domingo, 23 de maio de 2021


Toda a gente supostamente espantada com as condições miseráveis de habitação dos trabalhadores migrantes em Odemira. Fassbinder em 74. Diz que passaram "só" 47 anos.


quarta-feira, 12 de maio de 2021

 



Le Mépris termina sob o signo do silêncio e do fim, ambos albergando um primeiro olhar de Ulisses de regresso à pátria. Contudo, antes desse regresso que faz terminar, Godard havia filmado a partida que faz começar esse mesmo fim. Como? Filmando a súbita barreira intransponível que se ergue entre duas pessoas que deixam de sentir amor correspondido. Fala-se recorrentemente dos jump cuts como técnica que passa a normalizar a instabilidade no olhar na Nouvelle Vague. Contudo, entre estes dois planos – Camille a ser “raptada” pelo produtor Prokosh e a chegada do marido Paul a casa daquele, minutos, horas (décadas?) depois – há um salto muito maior, um buraco negro. Godard mete naquela meia dúzia de planos um abismo amnésico, onde tudo muda. O fim do amor como uma temporalidade difusa, um jump cut que dura séculos e um bater de pálpebras. Nunca mais saberemos o que fez morrer o amor de Camille e Paul, não vimos nascer o desprezo, mas sabemos que aconteceu algures entre a ruína e o jardim resplandecente.






terça-feira, 4 de maio de 2021

 Ao ver a proximidade dos rostos das personagens de Nomadland - em momentos quase documentais -, pensava na inversão da celebre frase que dizia que os bons filmes são sempre documentários sobre a sua rodagem. Pelo contrário, hoje, os filmes são as rodagens do seu "documentário". Já não tanto a busca do autêntico e real no cinema - ambições de um certo cinema moderno-, mas a procura de conservar uma ideia de realidade como "product placement".


 A estranheza, o abismo inexplicável de certos filmes, obras outrora primas, dá hoje lugar à superfície, à clareza das causas. Curiosamente, parte desta clareza reivindicativa surge como resposta ao facto de termos andado, anos após anos, a tentar deslindar esses abismos, essas relações, essas formulações obscuras. Não gostámos do que achámos e descolonizámos essa “versão” do real, “colonizando” o cinema enquanto linguagem artística. A pergunta "o que é isto?" deu lugar à resposta "isto é aquilo que sempre devia ter sido".

domingo, 25 de abril de 2021



 “Mónica e o Desejo” costuma dizer-se é um filme de espelhos e de olhares. Reflexos de crescimento, personagens a ganhar peso à volta dos olhos. Diz-se ainda que é um filme de água e de ilhas – um idílio natural em espelho com o cinema, este uma espécie de sonho concentrado, Verões de 90 minutos. Mas Bergman ainda faz uma outra coisa que gosto muito. É capaz de mostrar no espaço de poucos minutos o mais belo, romântico e erótico – os planos das costas de Monika, o cigarro e beijo que partilha com Harry, a dança a dois no pontão deserto –, mas também o mais boçal, o mais banal dos actos. Harriet masca pastilhas de boca aberta e caça nacos de assado como um animal selvagem. É talvez também a nossa carne em espelho a que vemos quando, de estação em estação, ela ama e envelhece nos mesmos minutos, nas mesmas horas, nos mesmos anos.


segunda-feira, 29 de março de 2021


 

Ao rever "Roma, Cidade Aberta" para uma aula dou por mim a tropeçar naquele estereotipo verdadeiro de como as obras maiores são poços sem fundo nos quais caímos sempre que lá deixamos entreter o olhar. Desta vez fiquei a cismar naquele momento em que o Don Pietro, no calabouço nazi, diz ao desertor austríaco - personagem magnífica e síntese das contradições da guerra - para ficar calmo e tentar rezar. No plano seguinte, vemos o austríaco encostado a uma parede, mais calmo, sim, rosto iluminado na cela toda escura. Ele repara em qualquer coisa fora de campo e Rossellini segue com a câmara o seu levantar. Dá uns passos na escuridão até que volta a ficar banhado de luz, mão que lentamente sobe junto à parede para tocar "isso" que acabara de ver. A luz do plano lembra-nos essa luz do céu - o padre havia-lhe dito para serenar na oração - e uma ascensão espiritual. Mas o terrível é que a luz que nos lembra esse momento de ascese é a mesma luz que nos irá revelar, afinal, o objecto da sua atenção: o cano onde se irá enforcar. Oração e suicídio numa questão de segundos, na mesma luz, no mesmo caldo ambíguo da salvação e da perdição. Perdão, da resistência.


sábado, 30 de janeiro de 2021

Agamben sobre o fim

 Vivemos em casas e cidades ardidas de cima a baixo como se ainda estivessem de pé, que todos fingem habitar saindo mascarados por entre as ruínas, como se estas fossem ainda os bairros populares de antanho.


E a chama mudou de forma e de natureza, tornou-se digital, invisível e fria, mas precisamente por isso tornou-se ainda mais próxima, está em cima de nós e rodeia-nos a todos os instantes.

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Uma cultura que se sente próxima do seu fim, já sem vida, procura governar como pode a sua ruína, através de um estado de excepção permanente.

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A cara é a coisa mais humana, o homem tem uma cara e não apenas um focinho ou uma face, porque habita o aberto, porque nessa sua cara se expõe e comunica. A cara é o local da política. O nosso tempo impolítico não quer ver a sua própria cara, mantem-na à distância, cobre-a e mascara-a. Não deverão existir caras, apenas números e dígitos. Nem sequer o tirano tem cara.

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Nos anos porvir existirão apenas monges e delinquentes. E, no entanto, não é possível simplesmente sair ou crer-se fora dos destroços deste mundo que desabou ao nosso redor. Porque esse desabamento implica-nos, somos também nós apenas mais um desses destroços. E temos de aprender a usá-los cuidadosamente do modo mais certo, sem que nos façamos notar.

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Por isto teve o cristianismo de se ligar à história e seguir a sua sorte até ao fim – e quando a história, como hoje parece ocorrer, se apaga e entra em decadência, também o cristianismo se aproxima do seu crepúsculo. A sua insanável contradição é que procurava, na história e através da história, uma salvação para lá da história e que quando esta termina a terra foge-lhe debaixo dos pés.

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Em direcção ao presente apenas se pode regredir, enquanto no passado se avança a direito. O que chamamos passado não é senão a nossa longa regressão em direção ao presente. Separarmo-nos do nosso passado é o primeiro recurso do poder.

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Só pode dizer a verdade quem não tem nenhuma probabilidade de ser ouvido, quem fala numa casa que as chamas consomem implacavelmente.

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Hoje, a humanidade desaparece como um rosto de areia apagado pelas ondas. Mas aquilo que lhe toma o lugar já não tem mundo, é apenas uma vida nua sem história, nas mãos dos cálculos do poder e da ciência. Mas talvez, no entanto, seja a partir deste massacre que uma outra coisa poderá um dia, lenta ou bruscamente, aparecer – não um deus, certo, mas também não outro homem – um novo animal, talvez, uma alma de outro modo viva…

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Ecologia como ideologia

A pandemia vai terminar? Daqui a uns meses, o regresso ao modus vivendi anterior? Ou a pandemia é um evento que segmenta e o confinamento é definitivo? Entre as catástrofes e as esperanças, afinam-se estratégias de culpabilidade (e esperemos de transformação!) ou de desresponsabilização. Sobre esta última tenho pensado bastante no argumento que vê a ecologia como uma bandeira ideológica. Um argumento que quem recusa responsabilidades pela ideia do antropoceno lança, dizendo: a terra quando quiser livra-se de nós, não somos tão poderosos assim para acabarmos com isto. Um argumento religioso: como se a Terra fosse um Deus que tudo pode e tudo sabe e que quando estiver em perigo, mata, infecta, confina. Mas se é um argumento religioso ele é-o apenas na estrita medida em que os seus defensores procuram lavar as mãos (e a consciência) do que temos feito de errado (ainda a cega crença no progresso e o caminho último do Bem). Deposito então o destino nas mãos da divindade Terra (e enquanto isso, poluo, ignoro, mato, infecto). Tenho pensado no paradoxo desta ideia, defendida, em muitos casos por pessoas que elas próprias professam uma religião que tem em conta aspectos como a culpa, o pecado, a boa acção, a confissão e a penitência. Para os defensores deste argumento - a Terra como "deus soberano" - seríamos finalmente fiéis livres da possibilidade de pecar. Uma duplicidade bastante conveniente, diga-se. A um deus entregamos a nossa culpa e a nossas precauções, ao outro o poder e a omnisciência de não considerar sequer as nossas acções como consequentes. Uma duplicidade ainda quase tão conveniente quanto determinar liminarmente que esta pandemia é só um percalço temporário ou, antes, que é o início do fim.