domingo, 30 de setembro de 2012

Cielo Negro (1951) de Manuel Mur Oti

Se nos mês passado lembrámos no À Pala de Walsh, Cottafavi e a ironia da sua carreira, agora chegou a vez de Manuel Mur Oti, cineasta espanhol da geração de Luis García-Berlanga e Carlos Saura, que começou a fazer cinema aos 41 anos e que, apesar da boa recepção pelo público e pela crítica da generalidade dos seus filmes (chamavam-no “el genio”), caiu no esquecimento a partir da morte do General Franco. A explicação para tal é simples. É que com a entrada de um novo regime eram precisas obras que simbolizassem a ruptura, não os sucessos comerciais, feitos com o apoio e graças de uma ditadura e do seu líder.



Ao vermos um dos seus melhores filmes Cielo Negro (o segundo de uma carreira de 17), temos precisamente os temas queridos da ditadura como a importância da religião cristã ou a materialização do melodrama nos dilemas do amor como marcas de um género e de uma “atmosfera”. Contudo, a sua protagonista, Emília (Susana Canales), uma jovem que sempre viveu com a mãe, que nunca teve um namorado, que nunca foi à verbena (festa), que vê muito mal, não é o protótipo de mulher submissa que esperaríamos. Há nela uma força (apesar da inocência) com que agarra o homem que quer para namorado, com que rouba o vestido para a festa, com que obriga o poeta impostor [Fernando Rey instigado pela antagonista Lola (a presença da actriz portuguesa Teresa Casal, à data mulher de Arthur Duarte)] a prolongar a farsa até à morte da mãe. Uma força que em último instinto a impele a pôr a hipótese do suicídio.

É por sobre essa força que Mur Oti se revela como cineasta. Ao contrário de muitos filmes feito no Estado Novo em Portugal onde o folhetim era tudo e a expressividade cinematográfica algo raro, Cielo Negro controla a tragédia lacrimejante (o filme da ceguinha como lhe chamavam), com absoluta certeza. Eis alguns traços:

1. A ponte da cena final vista logo no primeiro plano do filme, a partir de casa de Emília, quando tudo estava bem (quando ainda não chovia). Se esse plano inicial nos mostra a simbologia da vida de Canales antes do amor, com os pássaros na gaiola à janela, a saída lá para fora revela o preço da liberdade;

2. A cegueira. Antes desta ser apresentada como elemento da tragédia [como o é por exemplo em Magnificent Obsession (Sublime Expiação, 1954) de Douglas Sirk] ela é, logo no início, trabalhada na relação com espaço: é o dia tan hermoso de Emília, onde o céu surge pequenino emparedado entre linhas de cimento; ou são os gerânios que ela pergunta à mãe se estão à janela da vizinha, ao que esta mente ante a visão das meias estendidas; ou essa sequência tão erótica quanto difusa da ida à festa com o amado Fortún. Como se a sua alegria que são 75 minutos e depois duas horas (ela conta o tempo que passa) fosse só uma questão de música, de luzes (os fogos de artifícios são estrelas) da proximidade dos corpos. Nessa sequência ela tira os óculos à boneca que ganha nas rifas, como o fizera a si própria antes de sair de casa. Mais do que se impor a beleza, Emília quer impor-se a cegueira, para poder amar Fortún por breves instantes (para ir-se à felicidade é preciso ir-se sin gafas), ainda que ele seja boémio, ainda que ele não a queira da mesma maneira. Esse acto perfeitamente edipiano, a auto-cegueira é uma etapa de crescimento que depois se converte numa inevitabilidade. É quando Emília sabe que vai ficar cega e que não pode trabalhar, o momento em que realmente “vê”: como se a cegueira física fosse o preço a pagar pela clarividência interior.

3.  E quase nos esquecíamos da sequência final. A mãe morreu. Ela ficará cega. Tudo aponta o trágico. Emília revolta os olhos e sai. Junta às escadas perguntam-lhe: “¿A dónde vas Emília? Sube!”. Mas Emília desce. E nós sabemos onde vai. Sai para a rua. Chove, chove sempre. Voltamos a ver a ponte ainda com mais certeza de uma tragédia. Corre, resoluta, mesmo cega sabe o caminho. Quando chega à ponte vira-se para nós e sentimos outra vez essa força, essa espécie de abertura do ser ante o sofrimento extremo. Vira-nos costas, debruça-se sobre a ponte e a câmara com ela. Lá em baixo passa um eléctrico. Mur Oti põe a câmara junto ao solo para nos dar a distância. Mas é no último momento que Emília ouve os sinos, inesperados, belos, que numa torrente demencial a chamam. Das igrejas, de todas. A salvá-la. E para quem tinha dúvidas desse milagre rosseliniano no final, esses sinos não lhe pedem que viva, intimam-na a fazê-lo. E depois é o regresso à vida com os sinos “celestiais” cada vez mais intensos. Já se foi o vestido comido pelas traças e só há um xaile sobre os ombros a amparar da chuva num travelling inenarrável, considerado por muitos o mais belo de toda a história do cinema.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Plano Nacional de Cinema

Desculpem-se se começo por abordar uma iniciativa com tão boas intenções como o Plano Nacional de Cinema (PNC), apresentando na última sexta-feira na Cinemateca Portuguesa, com algum pessimismo. É que penso realisticamente que há motivos para isso. Em primeiro lugar, se o objectivo é a formação do olhar das crianças e jovens na relação com o cinema, e mais genericamente com o fenómeno audiovisual, o que é que nos garante que a “politiquice” não falará mais alto (de novo) e que, como em 1991, o plano não cairá por terra quando mudar a cor do governo? Depois, diga-se uma evidência. Naquela altura, Portugal já estava atrasado em relação à maioria das escolas europeias e norte-americanas. Hoje estar atrasado é uma expressão que já nem define completamente a falta que faz uma pedagogia para o olhar nas estruturas curriculares, desde o mais básico ao universitário. E finalmente não posso deixar conter a ironia pelo facto de tal plano surgir num momento em que genericamente já se estuda a curva de influência decrescente da sétima arte nos suportes de acesso ao conhecimento e à arte. Como se numa altura em que todos estivessem já virados para a “morte do cinema” e as novas tecnologias ligadas à internet, redes sociais, second life, iPads e por aí fora, o nosso sistema de ensino andasse a descobrir as virtudes do cinema… Não sei se tudo isto é mais trágico ou se, dessa discrepância histórica, possa resultar algo inesperadamente criativo. E depois, como toda a gente sabe, esta ironia é duplamente reforçada pelo facto de se tratar de uma iniciativa proposta em plena paralisação funesta do próprio cinema em Portugal. Portanto, se politicamente o timing não é o correcto (e historicamente ainda o é menos), sejamos humildes e contidos na euforia da celebração de uma iniciativa que, de tão óbvia e relevante, deveria ter sido pensada para aí a partir dos 80, pelo menos.

Agora uma outra evidência. O importante neste PNC não é obviamente mostrar filmes às crianças. Porque isso já eles fazem, em casa, com amigos, no cinema, etc. O importante é construir uma estrutura para controlar as condições de visionamento das obras escolhidas e sobretudo construir um discurso pedagógico sobre essas imagens. Esse discurso tem de integrar a importância do meio audiovisual como forma privilegiada de transmissão de informação na actualidade, mas sempre salientando que parte dessa transmissão é feita, quando ao cinema diz respeito, através de um poderoso mecanismo de distorção da lógica informativa que é o dispositivo artístico cinematográfico.

 Desta forma, parece incrível mas é verdade, é ainda hoje necessário combater a ideia de que, como a maioria das pessoas nasceu com esse sentido inato e orientador que é a visão não é necessário aprender a ver.  Esse é um papel de cidadania importante destinado a transformar o consumidor de imagens em alguém que as sabe ler e por isso dotado de um sentido crítico face a estas. Mas tudo isto parece tão óbvio que por isso mesmo merece ser repetido.

E depois há outros elementos que convém ter em conta no pensamento de uma formação no quadro de um PNC (embora Alain Bergala no seu L’hypothèse cinéma já os tenha dissecado quase todos em 2002):

- Dotar os professores de formação adequada por forma a ensinar os filmes como objectos de direito próprio, como arte e meio de expressão, para além do receptáculo de conteúdos que os jovens podem discutir a propósito de cada disciplina.  Ensinar a ver um filme, a ler uma sequência de imagens.

- Como explicar a forma como o cinema pode ser um “espelho” da realidade, uma plataforma para discutir inúmeras questões de todas as áreas?

- Estruturar o uso do cinema para fins pedagógicos de forma também a mostrar a História da própria sétima arte;

- Combater as grelhas críticas de análise aos filmes enquanto objectos fechados e redundantes;

- Articular as diferentes dimensões temporais dos filmes (ou clipes) com a duração das aulas;

- Articular o ensino e os filmes de forma a que não se renuncie ao universo que os jovens reconhecem como seu (obras que estejam perto de si), mas sem nunca abdicar da “violência construtiva do desconhecido” que os clássicos do cinema ou obras importantes do cinema contemporâneo podem trazer.

- Apesar da importância de estabelecer uma relação com o domínio emotivo do cinema (ele é uma espectáculo e uma arte que convoca sensações),  não deixar de ser cirúrgico na relação com a linguagem do cinema, tendo como efeito reflectir sobre certas questões: porque é que um filme, ou uma cena é má? Ou boa? Ou perversa? Ou complexa?

Algumas questões  parecem estar a clarificar-se no projecto piloto prestes a arrancar este ano em 23 escolas do país. Mas estes pontos referidos, que passam muito pela formação dos professores e articulação dos filmes escolhidos com os planos curriculares de cada área e ano, são decisivos se o desejo é o de realmente inserir o cinema na formação dos indivíduos. Esquecê-los equivale a percorrer meio caminho. Equivale a “olhar sem ver”.

Uma nota. Se é muito positivo começar pelos jovens, a julgar pelas entrevistas aos pais a propósito de próprio plano, fica-se com a sensação de que a iliteracia audiovisual em Portugal é um verdadeiro abismo que não sei se iremos a tempo de transpor.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Destaques MOTELx 2012

Num momento como o actual em que o “horror” social e político se vai generalizando na nossa sociedade, pode soar quase a redundância falar do início de um festival de terror. Seja visto como um festival, ou pela sua dimensão como uma mostra, o MOTELx já vai para a sua sexta edição. E quer pela sua concentração temporal (5 dias, de 12 a 16 de Setembro) quer pela forma como junta as suas principais actividades num só cinema (S. Jorge), o festival conseguiu perceber, como talvez nenhum outro evento cinematográfico no país, uma dimensão “certa”, de conforto, pela qual o espectador pode passar pelos seus eventos como quem passa por uma narrativa que pode ou deve ser lida do início ao fim. A essa virtude junta-se uma extraordinária dedicação dos seus fãs que envergam vestes a rigor, participam em marchas zombie, ou simplesmente empunham o programa do festival com as devidas cruzinhas assinaladas com os filmes que mais querem ver.

Dito isto como herança positiva que já foi consolidada das edições anteriores, importa agora ajudar o pôr essas cruzinhas. A primeira, começando pelo terceiro acto do festival, o verdadeiro clímax, deve ser colocada nos cinco filmes que o MOTELx mostra de Dario Argento, com especial destaque para a trilogia das mães [Suspiria (1977), Inferno (1980) e La Terza Madre (Mãe das Lágrimas: A Terceira Mãe, 2007)] apenas concluída em 2007. A sua presença em Lisboa, com uma masterclass no último dia, domingo, às 16:30, será certamente um dos pontos mais altos do festival. Para além da presença do mestre do cinema de terror, este ano o festival decidiu ainda fazer uma breve e muito curiosa retrospectiva de Nobuo Nakagawa, um nome que provavelmente apenas dirá alguma coisa aos mais aficionados do género. Aquele que é considerado o pai do cinema de terror japonês e que fez alguns dos seus mais conhecidos filmes na célebre produtora Shintoho (na qual trabalharam Ozu, Mizoguchi e Kurosawa). Um das suas obras mais consideradas Tokaido Yotsuya Kaidan (Ghost Story of Yotsuya, 1959), sobre um samurai sanguinário perseguido pelos fantasmas das suas vítimas, baseado num conto tradicional japonês e ponto de viragem na linguagem cinematográfica de terror no país, é exibido na sexta-feira às 16:45. A completar a secção é mostrado na quinta-feira às 17:00, Borei Kaibyo Yashiki (Black Cat Mansion, 1959), sobre um casal assombrado por uma estranha figura feminina, em que se alterna a cor e o preto e branco, e, no sábado, pelas 14:45, Kaiidan: Ikiteiru Koheiji (The Living Koheiji, 1982), 97º e último filme de Nakagawa, uma violenta história de amor entre um trio de artistas, baseado numa peça de teatro.

Para além da já habitual secção competitiva do festival que premeia a melhor das 10 curtas-metragens nacionais na área do terror, e da secção de curtas internacionais, pode dizer-se que o grosso da sua programação se apresenta sob o nome de “Serviço de Quarto”. Neste ano mostram-se vinte sete longas-metragens das mais variadas partes do mundo, funcionando como  uma espécie de estados gerais do cinema de terror e fantástico no último ano, ano e meio. Entre as escolhas que vão do gore ao torture porn, da comédia ao survival horror, há nomes que dispensam apresentações. Um deles é Kevin Smith que, com Red State (2011), experimenta o terror inspirando-se numa seita religiosa real cuja divisa é “God hates fags” (quinta às 16:45 e sábado às 19:30). Outro é o espanhol Jaume Balagueró (co-autor da saga [Rec] (2007), cujo terceiro capítulo tem honras de abertura do festival), que com Mientras Duermes (Sleep Tight, 2011) capta o microcosmos da vida em vizinhança de um apartamento através de uma personagem estranha de um porteiro (quinta-feira às 19:15). Talvez menos conhecido seja o japonês Shunji Iwai [Riri Shushu no subete (All About Lily Chou-Chou, 2011)] que apresenta Vuanpaia (Vampire, 2011), um filme de terror-ensaio que coloca os temas do suicídio e do vampirismo em territórios do drama (quarta às 16:45).

Ainda outras cruzinhas que se impõe fazer: o documentário sobre o lendário produtor de filme de série B, Roger Corman, Corman’s World: Exploits of a Hollywood Rebel (2011) que é exibido sábado às 22:00; V/H/S (2012), um filme a várias mãos feito por jovens realizadores norte-americanos [entre as quais Ti West de The Innkeepers (2011) e The House of the Devil (2009)] em territórios do subgénero found footage (sábado à 00:00 e domingo à 00:30); Livide (2011) que será exibido sexta às 21:30 é novo filme da dupla francesa Alexandre Bustillo e Julien Maury que nos deu o excepcional À L’interieur (2007); ainda no cinema francês, que agora mais precisamente junta esforços canadianos e norte-americanos, será apresentado, The Tall Man (2012), o novo filme de Pascal Laugier [Martyrs (2008)] que estará em Lisboa para apresentar a sessão de quinta-feira às 21:45; e finalmente,  Crawl (2011), um exercício de suspense do australiano Paul China que quer seguir na trilha de Blood Simple (Sangue por Sangue, 1984) dos irmãos Coen ou então as obras mais conhecidas de Roman Polanski (quarta às 15:00 e sábado às 16:45).

Para além destes outros filmes serão certamente descobertos along the way. Por agora, que comece o terror.

(A programação completa pode ser consultada aqui.)

sábado, 1 de setembro de 2012

Leituras II

Embora este espaço esteja em semi férias não anunciadas até meados de Setembro escrevi ali ao lado umas coisinhas sobre a falsa geografia de Fernando Meirelles em 360 e a estreia de Bonsái de Cristián Jimenez. Já agora fiquem atentos porque o À Pala de Walsh terá novidades a partir de Setembro.