Foi no tempo em que os animais falavam e a algazarra era grande, porque tudo isto se passou em África. Lá em casa éramos três, pessoas quero dizer, e a coisa era muito complicada. No que às raízes da minha cinefilia diz respeito, porque de resto éramos uma família tranquila e feliz.
Os meus pais eram muito cinéfilos, embora não o soubessem porque na altura não havia essa palavra. Nem havia televisão, vejam só. Os filmes que viam eram filmes com, não eram filmes de. Filmes com a Sophia Loren, com a Elizabeth Taylor, com o Anthony Quinn, que toda a gente pensava que era grego. Eu também era muito cinéfilo, à minha maneira: acho que as minhas primeiras experiências tinham sido mesmo em casa, com a máquina Super8 que o meu pai tinha comprado numa viagem à metrópole e os filmes que se projectavam em ocasiões especiais como aniversários ou domingos à tarde eram sempre os mesmos, Charlot, Bucha e Estica, desenhos animados da Disney e os inevitáveis home movies, que não se chamavam home movies mas sim “aquele filme das férias”. A ida ao cinema foi sempre um acontecimento celebrado com entusiasmo e com o tempo passou a ser cada vez mais frequente. Não consigo lembrar-me muito bem dessas experiências iniciais: sei que a Marisol foi uma referência, que acompanhei com assiduidade a breve carreira de Mark Lester, o actor de Oliver!, e que havia de vez em quando umas histórias edificantes de animais como Uma Leoa Chamada Elsa. Não era, porém, fácil irmos todos juntos ao cinema.
A minha mãe, mulher de beleza altiva e muito carácter, que era o mesmo que dizer de nariz empinado e nada disposta a contemporizar, gostava do passo elegante de Gregory Peck, do rosto exótico de Omar Sharif e, acima de tudo, da voz sensual de James Mason (os adjectivos são meus, claro; ela dizia apenas que tinham muita classe). Odiava comédias, bonecada e operetas. Só uma vez a ouvi falar com apreço de um musical, a Escola de Sereias, mas eu acho que era porque lhe diziam que era parecida com a Esther Williams. Quando eu era criança e ia ao cinema com o meu pai, ela escusava-se sempre com umas actividades misteriosas do género cabeleireiro ou chás. É verdade que quando nos encontrávamos depois do filme, a banana costumava luzir a laca ainda fresca e havia um cheiro agradável a mil-folhas. Não me lembro nada dela ao meu lado a ver a Mary Poppins.
Do meu pai, sim. Era um homem charmoso, bem disposto e de sensibilidade à flor da pele, que é como quem diz de uma pieguice desavergonhada; ria até às lágrimas com o Charlot, os filmes do Cantinflas, o Sr. Hulot, a série “Com Jeito Vai...” e venerava, acima de tudo, Walt Disney. Andava com a minha mãe nas palminhas e olhava para ela com aquela expressão abobalhada dos homens que amam toda a vida a mesma mulher. Às vezes, para a convencer a ver alguns filmes com o Vittorio Gassman ou o Jack Lemmon, dizia que eram “alta comédia”, categoria a que nem eu tinha acesso. Em vão; ligeirinho lembro-me que viram juntos A Flor do Cacto, graças à Ingrid Bergman, para quem a minha mãe sempre abriu uma excepção; de resto, ela é que escolhia e os filmes tinham de ter um tema sério (Adivinha Quem Vem Jantar alimentou horas de discussão animada nesses anos mornos de final de regime) ou um poder de sedução irresistível (A Piscina, onde a grande questão era saber se Romy e Alain ainda se amavam). O meu pai era muito sensível ao sofrimento das crianças: falava-me com entusiasmo dum filme muito antigo, os Ladrões de Bicicletas, e nunca me esquecerei da situação embaraçosa que vivi durante a projecção do Incompreendido, onde soluçou do princípio ao fim. A partir dessa altura acho que passei mesmo a exigir ir ao cinema sozinho.
A viragem da infância para a adolescência foi difícil para a minha cinefilia incipiente. Eu sempre tinha sido uma criança precoce, o que significa, como todos sabemos, que era um menino mimado insuportável, com a mania, como se dizia. A mania que era diferente, a mania que era superior, a mania que era único. Nessa fase crucial do crescimento, que na altura era designada por idade da gaveta (embora lá em casa essa idade parecesse ser intemporal, pois a expressão começou a ser-me aplicada muito cedo e acho que a última vez que a ouvi já andava na faculdade), eu levei algum tempo a encontrar-me. Os desenhos animados já não me diziam muito, o Louis de Funès mal me arrancava um sorriso, as coboiadas que os meus colegas começavam a ver pareciam-me todas uns barretes, as love stories que entusiasmavam minhas primas eram umas pachovadas intermináveis. A coisa estava difícil.
Havia já algum tempo que os livros estavam a ser um melhor alimento para a minha imaginação. Os Cinco, a revista Tintim, Júlio Verne. Sobretudo Júlio (assim mesmo) Verne. Lia tudo o que podia: Cinco Semanas em Balão, A Ilha Misteriosa, Da Terra à Lua, Viagem ao Centro da Terra; os livros de Júlio Verne pareciam não ter fim, as suas aventuras, as suas invenções e as suas personagens ressoavam na minha imaginação como acho que nunca mais personagens de ficção o voltaram a fazer.
Um dia, ao passar em frente do cinema Nacional vindo da livraria Clássica, onde tinha ido ver se já havia a última remessa da Tintim (a revista era semanal mas lá chegava por atacado com uma periodicidade arbitrária), o meu olhar foi atraído por cartazes que me fizeram imediatamente entrar em transe pois anunciavam a reposição (deviam ser férias) de um filme baseado num livro de Júlio Verne que devorara havia pouco tempo: Vinte Mil Léguas Submarinas. Por entre as cores carregadas das fotografias, surgiam imagens daquilo que poderia ser o famoso Nautilus, o misterioso submarino do sinistro Capitão Nemo, uns animais marinhos de múltiplos tentáculos e consistência duvidosa, o loiro Kirk Douglas de t-shirt (na época chamavam-se camisolas interiores) à pirata que eu já conhecia porque tinha uma covinha no queixo como o meu pai e um tipo bem apessoado de barba vestido de roupão tocando um órgão monumental. Nem tudo compreendia, nem tudo correspondia às imagens que eu havia construído a partir do livro, mas regressei a casa numa grande excitação, metendo os pés pelos tentáculos, perguntando ao meu pai se o órgão da igreja podia ser tocado debaixo de água e exigindo à minha mãe que me comprasse uma camisola com riscas de pirata.
Nessa noite reli o livro (era o tempo em que os animais falavam, já o disse), na manhã seguinte não dei muita atenção aos submarinos afundados pelo gigante Adamastor de que falava o setor de história e, à tarde, arranjei maneira de voltar ao átrio do cinema (nessa altura chamava-se foyer) para estudar melhor os cartazes. Olhando com mais atenção, subitamente algumas letras formaram palavras mágicas: livro de Júlio Verne + produção de Walt Disney + interpretação de James Mason. Três nomes bastaram para que um plano maquiavélico de reconciliação familiar, pelo menos no que no domínio do cinema dizia respeito, começasse a urdir-se na minha cabecita adolescente precoce. Três nomes que iriam reunir três familiares desavindos. Meu dito, meu feito: o meu pai aderiu logo à ideia, entusiasmado, a minha mãe hesitou um bocadinho mas depois condescendeu generosamente e eu, nesse domingo, levantei-me muito cedo para ser o primeiro a comprar bilhetes porque a minha mãe só ia se fôssemos para o balcão.
O filme não desiludiu. Ainda dei uns saltos na cadeira, mas achei que o filme estava muito bem feito, tinha uns efeitos especiais notáveis, e sentenciei que era melhor do que o livro. O meu pai continuou a achar que o livro era o livro, mas a sua admiração por Disney não saiu beliscada. A minha mãe fez comentários enternecidos à covinha do Kirk, bocejou de vez em quando e lamentou que o James Mason entrasse pouco. A mim, as imagens do Nautilus continuaram a obcecar-me durante meses. Mas, mais do que isso, as minhas convicções sobre as fronteiras entre o bem o mal saíram abaladas. Afinal, nem sempre aquilo que parecia era. O mundo começou a complicar-se.
Acho que foi a última vez que fomos todos juntos ao cinema. Em breve eu veria The Last Picture Show do Peter Bogdanovich, que passei a datar como o opus #1 da minha cinefilia. O meu pai nunca aderiu muito ao Woody Allen e a minha mãe sempre achou que o Michael Caine carecia da classe dos actores de antigamente.
20,000 Leagues Under the Sea foi dirigido por Richard Fleischer em 1954, imediatamente antes da sua obra-prima, Violent Saturday (Sábado Trágico, 1955). Recentemente, agora já não só com o coração, mas com a razão a apoiar, pude confirmar que é um excelente filme de aventuras e que resistiu brilhantemente à passagem do tempo.
Carlos Nogueira *
* O Carlos Nogueira tem um percurso variado que, nos últimos anos, se concentrou na cinefilia. Entre as suas actividades contam-se a edição de O Cinéfilo Invertebrado, blog dedicado à cobertura de alguns dos principais festivais internacionais de cinema, a colaboração no suplemento Ípsilon do jornal Público, a programação (Próximo Futuro — Gulbenkian; IndieLisboa) e a curadoria (Mostra de Cinemas Ibero-americanos, que encerrará as comemorações da Lisboa 2017 — Capital Ibero-americana da Cultura).
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