade fantástica do soberano, ao ridículo de uma novidade: a burocracia. Hoje, o burocrata já não é «Deus», nem mesmo sequer o demónio. É uma personagem secundária que paralisa o enredo, que congela o diálogo.
No «Castelo» os funcionários têm inúmeras qualidades, são ardentes amantes, possuem inteligência suprema e subjugam os membros da aldeia apenas com o pensamento. Mais: conduzem os pobres, os habitados pelo espírito do povo, a pedirem perdão. E a culpa nasce no aldeão sem que o funcionário lhe aponte uma falta. Culpa, hum, espontânea. Menos de 100 anos se passaram desde que Kafka concebeu este universo de inversões e o sentimento de culpa mantém-se. Foi transferida a fonte das turbações para outras classes: magnatas, empreendedores, tecnocratas, boys. Os funcionários transformaram-se em funcionários públicos mas o mais perturbador é que estes já não possuem a capacidade de perdoar. Perderam-na? Não perdoam porque já não há nada a perdoar. Porque a política é cada menos da esfera da culpa.
Mas então que fazer com esta culpa?
terça-feira, 19 de julho de 2011
Fantasmas, espíritos e demais assombrações
A principal razão que explica o sucesso do conceito de SAW, e que valeu a James Wan, seu criador, a compra de uma ilha com os lucros do projecto, assenta sobretudo na capacidade de acrescentar à dimensão sangrenta e psicopata de um estilo de terror explorado até ao tutano, a estrutura de jogo sádico («I wanna play a game»), linha na qual oscilava o suspense que dita o fim ou salvação das suas vítimas. Como se o habitual dilema moralista que o terror se habitua a explorar fosse encapotado sob um agradável quebra-cabeças (passe-se a expressão) de Verão (passe-se a expressão outra vez).
Se a saga se esvaziou progressivamente de conteúdo, pendendo para o lado da enésima exploração gráfica das suas mortes, o realizador americano e o seu argumentista Leigh Whannell perceberam que era sobretudo esse lado lúdico o seu valor acrescentado. Desta clarividência surge INSIDIOUS, filme que junta a dupla à produção de Oren Peli, realizador de outro sucesso mais comedido, sem direito a ilhas, PARANORMAL ACTIVITY (2007).
Aqui o «jogo» é o das aparições - desaparições, o das mansões sombrias, seus quartos e corredores como recreio para o suspense, ou o jogo de esticar a metafísica ao limite da credulidade (à boa maneira de M. Night Shyamalan), numa homenagem ao velhinho género fantástico das casas assombradas. Josh (Patrick Wilson) e Renai (Rose Byrne) são um casal que se vê a braços com um filho comatoso (Dalton) e a presença de uma quantidade de espíritos que por alguma razão insistem em assombrar os lares desta família.
É precisamente a dupla dimensão de jogo e homenagem a um género que faz de INSIDIOUS um interessante filme de terror, na capacidade que tem de transportar em cada plano universos concorrentes. Por exemplo, a forma como a extraordinária montagem sonora - com um alarme da casa odioso que toca a meio da noite, com o ciciar do inter-comunicador ou o sinal da máquina a que está ligado Dalton - insiste em prolongar, como jogo precisamente, a agonia do invisível. E depois, há CARNIVAL OF SOULS, THE AMITYVILLE, POLTERGEIST, THE HAUNTING, DANZA MACABRA, DON’T LOOK NOW, todos património do género que James Wan conhece e que faz questão de lembrar durante INSIDIOUS.
Pode perguntar-se: e para lá do fetichismo cinéfilo há novidade? Numa altura em que a saturação de sangue e violência fazem da retracção, do «mistério», só por si, um inestimável instrumento de frisson (a insistência em sentir qualquer coisa), a táctica de Wan é já meia vitória. Ainda assim é legítimo dizer-se que quando INSIDIOUS parte para a canónica cena a dois terços do filme de explicação dos eventos, «perde-se» em projecções astrais e dimensões alternativas. Ainda assim, a noção que todos têm da truculência da coisa, de que a montanha pare ratos todos os dias, parece ser compensada pela auto-ironia. Senão como explicar a presença de Barbara Hershey, protagonista de um filme de culto muito semelhante na sua storyline, THE ENTITY (1968)? Ou a dupla de personagens «caçadores de fantasmas»? Ou mesmo a máscara inacreditável usada pela vidente?
Em suma, INSIDIOUS certamente não fará de Wan ou Whannell visionários do género. Contudo há uma dimensão artesanal em toda a recriação dos ambientes tipo que faz do filme um agradável e competente exercício de rememoração do género que se pretende homenagear.
INSIDIOUS estreia esta quinta-feira nas salas portuguesas.