Escadinha
Imagino que teria uns quatro anos, porque não me lembro da existência da minha irmã nesta altura (ela nasceu quando eu tinha cinco). Lembro-me do móvel do vídeo e televisão ocupar o espaço no nosso quarto, onde também me lembro da cama dela. Espaço este em frente à parede oposta à minha cama, ao lado desta, uma escrivaninha que nunca usava. Em frente, debaixo da janela, uma arca de madeira onde encontrava sempre um peluche, um urso genérico de pelo seco e expressão estragada. Assustava-me. Por isso voltava sempre a colocá-lo dentro da arca. Acho que a minha mãe nunca percebeu como o odiava, porque voltava sempre a tirá-lo para o deixar em cima da arca. Julgo que estas especulações são factos. Os meus perdões se estiver a inventar.
Era um miúdo acabado de chegar a Torres Vedras, com dificuldade em fazer sestas e amigos no infantário e uma espécie de sotaque nortenho apanhado no ano que tinha passado em Bragança. O meu pai deslocava-se de ano a ano por motivos de trabalho. Em Torres o escritório dele era mesmo ao lado do infantário, por isso passava lá os fins de tarde à espera que ele acabasse o que tinha a fazer. Quando saíamos, passávamos sempre no mesmo sítio: o clube de vídeo, de portas abertas até às 8 da noite no mesmo edifício do escritório dele. Era um sítio estranho. Levar para casa o que queria ver uma vez por dia? Que luxo.
Como é óbvio, o meu pai escolhia sempre as cassetes com pessoas na capa, as das filas do meio, mas eu dirigia-me sempre à fila mais abaixo. A fila única dos “desenhos-animados”. Trouxe para casa vezes infinitas as mesmas cassetes, com os mesmos episódios das mesmas coisas. Na altura não haviam colectâneas integrais de séries, portanto era melhor do que esperar para ver as coisas na TV. Numa dessas vezes escolhi uma cassete das Tartarugas Ninja que já me tinha passado pelas mãos várias vezes. Ao chegar a casa devo-me ter apressado a retirá-la da caixa para a meter no vídeo. Mas notei imediatamente numa diferença. O autocolante colado à face superior da cassete deveria ser colorido. Deveria ser algo como amarelo ou azul, não necessariamente temático do esquema de cores de TMNT, mas deveria ser colorido. Não era. Em vez disso, era um branco, acastanhado pela sujidade, com letras negras numa font nada amigável. Estúpido como era, foi necessário colocar a cassete no vídeo e ver os trailers em live-action para ter a certeza de que aquilo não tinha tartarugas, nem ninjas. Carreguei eject e dirigi-me à minha mãe de cassete na mão.
“Mãe, que é isto?” (eu não sabia ler).
“Hmm...” (a minha mãe agarrou na cassete).
“Diz aqui: O BONECO DIABÓLICO.”
A minha mãe disse-me que se deviam ter enganado no clube de vídeo.
“Não vejas isto. Amanhã vamos trocar.”
Pedi-lhe para ficar com a cassete na mesma. Para a pôr na caixa.
Pela primeira vez senti aquele sentimento que se associa a um objecto proibido. O mesmo que voltaria a sentir alguns anos mais tarde quando na posse de gelado antes da hora de jantar, ou de páginas rasgadas de uma revista porno. Certamente não iria ser naquela noite que iria enfrentar o desmame do meu vício por vhs’s.
“Não pode ser assim tão mau. Uma coisa de adultos.” Inseri a cassete, prometendo-me a mim mesmo que parava se corresse mal.
O filme começou. Lembro-me perfeitamente da sequência do genérico inicial. Palavras que apareciam e desapareciam sobre imagens de um pedaço de plástico derretido coberto do que tinha de ser sangue. Uma fábrica inactiva onde as máquinas ganhavam vida e faziam com que o plástico e o sangue adquirissem forma liquida para se misturar com mais plástico, de modo a criar um padrão em espiral que depois era moldado numa série de planos pormenor para criar um boneco de cara infantil.
Link aqui, faça favor (nota: a realidade é um pouco diferente da descrição):
Depois disso sei que parei quando o “boneco diabólico” apareceu na cena seguinte. Tinha voz de adulto. Matou alguém. Era demasiado para mim. Gritei. Saltei para cima do eject. Gritei outra vez. A minha mãe entrou no quarto. A festa toda.
As noites seguintes não foram agradáveis para os meus pais. Infelizmente, obriguei a minha mãe a dormir comigo durante algumas noites. “Infelizmente” porque ela acabou por se fartar. Na noite em que isso aconteceu acordei no escuro e senti que a minha mãe não estava lá. Mas eu estava abraçado a alguém. Querendo controlar-me, senti devagar quem estava ali deitado. Pelo seco. O peluche que voltava sempre a sair do baú. Não foi fixe.
Resta dizer que até aparecer uma Mega-Drive na minha vida comecei a usar muito mais a escrivaninha.
Anos depois, em Loures, olhava com respeito e receio para a enorme secção de terror do clube de vídeo do meu bairro. Lá no meio estava o "Boneco Diabólico". Devagar, deixei de levar sempre as mesmas cassetes, com os mesmos episódios das mesmas coisas e comecei a ver filmes-filmes. Comecei a fazer uma escadinha que ainda não acabou e depois me levou aos filmes de terror e de volta ao "Boneco Diabólico", assim nomeado em Portugal apesar do título original ser Child’s Play 3. The more you know.
Vi-o com a minha irmã. Ela não teve medo.
Gonçalo Soares *
*"Gonçalo Castelo Soares é realizador sem prémios e aprendiz do skillset necessário para viver a vida satisfeita. Gosta de andar de um lado para o outro e de achar que tem sempre razão. Obviamente não tem sempre razão.”
Gonçalo Soares *
*"Gonçalo Castelo Soares é realizador sem prémios e aprendiz do skillset necessário para viver a vida satisfeita. Gosta de andar de um lado para o outro e de achar que tem sempre razão. Obviamente não tem sempre razão.”
Edições anteriores: #1 Francisco Rocha
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# 15 Vasco Câmara
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#18 Luís Mendonça
#19 Rui Alves de Sousa
# 20 Carlos Pereira
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