segunda-feira, 2 de agosto de 2010

A “meia luz” de Gaslight: entre o sadismo e o saudosismo

É um saudável exercício de sadismo imaginar Lars Von Trier, o cineasta decepador de clitóris e vertedor de lágrimas femininas, a filmar a galeria de heroínas da obra de George Cukor (com Eliza Doolitle à cabeça, claro está). A antinomia entre os dois é uma ideia interessante, já feita e um pouco imobilizadora. Contudo, quem vir Gaslight, o “mindfucking gothic tale” que o cineasta das mulheres fez em 1944, e que valeu o primeiro oscar de melhor actriz a Ingrid Bergman, certamente verá nela, a actriz, e nele, o cineasta, um inusitado talento para o martírio. Bergman é Paula, uma mulher que assistiu à morte da tia no nº 9 da Angel Street em Londres, e que resolve passar um tempo em Itália para recuperar do episódio. É lá, nas aulas de canto, que se apaixona por Gregory (excepcional presença de Charles Boyer). Casam-se e ele convence-a a viver na antiga casa em Londres sob pretensa razão de gostar da cidade. O que se segue é Gregory a tentar enlouquecer Paula por motivos que no final se revelarão, obviamente. A questão é: não é novo que um homem enlouqueça uma mulher. No cinema, quero dizer. Aliás, Ingrid Bergman quase que repetiu o papel um ano depois em Notorious de Hitchcock. Agora, o interessante é que em Paula, o progressivo desmoronamento da sua sanidade mental, sem que a ela seja dado qualquer impulso de salvação, é um dos elementos que contribui para o que é uma “imobilidade emocional" do espectador e consequente sinal de envelhecimento de Gaslight. Inversamente, com as devidíssimas diferenças, a moldagem de expectativas que gente como Haneke e Amat Escalante faz é “salutar” exercício moderno e visionário. Estranho. Como pode o mesmo estatismo, a mesma expectativa quebrada, ser ora velha, ora nova?

Seja como for, Gaslight envelheceu mesmo. A moral vitoriana na relação homem / mulher, a ausência de contorno do argumento - Cukor poderá até saber filmar como Hitchcock, mas não mantém o investimento dramático - são tudo sinais da sua imobilidade no tempo. Contudo, para cada elemento imóvel há um outro que se mexe: Gaslight é ainda um interessante exercício atmosférico onde a Londres nocturna e a mansão, com as lâmpadas do título a desenhar as sombras do gótico, ganham contornos de personagem. E embora se veja sobretudo um interesse de Cukor em filmar a cena de lirismo final e redentor, o certo é que é também a câmara deste que moderniza o filme. No interior teatralizado da mansão só esse seu movimento mimou o que o olhar de Bergman mostrava: o vai-vem de uma mente entre a sanidade e a loucura.

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