sábado, 30 de janeiro de 2021

Agamben sobre o fim

 Vivemos em casas e cidades ardidas de cima a baixo como se ainda estivessem de pé, que todos fingem habitar saindo mascarados por entre as ruínas, como se estas fossem ainda os bairros populares de antanho.


E a chama mudou de forma e de natureza, tornou-se digital, invisível e fria, mas precisamente por isso tornou-se ainda mais próxima, está em cima de nós e rodeia-nos a todos os instantes.

+++

Uma cultura que se sente próxima do seu fim, já sem vida, procura governar como pode a sua ruína, através de um estado de excepção permanente.

++

A cara é a coisa mais humana, o homem tem uma cara e não apenas um focinho ou uma face, porque habita o aberto, porque nessa sua cara se expõe e comunica. A cara é o local da política. O nosso tempo impolítico não quer ver a sua própria cara, mantem-na à distância, cobre-a e mascara-a. Não deverão existir caras, apenas números e dígitos. Nem sequer o tirano tem cara.

++

Nos anos porvir existirão apenas monges e delinquentes. E, no entanto, não é possível simplesmente sair ou crer-se fora dos destroços deste mundo que desabou ao nosso redor. Porque esse desabamento implica-nos, somos também nós apenas mais um desses destroços. E temos de aprender a usá-los cuidadosamente do modo mais certo, sem que nos façamos notar.

++

Por isto teve o cristianismo de se ligar à história e seguir a sua sorte até ao fim – e quando a história, como hoje parece ocorrer, se apaga e entra em decadência, também o cristianismo se aproxima do seu crepúsculo. A sua insanável contradição é que procurava, na história e através da história, uma salvação para lá da história e que quando esta termina a terra foge-lhe debaixo dos pés.

++

Em direcção ao presente apenas se pode regredir, enquanto no passado se avança a direito. O que chamamos passado não é senão a nossa longa regressão em direção ao presente. Separarmo-nos do nosso passado é o primeiro recurso do poder.

++

Só pode dizer a verdade quem não tem nenhuma probabilidade de ser ouvido, quem fala numa casa que as chamas consomem implacavelmente.

++

Hoje, a humanidade desaparece como um rosto de areia apagado pelas ondas. Mas aquilo que lhe toma o lugar já não tem mundo, é apenas uma vida nua sem história, nas mãos dos cálculos do poder e da ciência. Mas talvez, no entanto, seja a partir deste massacre que uma outra coisa poderá um dia, lenta ou bruscamente, aparecer – não um deus, certo, mas também não outro homem – um novo animal, talvez, uma alma de outro modo viva…

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Ecologia como ideologia

A pandemia vai terminar? Daqui a uns meses, o regresso ao modus vivendi anterior? Ou a pandemia é um evento que segmenta e o confinamento é definitivo? Entre as catástrofes e as esperanças, afinam-se estratégias de culpabilidade (e esperemos de transformação!) ou de desresponsabilização. Sobre esta última tenho pensado bastante no argumento que vê a ecologia como uma bandeira ideológica. Um argumento que quem recusa responsabilidades pela ideia do antropoceno lança, dizendo: a terra quando quiser livra-se de nós, não somos tão poderosos assim para acabarmos com isto. Um argumento religioso: como se a Terra fosse um Deus que tudo pode e tudo sabe e que quando estiver em perigo, mata, infecta, confina. Mas se é um argumento religioso ele é-o apenas na estrita medida em que os seus defensores procuram lavar as mãos (e a consciência) do que temos feito de errado (ainda a cega crença no progresso e o caminho último do Bem). Deposito então o destino nas mãos da divindade Terra (e enquanto isso, poluo, ignoro, mato, infecto). Tenho pensado no paradoxo desta ideia, defendida, em muitos casos por pessoas que elas próprias professam uma religião que tem em conta aspectos como a culpa, o pecado, a boa acção, a confissão e a penitência. Para os defensores deste argumento - a Terra como "deus soberano" - seríamos finalmente fiéis livres da possibilidade de pecar. Uma duplicidade bastante conveniente, diga-se. A um deus entregamos a nossa culpa e a nossas precauções, ao outro o poder e a omnisciência de não considerar sequer as nossas acções como consequentes. Uma duplicidade ainda quase tão conveniente quanto determinar liminarmente que esta pandemia é só um percalço temporário ou, antes, que é o início do fim.