Ditou a lei de Walsh, da pala de Walsh, que a estreia de cada um dos volumes de As Mil e Uma Noites de Miguel Gomes, fosse acompanhada de uma história crítica por um “narrador” diferente. Coube-me em sorte O Desolado, volume do meio, a meio caminho de, entre duas fugas: a do seu realizador apoquentado com as abstracções (Eu sou estúpido e a abstração dá-me vertigens, diz o inquieto contador-mor) na primeira parte intitulada O Inquieto e a fuga do passarinheiro, em plena crise da faculdade de contar, já no derradeiro pedaço ao que se deu o nome de O Encantado.
Se à fatia do meio cabe não fugir e ficar desoladamente à espera de uma
conclusão para a grande narrativa de laço e nó desse espelho-tapeçaria
entre o folclore persa medieval e Portugal 2014, para o espectador a
tarefa é a mesma do rei Xariar, marido de Xerazade, a de não cortar a
cabeça ao cineasta antes deste chegar ao fim do que ele tem para contar.
Isto é, a decisão comercial de dividir todas estas noites por três
volumes obriga a uma tarefa de paciência e perseverança para que quem
veja, o veja (o percorra) todo. Ao escriba, a quem cabe a missão do
relato dos méritos e deméritos de uma só porção do todo, o desafio é
outro: o de não desligar a parte do conjunto, dissertando também sobre
todo o projecto em si, nomeadamente desmentindo alguns dos argumentos de
alguns narradores críticos aparentemente desprovidos de justiça visual.
Não deixa de ser curioso que em relação a uma obra que coloca em
questão a capacidade das pequenas histórias descreverem ou fabricarem
uma grande História (uma bigger picture), muitas das
fragmentárias reacções ao filme o transcendam ao ponto de provarem
precisamente essa capacidade. De se extrair delas uma grande árvore
genealógica das alianças e guerras do cinema português, convertendo-o
numa tapeçaria de ideologias que põe à vista o grande horizonte: o
conflito em modo “Portugal dos pequeninos e das capelinhas”, em relação à
uma suposta pureza ascética do cinema, a um modus operandi que deve tocar umas coisas e deixar outras intocáveis [as sms no ecrã em A História do Galo e do Fogo
(Volume I), por exemplo, suscitam aparentemente na delicada mente do
oligofrénico o pecado mais mortal, o ataque mais feroz a uma pretensa
elevação das formas e dos assuntos]. Mas de todo este conflito, que se
extraiam ao menos os argumentos que à obra mais dizem respeito. Vou
falar de três, os que me parecem mais recorrentes: a abordagem política
de As Mil e Uma Noites, a questão de heterogeneidade e, finalmente, a dimensão da exposição (ou aquilo que designarei por “argumento Albert Serra”).
Retórico, utópico, indeciso, cobarde, o homem dos advérbios de modo
abusivos, tudo isto foi dito e escrito sobre a dimensão política da
trilogia de Miguel Gomes. Primeiro argumento antes do filme, quer dizer,
que está ainda na querela cinematográfica do idealismo versus
materialismo e que censura as regras do jogo, não a forma como ele está a
ser jogado. Porque motivo haveria um filme político ter de afirmar ou
negar qualquer coisa, em vez de desconfiar? Ainda para mais porque se
trata de uma falsa desconfiança que deixa intuir a certeza de um
desconforto. Se o credo contemporâneo deixa para trás a literalidade da
política em cineastas como Eisenstein em troca de uma ficção que deve
falar por si e deixar ecos invisíveis sobre o seu tempo, a
reconsideração do que pode (não, deve) ser um filme político não deveria
excluir à partida uma literalidade ligeira. Fazê-lo significaria sempre
criticar As Mil e Uma Noites porque não se concorda
com o que se diz sobre o país, argumento político e moral, por certo
válido, mas antes do que é o filme. E mesmo que alguém pudesse admitir,
sobretudo ao não compreender a tradição do sarcasmo e da caricatura no
cinema português, a falsa superficialidade de segmentos como Homens do Pau Feito
e o qualificasse como retórica fácil, o cinema é o lugares das
retóricas e das utopias fáceis. Escolher fazer um filme político não
equivale a ter de seguir o mandamento de um programa estruturado de
oposição ao governo (ou situação) vigente. Arte, anyone?
Segundo argumento antes do filme: a heterogeneidade. Então um filme
não pode trabalhar a heterogeneidade? Desde quando a segurança da
compreensão do espectador, o arrumadinho anti-molhadas, tem de ser um
valor positivo? Não é o todo o cinema moderno uma molhada de fragmentos
para desespero das moleirinhas causais e aristotélicas? Não são as Mil e Uma Noites,
tal como o filme de Miguel Gomes, uma acumulação fragmentária de
histórias enquadradas por uma premissa geral? Mais, a trilogia assenta
na dupla capacidade do retalho poder por um lado descrever um sentimento
geral dos que nesse espaço vivem (tal como filmo o sofá, o candeeiro,
um jantar, uma despedida, uma conversa para tentar descrever algo do
conteúdo do que nessa casa se viveria; são só estes fragmentos, no
fundo, o que temos para poder fazer sentido) e, por outro lado, criar,
através da ambição de uma máquina de costurar e contar histórias (no
mesmo sentido em que Dixie é uma “máquina de amar e uma máquina de
esquecer”) que possa ter um potencial redentor da realidade. Temos a
ficção e as histórias para reclamar para nós o real, é esse o “projecto”
de todo o cinema. E ainda neste potencial descritivo como não perceber
que o retalho permite criar uma obra e descrever o mundo à sua volta?
Não é só o espelho 1001 noites persas-1001 noites portuguesas o que está
em causa, é o espelho da ficção e da realidade como o atesta o demorado
desvio documental do segmento O Inebriante Canto dos Tentilhões
ou o próprio método de criação do todo o filme, a partir dos factos
jornalísticos + encontro com o real. Por outras palavras, a
heterogeneidade é todo o reino e todo o método do cinema de Miguel
Gomes.
Finalmente, o argumento Albert Serra. Numa das entrevistas a
propósito do seu último filme o cineasta catalão dizia que o seus filmes
eram “unfuckable” pela crítica.
Esta forma de se precaver quanto a grelhas de análise (criando a sua
própria) faz um pouco lembrar a afirmação de Gomes citada acima sobre a
abstracção. Se a provocações desta juntarmos a presença cool (o
homem do cachecol do benfica, como muita gente lhe chama no meio
cinéfilo depois de ter aparecido assim “vestido” no palco de Cannes
aquando a apresentação do seu filme) e a sua participação em frente à
câmara em alguns dos seus filmes, percebe-se que há uma dose de
exposição à qual este voluntariamente se sujeita. Tal motiva que essa
capacidade de produzir uma relação de admiração ou irritação para com a
pessoa, nalguns casos surja indissociada da reacção aos próprios filmes.
É o terceiro argumento antes do filme. Evidente será dizer que se trata
de uma sofisticadíssima operação de misturar alhos com bugalhos. Talvez
menos evidente seja o facto de que a presença de Gomes nos seus filmes e
a evidenciação demasiado honesta das suas estruturas, não lhe dá mais
limpidez de intenções do que, por exemplo, a proposta da dar espaço e
tempo cinematográfico a determinadas gerações desfavorecidas e em
desaparição como acontece com o cinema de Pedro Costa. Pedro Costa nunca
está nos seus filmes. Mas na realidade está. Tanto um como outro,
presentes e claramente presentes. As aparências (e aparições) iludem.
Mas vamos finalmente aos argumentos do (e não antes do) filme, que é,
para que não restem dúvidas, sobretudo para aqueles que andam
constantemente às marradas ao cânon da história do cinema, parte de uma
das obras-primas do cinema português dos últimos anos. Disse que O Desolado
estava entalado entre duas fugas mas menti, devia ter falado de três.
Pois é com a crónica da fuga do extraordinário (e achado) Chico Chapas,
aqui interpretando a figura do temível Simão-Sem-Tripas, inspirado na
conhecida história de Manuel Palito, que abre este segundo volume. E tal
como na realidade se disse que Palito não fugiu a sério porque não
quis, também esta fuga é mais ilusória do que real, não ofuscando a
estrutura menos heterogénea, mais arrumada (e por isso mais gostável)
deste segundo volume. Dos três segmentos percebemos uma clara evolução
da fuga-captura para um momento de julgamento e um derradeiro de morte. E
todos desolados nessa via dolorosa: o homem sem tripas, seco, cuja
maldade é a incapacidade de ceder e cujas mulheres sempre lhe deram cabo
da cabeça; a juíza que, contente com a desfloração da sua princesa, não
percebe que esse facto (e o bolo de mármore às mãos da negra) são o
início da entrada da pequena na malha interminável dos culpados; e os
habitantes da torre de Santo António, vaporizados numa espécie de
espectralidade da existência, de importância anónima e dor real. Do
crime, ao julgamento, à morte. Percurso mais desolado é impossível. Ou
não. Porque a verdadeira imagem de desolação surge quase por acaso,
entre eventos, com os pingos de urina que escorrem pelo poço de um
elevador do prédio ao som de Why, lover why ? // Why do flowers die dos velhinhos Century.
Nos três segmentos as pequenas rimas – as prostitutas do Simão com a
nudez das brasileiras no topo do prédio; do burro que carrega o morto à
vaca macerada na aparição Apichatpong durante o julgamento, às ovelhas
bressonianas que ajudam Dixie a subir ao promontório da sua nova
existência; os pássaros de Vasco a lançar o terceiro volume – dão lugar à
divergência dos espaços. Do primeiro segmento com a pele de western
árido e surreal e seu espaço aberto onde ninguém encontra o culpado, ao
momento seguinte, onde é impossível não achar culpados, o alldunnit
de investigação onde o espaço anfi-teatral supõe um movimento do
passa-o-mesmo-e-não-ao-outro do sacudir as águas do capote da culpa
derradeira (já falei da “culpa” ingénua da própria julgadora). E
finalmente, até ao local onde esta desolação surge mais contida,
organizada por andares, à qual se chega pela longa escada de madeira que
dá para o prédio, que várias vezes vemos as personagens a subir. Esses
diferentes locais onde as 1001 noites lusitanas se passam são todos
passados a ferro pela mesma curiosidade expressa da câmara de Gomes: os travellings
de acompanhamento de Simão Sem Tripas ao longo das rochas e das pedras e
dos rios será o mesmo acompanhamento de Vasco e Vânia pelos muros
graffitados do subúrbio. Movimentos que antecipam o longo plano do
terceiro volume sobre o passarinheiro, esse ir a caminho de qualquer
coisa que não se sabe, excepto o andar como movimento para a frente,
como vida. São planos que mostram toda a curiosidade de Miguel Gomes em
auscultar as pessoas, momentos em que todo o projecto das 1001 noites se
torna translúcido, como Chapas boneco Dragon Ball a desaparecer em
nenhures para em outro nenhures reaparecer, ou como Dixie a contracenar
com o seu próprio espectro, a passar de dono em dono sem corpo
específico: é que no fundo, Dixie é uma ideia. As 1001 noites é essa
ambição de ver como o lado de lá do mundo e do passado pode deixar ver
qualquer coisa do Portugal hoje, como o buraco da fechadura das
situações documentais permite espreitar a ficção ou como a caricatura
dos “paus feitos” do primeiro volume pode ser assunto sério (a pequena
história a despir os argumentos da grande história: não é só assim que
sabemos viver, no dia-a-dia?).
Estes planos de Dixie são especialmente simbólicos e tocantes.
Simbólicos pois deixam perceber a transparência como facto: de umas
coisas nascem as outras, a relação entre elas e a circularidade da vida.
As imagens encadeiam-se, os donos mudam (do país, inclusivé), os maus
serão bons ou vicerversa, do mundo em decadência ergue-se o maravilhoso,
o etéreo. Mas tocantes, sobretudo. Estaria meio mundo à espera que as
histórias procurassem a adesão, que se multiplicassem as rimas forçadas,
que o real fosse exacerbado para produzir um discurso altivo sobre o
país. Nada mais errado: a costura está desde o primeiro momento à mostra
(e para isto compreender é preciso largar o automatismo crítico que
associa a costura de uma obra à inépcia do seu autor). Por exemplo, a
face imaculada de Joana Verona é simultaneamente o corpo da virgem e da
ex-drogada. Assumir o miscast para se dar a ver a costura, de
não abdicar da imagem que se vai e da que vem (o efeito típico da
sobreposição). É esse o passo genial da generosidade de todas estas 1001
noites, e de todas estas 1001 histórias, que precisavam também de
outros tantos textos como este para vislumbrar os seus contornos. Miguel
Gomes sabe que Joana de Verona não tem cara de drogada mas podia tê-la
(ou vir a tê-la) noutras circunstâncias. Não há escolha entre o que é de
facto e o que pode vir a ser (ou certamente o será). Não é apenas uma
estratégia de narrar dar voz aos desempregados, aos caretos, às vacas,
aos assassinos, pasteleiros, juízes, tarados sexuais, oliveiras, fumos
de entrecosto ou rappers de armário. Na sobreposição tudo é o que é mas a
caminho de deixar de o ser: é esse o belíssimo gesto de Gomes, gesto
igualitário, sem hierarquias, reconhecendo que quando se parte para a
arte nunca se sabe na puta vida bem o que se vai fazer e que é dessa
honestidade de criar um método que nos faça sentido, a maior homenagem
que se faz a todo o complexo caudal da realidade.
Como acontecia com Tabu (2012) ou com Aquele Querido Mês de Agosto
(2008) existe uma certa batalha entre o real e o imaginário, existe
esta necessidade de não partir para um plano demasiado rigoroso que nos
desminta a realidade. É esse jogo do encontro com as pessoas, uma
espécie de cinema-colmeia o de As Mil e uma Noites (aqui,
a comunidade da aldeia de Simão sem tripas, a trama de réus, os
moradores do prédio; nos outros volumes, o grupo de passarinheiros, os
sindicalistas, a troika…) em que a dispersão assusta, mas que é o único
espaço passível da procura de momentos de comunhão entre as coisas,
entre as histórias e séculos de crises e contos. É que realmente só
temos a procura, a contemplação, o desabafo perante aquilo que é do
filme e devia estar lá fora e o que está lá fora e só deveria caber na
boca de reis e princesas.
Por muito que possa enervar essa procura sem meta, esse desconforto
político sem certeza (mas onde as haveria? onde?) é importante não
deixar as nossas próprias frustrações invadirem o que é do
filme. E deixar a organização racionalista aos gestores e ficar com um
espaço onde Passos Coelho possa ter uma magistral erecção para deleite
de todos nós (isto se não chegar entretanto o detector de mentiras,
claro).
…e a meio da 667ª noite o mítico contador Ricardo Vieira Lisboa iniciou o relato de…
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