“Eis a segunda frase de The Harvest of Sorrow: Soviet Collectivization and the Terror-Famine [A Ceifa da Dor: A Colectivização Soviética e o Terror-Fome], de Robert Conquest:
No caso presente, podemos pôr isto em persepctiva se dissermos que nos actos aqui registados se perderam cerca de vinte vidas humanas, não por cada palavra, mas por cada letra deste livro.
Esta frase representa 3140 vidas. O livro tem 411 páginas.
“Comia-se estrume de cavalo, em parte porque muitas vezes continha grãos inteiros de trigo (1502 vidas). «Oleska Voitrikhovski salvou a sua vida e as da sua família… consumindo a carne de cavalos que tinham morrido na herdade colectiva de mormo e outras doenças» (2560 vidas). Conquest cita o romance ensaístico-documental de Vassili Grossman Forever Flowing: «E os rostos das crianças estavam envelhecidos, atormentados, como se elas tivessem setenta anos. E na primavera já não tinham rostos. Não, tinham umas cabeças de pássaros com bicos, ou cabeças de sapo – lábios finos, compridos – e algumas delas pareciam peixes, com as bocas abertas» (4720 vidas). E Grossman prossegue:
Num pavilhão havia uma espécie de guerra. Todos se vigiavam apertadamente… A mulher virou-se contra o marido e o marido contra a mulher. A mãe odiava os filhos. E num outro pavilhão o amor manteve-se inviolável até ao fim. Conheci uma mulher com quatro filhos. Contava-lhes contos de fadas e lendas para eles esquecerem a fome. Mal podia mexer a língua, mas tomava-os nuns braços que quase não tinha forças para erguer vazios. O amor vivia dentro dela. E as pessoas repararam que onde havia ódio se morria mais depressa. Mas a verdade é que o amor não salvou ninguém. Toda a aldeia pereceu até ao último habitante. Não restou vida alguma.
Ou seja: 10780 vidas. O canibalismo praticou-se em larga escala – e foi punido em larga escala. Nem todos esses lastimáveis antropófagos receberam o castigo supremo. No fim dos anos trinta, 325 canibais da Ucrânia cumpriam ainda penas perpétuas nos campos de escravos do Báltico.
A fome foi uma fome imposta: os camponeses eram desapossados dos seus alimentos. A 11 de Junho de 1933, o jornal ucraniano Visti louvava um polícia secreto “atento” por desmascarar e prender um “sabotador fascista” que tinha escondido pão num buraco sob um monte de forragem. Essa palavra, fascista. Cento e sessenta vidas.
Nestas páginas, preposições inocentes como de ou até representam, cada uma, o assassinato de seis ou sete grandes famílias. Há apenas um livro importante sobre este assunto: o de Conquest. Recorde-se: tem 411 páginas.”
No caso presente, podemos pôr isto em persepctiva se dissermos que nos actos aqui registados se perderam cerca de vinte vidas humanas, não por cada palavra, mas por cada letra deste livro.
Esta frase representa 3140 vidas. O livro tem 411 páginas.
“Comia-se estrume de cavalo, em parte porque muitas vezes continha grãos inteiros de trigo (1502 vidas). «Oleska Voitrikhovski salvou a sua vida e as da sua família… consumindo a carne de cavalos que tinham morrido na herdade colectiva de mormo e outras doenças» (2560 vidas). Conquest cita o romance ensaístico-documental de Vassili Grossman Forever Flowing: «E os rostos das crianças estavam envelhecidos, atormentados, como se elas tivessem setenta anos. E na primavera já não tinham rostos. Não, tinham umas cabeças de pássaros com bicos, ou cabeças de sapo – lábios finos, compridos – e algumas delas pareciam peixes, com as bocas abertas» (4720 vidas). E Grossman prossegue:
Num pavilhão havia uma espécie de guerra. Todos se vigiavam apertadamente… A mulher virou-se contra o marido e o marido contra a mulher. A mãe odiava os filhos. E num outro pavilhão o amor manteve-se inviolável até ao fim. Conheci uma mulher com quatro filhos. Contava-lhes contos de fadas e lendas para eles esquecerem a fome. Mal podia mexer a língua, mas tomava-os nuns braços que quase não tinha forças para erguer vazios. O amor vivia dentro dela. E as pessoas repararam que onde havia ódio se morria mais depressa. Mas a verdade é que o amor não salvou ninguém. Toda a aldeia pereceu até ao último habitante. Não restou vida alguma.
Ou seja: 10780 vidas. O canibalismo praticou-se em larga escala – e foi punido em larga escala. Nem todos esses lastimáveis antropófagos receberam o castigo supremo. No fim dos anos trinta, 325 canibais da Ucrânia cumpriam ainda penas perpétuas nos campos de escravos do Báltico.
A fome foi uma fome imposta: os camponeses eram desapossados dos seus alimentos. A 11 de Junho de 1933, o jornal ucraniano Visti louvava um polícia secreto “atento” por desmascarar e prender um “sabotador fascista” que tinha escondido pão num buraco sob um monte de forragem. Essa palavra, fascista. Cento e sessenta vidas.
Nestas páginas, preposições inocentes como de ou até representam, cada uma, o assassinato de seis ou sete grandes famílias. Há apenas um livro importante sobre este assunto: o de Conquest. Recorde-se: tem 411 páginas.”
In Koba, o Terrível – de Martin Amis (2002)