Nas primeiras páginas de Cosmopolis, Don DeLillo junta estas duas frases:
“The
work was all the more dangerous for not being new”. E depois: “There’s no more
danger in the new”.
De início
pensei na clareza da ideia de que o que não é novo possui um certo grau de
perigo porque já muita gente o fez (primeira frase). E isto porque (segunda
frase), o novo representa um antídoto contra esse perigo. E logo a atualidade
da coisa me ressoou no papel crescente reservado à originalidade e por aí fora.
Mas o que intriga aqui é a expressão “no more”. There’s no more danger in the new. Quer dizer, houve um tempo, e neste
sentido a frase é historicista, em que o novo era realmente perigoso. Mas hoje
já não é. E a ver é bem verdade. Houve um tempo em que a vanguarda, a
originalidade era um passaporte para um auto de fé, uma excomunhão, um asilo.
Os exemplos são tantos: Sócrates, Séneca, Joana D’arc, Galileu, Giordano Bruno,
etc, etc. Antigamente o novo não era propriamente bem visto. Havia uma forte
pressão da sociedade para não extrapolar.
Mas
então o que terá acontecido para esta inversão absolutamente clara em que o
novo se tornou na exigência daquilo que, precisamente, integra? A originalidade
como pressão para ser diferente. As tradições que mantinham agregados os usos
da população humana no passado eram fortes e consideradas por todos. Na égide
de um pensamento céptico, de abertura à dúvida permanente, a tradição foi
levando pancada atrás de pancada. A tradição passa a ser vista como “defeito”,
como imobilizadora e, posteriormente, formatada sob esse conceito absolutamente
vital que é a “massa”. A tradição passou a ser o que fazem as massas. Fazer o
que sempre se fez, ou faz, não é hoje um sintoma de saúde mas de “carneirice”.
Ao invés, triunfou o “thinking outside
the box”, o discurso de fazer valer as suas skills,
de mostrar a sua própria excelência, ou,
se não a houver, inventá-la. A nossa
extraordinariedade tornou-se uma obsessão. Ai daquele que passe por nós e que
de imediato não nos sintamos tentados a virar a cara para ver o que tem a dizer
ou fazer. Se assim for é só mais um (+1). Portanto, todos temos de ser
especiais, agitar muito a carcaça para que olhem para nós: social, sexual e
profissionalmente. É a sociedade da híper-performatividade como tique de
sobrevivência.
Mas
o que acontece, pergunto-me, quando já não existir ninguém ordinário? Quando toda
a gente for espetacular, inteligente, gira, espirituosa, jovem? Quando já não
existir uma só pessoa sem atributos maravilhosos, que não fale tão bem, que não
seja tão elegante, virtuoso ou o melhor dos melhores a fazer o que quer que
seja. A resposta parece simples: é que um bando de extraordinários é
profundamente ordinário. Assim, faz-se full
circle com a questão da ilusão que havia começado com esse “cenário postiço”
em que vivemos, no qual, em fundo, parece que podemos escolher tudo, que a
liberdade é esse bem inestimável. É que não é. E essas opções são muito poucas. E cada vez
menos. É como tirar uma foto na Bela Vista com um cenário por trás a dizer que
estamos em Miami. É a mesma coisa. Se acreditarmos muito pode ser que Miami se
concretize na nossa mente. Nós aliás sempre fomos extraordinários a acreditar.
Os melhores de todos.
Leonardo
da Vinci era um homem extraordinário em quase tudo. Perto da sua morte pediu no
seu testamento que 60 mendigos acompanhassem o seu cortejo fúnebre. Sessenta
pessoas que não podiam estar mais perto do que alguns chamam hoje, abusiva e
tecnocraticamente: “escória”. De pessoas que, por via dos critérios do telemarketing
se aproximam desse novo inferno na terra que é “falhar a vida”. Mas
pergunto-me, quem, como Da Vinci, faria um pedido hoje assim? É que a
verdadeira capacidade de se ser extraordinário, “new”, como diz DeLillo,
pressupõe uma profunda vivência ordinária. As mensagens “you can do it”, ou
“you are the size of your dreams”, que tudo e todos poluem, só se destinam a
manter as pessoas na segurança e no “jogo” daquilo que é “novo”. Esse falso
novo, cenário perfeitamente identificado, não deixa avançar. E avançar
significa ser realmente novo. Só que novo no sentido de verdadeiro, do que
nasce da limitação, do que não monta um show para terceiros. Esse novo, sim, ainda é perigoso. Muito
perigoso.
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