quarta-feira, 30 de setembro de 2015
terça-feira, 29 de setembro de 2015
segunda-feira, 28 de setembro de 2015
why not fuck everyone?
Sinatra may be the mythic instance of erotic impulse (Gardner remarked that though he weighed only 110 pounds, 105 of that was cock), still he had the modern itch, the movie urge - why not fuck everyone?,
in "The Whole Equation" - David Thompson
quinta-feira, 24 de setembro de 2015
As Mil e Uma Noites: Volume 2, O Desolado (2015) de Miguel Gomes
Ditou a lei de Walsh, da pala de Walsh, que a estreia de cada um dos volumes de As Mil e Uma Noites de Miguel Gomes, fosse acompanhada de uma história crítica por um “narrador” diferente. Coube-me em sorte O Desolado, volume do meio, a meio caminho de, entre duas fugas: a do seu realizador apoquentado com as abstracções (Eu sou estúpido e a abstração dá-me vertigens, diz o inquieto contador-mor) na primeira parte intitulada O Inquieto e a fuga do passarinheiro, em plena crise da faculdade de contar, já no derradeiro pedaço ao que se deu o nome de O Encantado.
Se à fatia do meio cabe não fugir e ficar desoladamente à espera de uma
conclusão para a grande narrativa de laço e nó desse espelho-tapeçaria
entre o folclore persa medieval e Portugal 2014, para o espectador a
tarefa é a mesma do rei Xariar, marido de Xerazade, a de não cortar a
cabeça ao cineasta antes deste chegar ao fim do que ele tem para contar.
Isto é, a decisão comercial de dividir todas estas noites por três
volumes obriga a uma tarefa de paciência e perseverança para que quem
veja, o veja (o percorra) todo. Ao escriba, a quem cabe a missão do
relato dos méritos e deméritos de uma só porção do todo, o desafio é
outro: o de não desligar a parte do conjunto, dissertando também sobre
todo o projecto em si, nomeadamente desmentindo alguns dos argumentos de
alguns narradores críticos aparentemente desprovidos de justiça visual.
Não deixa de ser curioso que em relação a uma obra que coloca em
questão a capacidade das pequenas histórias descreverem ou fabricarem
uma grande História (uma bigger picture), muitas das
fragmentárias reacções ao filme o transcendam ao ponto de provarem
precisamente essa capacidade. De se extrair delas uma grande árvore
genealógica das alianças e guerras do cinema português, convertendo-o
numa tapeçaria de ideologias que põe à vista o grande horizonte: o
conflito em modo “Portugal dos pequeninos e das capelinhas”, em relação à
uma suposta pureza ascética do cinema, a um modus operandi que deve tocar umas coisas e deixar outras intocáveis [as sms no ecrã em A História do Galo e do Fogo
(Volume I), por exemplo, suscitam aparentemente na delicada mente do
oligofrénico o pecado mais mortal, o ataque mais feroz a uma pretensa
elevação das formas e dos assuntos]. Mas de todo este conflito, que se
extraiam ao menos os argumentos que à obra mais dizem respeito. Vou
falar de três, os que me parecem mais recorrentes: a abordagem política
de As Mil e Uma Noites, a questão de heterogeneidade e, finalmente, a dimensão da exposição (ou aquilo que designarei por “argumento Albert Serra”).
Retórico, utópico, indeciso, cobarde, o homem dos advérbios de modo
abusivos, tudo isto foi dito e escrito sobre a dimensão política da
trilogia de Miguel Gomes. Primeiro argumento antes do filme, quer dizer,
que está ainda na querela cinematográfica do idealismo versus
materialismo e que censura as regras do jogo, não a forma como ele está a
ser jogado. Porque motivo haveria um filme político ter de afirmar ou
negar qualquer coisa, em vez de desconfiar? Ainda para mais porque se
trata de uma falsa desconfiança que deixa intuir a certeza de um
desconforto. Se o credo contemporâneo deixa para trás a literalidade da
política em cineastas como Eisenstein em troca de uma ficção que deve
falar por si e deixar ecos invisíveis sobre o seu tempo, a
reconsideração do que pode (não, deve) ser um filme político não deveria
excluir à partida uma literalidade ligeira. Fazê-lo significaria sempre
criticar As Mil e Uma Noites porque não se concorda
com o que se diz sobre o país, argumento político e moral, por certo
válido, mas antes do que é o filme. E mesmo que alguém pudesse admitir,
sobretudo ao não compreender a tradição do sarcasmo e da caricatura no
cinema português, a falsa superficialidade de segmentos como Homens do Pau Feito
e o qualificasse como retórica fácil, o cinema é o lugares das
retóricas e das utopias fáceis. Escolher fazer um filme político não
equivale a ter de seguir o mandamento de um programa estruturado de
oposição ao governo (ou situação) vigente. Arte, anyone?
Segundo argumento antes do filme: a heterogeneidade. Então um filme
não pode trabalhar a heterogeneidade? Desde quando a segurança da
compreensão do espectador, o arrumadinho anti-molhadas, tem de ser um
valor positivo? Não é o todo o cinema moderno uma molhada de fragmentos
para desespero das moleirinhas causais e aristotélicas? Não são as Mil e Uma Noites,
tal como o filme de Miguel Gomes, uma acumulação fragmentária de
histórias enquadradas por uma premissa geral? Mais, a trilogia assenta
na dupla capacidade do retalho poder por um lado descrever um sentimento
geral dos que nesse espaço vivem (tal como filmo o sofá, o candeeiro,
um jantar, uma despedida, uma conversa para tentar descrever algo do
conteúdo do que nessa casa se viveria; são só estes fragmentos, no
fundo, o que temos para poder fazer sentido) e, por outro lado, criar,
através da ambição de uma máquina de costurar e contar histórias (no
mesmo sentido em que Dixie é uma “máquina de amar e uma máquina de
esquecer”) que possa ter um potencial redentor da realidade. Temos a
ficção e as histórias para reclamar para nós o real, é esse o “projecto”
de todo o cinema. E ainda neste potencial descritivo como não perceber
que o retalho permite criar uma obra e descrever o mundo à sua volta?
Não é só o espelho 1001 noites persas-1001 noites portuguesas o que está
em causa, é o espelho da ficção e da realidade como o atesta o demorado
desvio documental do segmento O Inebriante Canto dos Tentilhões
ou o próprio método de criação do todo o filme, a partir dos factos
jornalísticos + encontro com o real. Por outras palavras, a
heterogeneidade é todo o reino e todo o método do cinema de Miguel
Gomes.
Finalmente, o argumento Albert Serra. Numa das entrevistas a
propósito do seu último filme o cineasta catalão dizia que o seus filmes
eram “unfuckable” pela crítica.
Esta forma de se precaver quanto a grelhas de análise (criando a sua
própria) faz um pouco lembrar a afirmação de Gomes citada acima sobre a
abstracção. Se a provocações desta juntarmos a presença cool (o
homem do cachecol do benfica, como muita gente lhe chama no meio
cinéfilo depois de ter aparecido assim “vestido” no palco de Cannes
aquando a apresentação do seu filme) e a sua participação em frente à
câmara em alguns dos seus filmes, percebe-se que há uma dose de
exposição à qual este voluntariamente se sujeita. Tal motiva que essa
capacidade de produzir uma relação de admiração ou irritação para com a
pessoa, nalguns casos surja indissociada da reacção aos próprios filmes.
É o terceiro argumento antes do filme. Evidente será dizer que se trata
de uma sofisticadíssima operação de misturar alhos com bugalhos. Talvez
menos evidente seja o facto de que a presença de Gomes nos seus filmes e
a evidenciação demasiado honesta das suas estruturas, não lhe dá mais
limpidez de intenções do que, por exemplo, a proposta da dar espaço e
tempo cinematográfico a determinadas gerações desfavorecidas e em
desaparição como acontece com o cinema de Pedro Costa. Pedro Costa nunca
está nos seus filmes. Mas na realidade está. Tanto um como outro,
presentes e claramente presentes. As aparências (e aparições) iludem.
Mas vamos finalmente aos argumentos do (e não antes do) filme, que é,
para que não restem dúvidas, sobretudo para aqueles que andam
constantemente às marradas ao cânon da história do cinema, parte de uma
das obras-primas do cinema português dos últimos anos. Disse que O Desolado
estava entalado entre duas fugas mas menti, devia ter falado de três.
Pois é com a crónica da fuga do extraordinário (e achado) Chico Chapas,
aqui interpretando a figura do temível Simão-Sem-Tripas, inspirado na
conhecida história de Manuel Palito, que abre este segundo volume. E tal
como na realidade se disse que Palito não fugiu a sério porque não
quis, também esta fuga é mais ilusória do que real, não ofuscando a
estrutura menos heterogénea, mais arrumada (e por isso mais gostável)
deste segundo volume. Dos três segmentos percebemos uma clara evolução
da fuga-captura para um momento de julgamento e um derradeiro de morte. E
todos desolados nessa via dolorosa: o homem sem tripas, seco, cuja
maldade é a incapacidade de ceder e cujas mulheres sempre lhe deram cabo
da cabeça; a juíza que, contente com a desfloração da sua princesa, não
percebe que esse facto (e o bolo de mármore às mãos da negra) são o
início da entrada da pequena na malha interminável dos culpados; e os
habitantes da torre de Santo António, vaporizados numa espécie de
espectralidade da existência, de importância anónima e dor real. Do
crime, ao julgamento, à morte. Percurso mais desolado é impossível. Ou
não. Porque a verdadeira imagem de desolação surge quase por acaso,
entre eventos, com os pingos de urina que escorrem pelo poço de um
elevador do prédio ao som de Why, lover why ? // Why do flowers die dos velhinhos Century.
Nos três segmentos as pequenas rimas – as prostitutas do Simão com a
nudez das brasileiras no topo do prédio; do burro que carrega o morto à
vaca macerada na aparição Apichatpong durante o julgamento, às ovelhas
bressonianas que ajudam Dixie a subir ao promontório da sua nova
existência; os pássaros de Vasco a lançar o terceiro volume – dão lugar à
divergência dos espaços. Do primeiro segmento com a pele de western
árido e surreal e seu espaço aberto onde ninguém encontra o culpado, ao
momento seguinte, onde é impossível não achar culpados, o alldunnit
de investigação onde o espaço anfi-teatral supõe um movimento do
passa-o-mesmo-e-não-ao-outro do sacudir as águas do capote da culpa
derradeira (já falei da “culpa” ingénua da própria julgadora). E
finalmente, até ao local onde esta desolação surge mais contida,
organizada por andares, à qual se chega pela longa escada de madeira que
dá para o prédio, que várias vezes vemos as personagens a subir. Esses
diferentes locais onde as 1001 noites lusitanas se passam são todos
passados a ferro pela mesma curiosidade expressa da câmara de Gomes: os travellings
de acompanhamento de Simão Sem Tripas ao longo das rochas e das pedras e
dos rios será o mesmo acompanhamento de Vasco e Vânia pelos muros
graffitados do subúrbio. Movimentos que antecipam o longo plano do
terceiro volume sobre o passarinheiro, esse ir a caminho de qualquer
coisa que não se sabe, excepto o andar como movimento para a frente,
como vida. São planos que mostram toda a curiosidade de Miguel Gomes em
auscultar as pessoas, momentos em que todo o projecto das 1001 noites se
torna translúcido, como Chapas boneco Dragon Ball a desaparecer em
nenhures para em outro nenhures reaparecer, ou como Dixie a contracenar
com o seu próprio espectro, a passar de dono em dono sem corpo
específico: é que no fundo, Dixie é uma ideia. As 1001 noites é essa
ambição de ver como o lado de lá do mundo e do passado pode deixar ver
qualquer coisa do Portugal hoje, como o buraco da fechadura das
situações documentais permite espreitar a ficção ou como a caricatura
dos “paus feitos” do primeiro volume pode ser assunto sério (a pequena
história a despir os argumentos da grande história: não é só assim que
sabemos viver, no dia-a-dia?).
Estes planos de Dixie são especialmente simbólicos e tocantes.
Simbólicos pois deixam perceber a transparência como facto: de umas
coisas nascem as outras, a relação entre elas e a circularidade da vida.
As imagens encadeiam-se, os donos mudam (do país, inclusivé), os maus
serão bons ou vicerversa, do mundo em decadência ergue-se o maravilhoso,
o etéreo. Mas tocantes, sobretudo. Estaria meio mundo à espera que as
histórias procurassem a adesão, que se multiplicassem as rimas forçadas,
que o real fosse exacerbado para produzir um discurso altivo sobre o
país. Nada mais errado: a costura está desde o primeiro momento à mostra
(e para isto compreender é preciso largar o automatismo crítico que
associa a costura de uma obra à inépcia do seu autor). Por exemplo, a
face imaculada de Joana Verona é simultaneamente o corpo da virgem e da
ex-drogada. Assumir o miscast para se dar a ver a costura, de
não abdicar da imagem que se vai e da que vem (o efeito típico da
sobreposição). É esse o passo genial da generosidade de todas estas 1001
noites, e de todas estas 1001 histórias, que precisavam também de
outros tantos textos como este para vislumbrar os seus contornos. Miguel
Gomes sabe que Joana de Verona não tem cara de drogada mas podia tê-la
(ou vir a tê-la) noutras circunstâncias. Não há escolha entre o que é de
facto e o que pode vir a ser (ou certamente o será). Não é apenas uma
estratégia de narrar dar voz aos desempregados, aos caretos, às vacas,
aos assassinos, pasteleiros, juízes, tarados sexuais, oliveiras, fumos
de entrecosto ou rappers de armário. Na sobreposição tudo é o que é mas a
caminho de deixar de o ser: é esse o belíssimo gesto de Gomes, gesto
igualitário, sem hierarquias, reconhecendo que quando se parte para a
arte nunca se sabe na puta vida bem o que se vai fazer e que é dessa
honestidade de criar um método que nos faça sentido, a maior homenagem
que se faz a todo o complexo caudal da realidade.
Como acontecia com Tabu (2012) ou com Aquele Querido Mês de Agosto
(2008) existe uma certa batalha entre o real e o imaginário, existe
esta necessidade de não partir para um plano demasiado rigoroso que nos
desminta a realidade. É esse jogo do encontro com as pessoas, uma
espécie de cinema-colmeia o de As Mil e uma Noites (aqui,
a comunidade da aldeia de Simão sem tripas, a trama de réus, os
moradores do prédio; nos outros volumes, o grupo de passarinheiros, os
sindicalistas, a troika…) em que a dispersão assusta, mas que é o único
espaço passível da procura de momentos de comunhão entre as coisas,
entre as histórias e séculos de crises e contos. É que realmente só
temos a procura, a contemplação, o desabafo perante aquilo que é do
filme e devia estar lá fora e o que está lá fora e só deveria caber na
boca de reis e princesas.
Por muito que possa enervar essa procura sem meta, esse desconforto
político sem certeza (mas onde as haveria? onde?) é importante não
deixar as nossas próprias frustrações invadirem o que é do
filme. E deixar a organização racionalista aos gestores e ficar com um
espaço onde Passos Coelho possa ter uma magistral erecção para deleite
de todos nós (isto se não chegar entretanto o detector de mentiras,
claro).
…e a meio da 667ª noite o mítico contador Ricardo Vieira Lisboa iniciou o relato de…
quarta-feira, 23 de setembro de 2015
ela é uma parva e ele é um cabrão
Não sei se é ousado ou apenas tolo pensar em Lars Von Trier a
propósito de tanta pancada que levam as mulheres no cinema de Mikio
Naruse. Não vou prosseguir nesta "dança à beira do abismo" da cinefilia,
não se preocupem, até porque há pelo menos uma diferença que faz a
relação cair (em parte) por terra. É que Trier bate nas suas personagens
e levanta os olhos para nós na expectativa de ler no nosso olhar a
reacção às suas maldades. Naruse não. Naruse, que acaba a sua obra prima
Okigumo (Nuvens Flutuantes, 1955) com a frase The life of a flower is so brief, yet it must suffer much grief
(que está em vez da palavra "fim"), filma essa violência sem esperar
nada. A vida é mesmo assim e as almofadinhas redentoras, que todos mais
ou menos esperamos para reclinar os nossos anseios, são substituídas
pelas nuvens. Nuvens que não explodem como desejávamos, como escreveu
Daney sobre o filme, nuvens que são pesarosas e constantes por cima das
cabeças de quem vive sob este mundo.
Queria ter tirado
uma imagem do filme para colocar aqui mas não estava a conseguir. O
plano mais desolado do mundo em que Hideko Takamine, já rejeitada pelo
seu amor depois de regressar da Indochina (onde se tinha apaixonado por
ele), pernoita num quarto sozinha, comendo timidamente um pedaço de pão enquanto chove desoladamente lá fora. E cá dentro
também, pinga e Takamine vai buscar uma tina de metal para aparar os
pingos da chuva. Nem vale a pena falar de lágrimas, nem sequer do som
metálico que fica dolente na nossa cabeça durante o tempo do plano, do
filme, da vida. Há ainda a chuva (é assim que se destroem as nuvens) que
volta a surgir no final quando Takamine, finalmente consegue o que
quer, ficar com o homem só para ela. Só que ela não subiu as escadas do
seu amor, ela partiu para uma ilha com ele (já duas mulheres mortas
tinha ele deixado para trás). Finalmente sós, os dois, como ela queria,
ele pensou que morreriam numa montanha. Enganou-se. Choveu, mas era numa
ilha que estavam.
Há poucas coisas mais tristes na história
do cinema do que a morte de Yukiko Koda. Passamos o tempo toda a pensar:
ela é uma parva e ele é um cabrão. Mas afinal a parva morre sem
redenção (idiotas ou não, é assim que todos nos vamos) e ele chora,
finalmente, verdadeiramente. Naruse faz as mulheres subir as escadas,
chorar todas as gotas das nuvens cinzentas, para depois a isso se seguir o
falso sorriso ou a nesga de sol. Não há tempo em toda esta
circularidade para ter pena ou pesar, daqueles, daquilo, que Naruse põe nos planos.
terça-feira, 22 de setembro de 2015
segunda-feira, 21 de setembro de 2015
O vento e o inevitável
Não deixa de ser simbólico e revelador que um dos objectos que
criámos para obter vento - a ventoinha - contenha no seu interior pás
que giram ininterruptamente. Esse girar sem fim é bem sinal da condição
humana se tivermos a aragem invisível que faz deslocar as coisas de um
lado para o outro como uma manifestação terrena dos desígnios divinos. O
encenador Tiago Rodrigues usou precisamente um monte de ventoinhas para
dar em palco a presença (ou ausência) do vento na direcção de Ifigénia em Áulis
de Eurípedes, primeira das tragédias que repõe por estes dias no teatro
D. Maria II. Muitas vezes o cinema usou em fora de campo as ventoinhas
para insuflar o mundo, seja ele o detalhe romântico expressionista do
vento de Sjöström (ninguém o voltou a filmar daquela maneira), seja a aragem desoladora, ameaçadora (falava dela no mês passado
a propósito de John Carpenter) ou as ideias da sua transiência (Sirk
escreveu no vento, Fleming mostrou-nos o que o vento leva com ele) e
liberdade deambulatória (ainda Kiarostami, Le Vent nous Emportera). Todos estes têm pressuposto o pressuposto do cinema que é simultaneamente o do vento: o movimento. O vento é o vento bailador de Primaveras
como escrevia Sophia de Mello Breyner, insufla as paixões, mas é,
também, como na tragédia de Eurípedes, o motor narrativo. O que faz
avançar os barcos gregos a Tróia, o que faz perceber que entre o
sacrifício da mulher de Menelau, Helena, e o sacrifício da filha de
Agamemnon - que não por acaso, uma não se sabe se foi raptada se fugiu e a
outra não se sabe se foi morta ou substituída por um veado no momento derradeiro - a única
diferença é retórica. Essa diferença joga-se no espaço sem vento, espaço
em que se dá a construção de um argumentário de sacrifício que permita hierarquizar estas duas mortes simbólicas.
Na peça de
Eurípedes a falta de vento é símbolo do colapso da acção (a pane da
máquina narrativa) que obriga a incitar-nos a agir novamente (os deuses,
são como se diz, uma explicação às massas para o que acontece, de
facto) e a colocar em andamento (circular, simbólico nas suas causas e
efeitos) a ventoinha humana. Esta circularidade, que mostra que o vento
nunca estará no mesmo sítio onde esteve mas que nunca parará de soprar, é
a clareza de que para continuar a jogar o jogo interminável é preciso
mexer as peças de lugar. Substituir umas pelas outras, trazer novos
elementos à mesa de jogo. É a dimensão política da tragédia. É a
percepção que ao sacrifício de Ifigénia, ao de Isaac, ou quase 2500 anos
depois, ao dos próprios Gregos como despojos de uma democracia
"antiquada", subjaz a mesma construção do discurso do inevitável. Custa muito mas assim tem de ser. E como refere um velho ditado judaico: Os ventos estão sempre ao lado dos que mandam.
domingo, 20 de setembro de 2015
quinta-feira, 17 de setembro de 2015
quarta-feira, 16 de setembro de 2015
If you do the job in a principled way, with diligence, energy and
patience, if you keep yourself free of distractions, and keep the spirit
inside you undamaged, as if you might have to give it back at any
moment–
If you can embrace this without fear or expectation–can find
fulfillment in what you’re doing now, as Nature intended, and in
superhuman truthfulness (every word, every utterance)–then your life
will be happy.
No one can prevent that.
Meditações- Marco Aurélio (Livro 3)
segunda-feira, 14 de setembro de 2015
Shyamalan
O motivo pelo qual não sou especialmente crente no dispositivo do found footage resulta
do facto de se presumir que o achado tem a mesma força do procurado.
Quer dizer, pensar-se que a dotação do dispositivo nas mãos do anónimo,
ao produzir uma proximidade entre quem captou as imagens e quem as vai
ver, o espectador, pudesse descurar uma espécie de critério para o
"achamento" dessas imagens. Quando Tyler diz à irmã Becca que esta tem a
camisola do avesso, que não a vestiu bem porque não se olha ao espelho,
sempre com os olhos baixos, com receio da imagem que o reflexo lhe
possa devolver, o espectador percebe que M. Night Shyamalan está a ir ao
cerne da questão do dispositivo que está a utilizar. De que serve a
câmara para captar o real, se o seu utilizador é incapaz de olhar? Para
que nos é útil o POV sem uma view? Numa das cenas finais, a
rapariga é presa no quarto com a avó e esta aparece-lhe na câmara pela direita. Becca faz uma panorâmica para a esquerda em vez de, ou encarar
a luta com a avó, ou fugir dali rapidamente. Ela acaba por filmar o
espelho como solução da charada: para ver o que está à minha volta, para
que a passagem da subjectiva à objectiva não seja em vão ou mera
técnica sem fundo, é preciso que primeiro ela se consiga olhar a si
própria.
Se The Visit
problematiza o olhar para determinar como este se pode mediar através
de uma câmara, já o trauma do irmão Tyler - o ter ficado imóvel num
jogo de futebol americano ante o olhar do pai, quando devia ter corrido
para parar o adversário - continua a bordar o drama interior das
personagens à dimensão metacinematográfica do filme. Agora é o
movimento por oposição à imobilidade que está em causa. Nas cenas finais
de confronto, a câmara (quase) fixa coloca em tensão o movimento das
pessoas no plano. Shyamalan filma Tyler imóvel (estranhamente imóvel, de
costas) enquanto o avô vai e vem no plano (porquê, não vem ao caso
aqui). A explosão final de Tyler marca a dimensão do movimento
e-mocional como catarse de uma agitação interna que se produz na sua
mente e que o fará tornar-se jogador, finalmente, correr para o
objectivo, "trancado" até então. Metáfora para a questão do movimento de
câmara, que, enquanto dispositivo, deve vir antecedido (justificado) por
um movimento interior. É o caso.
Finalmente, a distância aos eventos. Problema bicudo num tempo em que nearer is better.
Na sequência em que Becca faz referência à ética cinematográfica (que
ninguém respeita) está em causa o consentimento na captação das imagens
mas também a medição do espaço certo entre quem filma e o que se filma.
Shyamalan não faz outra coisa senão matraquear-nos com esse problema
quando põe as crianças a colocar a câmara sempre atrás de sofás, mesas,
candeeiros. Essa distância não é só uma questão de respiração (é preciso
estar longe para preparar a acção, a proximidade) mas é também um
indicador técnico (um ensinamento clássico) de que The Visit
é um filme sobre dois pares de personagens que têm muitas coisas entre
si, que não estão próximos, que tentam uma união momentânea. Essa
distância é ainda a distância que serve uma estranheza. Shyamalan quer
filmar duas crianças que não são crianças (não sabem brincar como
crianças, são pequenos investigadores-cineastas-cómicos) e dois avós que
não se comportam como avós.
Por tudo isto, The Visit
é menos um filme de terror, ou um filme com graça, e mais um exercício
de paralelismo entre os traumas e-mocionais de uma família e os
problemas que se colocam aos cineastas. Problemas não muito diferentes,
com solução a vir, na maioria das vezes, do mesmo sítio.
quinta-feira, 10 de setembro de 2015
Estreia esta semana o último filme do iraniano Mohsen Makhmalbaf, The President. Escrevo aqui, sobre.
quarta-feira, 9 de setembro de 2015
terça-feira, 8 de setembro de 2015
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