quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Eclipse da Intimidade



Recentemente num café lisboeta uma adolescente, prestes a pagar a conta ao balcão, recebe uma chamada e diz: ”O meu avô está hospitalizado. Tem um cancro num pulmão e em princípio é mortal.” Entretanto prossegue a chamada com algumas banalidades e ao fim de pouco tempo desliga. Paga a conta e sai do café. À partida, a brutalidade desta informação surpreende  pela aparente contradição subjacente à relação entre o conteúdo da mensagem e a sua forma (a entoação era inafectada, banal, com um volume suficientemente alto para que quem estivesse a uns poucos metros de distância ouvisse e soubesse daquela doença e provável morte iminente).  Não cairemos na patetice de julgar o sofrimento de um desconhecido pela entoação de uma frase.

A questão tem de pôr-se é no campo da compreensão dialéctica entre a esfera pública e privada. Já pelo menos desde os anos 30, e depois com Adorno e Horkheimer, que se percebia que a esfera privada tinha sido colocada no alvo dos interesses de um sistema público. A introdução de locuções como a “reserva da intimidade da vida privada,” “questões do foro íntimo e privado”, ou a expressão,  “por motivos pessoais”, só davam a compreender o óbvio: que essa reserva era admitida sob um olhar estritamente político, quer dizer, público e invasivo.

Desta feita, abrem-se dois cenários. Um mais provável é o de que a constante penetração de elementos que pertencem à nossa relação com aquilo que nos afecta (expresso ao nível dos sentimentos)  pela carga de um funcionalismo que nos ultrapassa (que pertence a uma comunidade), a um centro social que nos reclama, implica o repensar destas duas esferas. Por isso, não espanta que, como aquela adolescente, hoje, usemos como pharmakon, a exposição do que é só nosso, ou pensamos ser só nosso. É esse prolongamento do interior no exterior, da intimidade na devassa pública, da partilha de um evento pessoal ou de um desgosto no palco público (precisamente o local onde todas as dores privadas se desvanecem para dar lugar a uma dor abstracta), que permite ao indivíduo apaziguar o que ainda sente. Neste caso apazigua, mas outros casos conhecemos, em que o social é antes uma certificação do próprio sentir. E aqui entramos na segunda hipótese. É que a indignidade de espalhar aos quatros ventos que temos um avô que está prestes a morrer permite pensar o que faz esta contaminação do privado pelo público na reorganização emocional da nossa esfera emotiva interior. É que parece que a contraposição moderna entre o desgosto e a forma de entoar o desgosto, deu lugar a uma introdução indistinta, pos-ideológica, das frases e suas cargas emotivas numa máquina indistinta de sentenças que se esvaziam, que valem como puro entertainment, quer dos que as ouvem, quer dos que as proferem. Ora a falência dos espaços de intimidade está precisamente em jogo quando é o sistema, ou sistemas, quem certifica que tens uma vida interior e que ela merece ser vivida, apenas e estritamente, dentro dos limites do espectacular.

No livro quente, de ressaca do 11 de Setembro, BEM VINDOS AO DESERTO DO REAL, Slavoj Zizek fala-nos, após vários malabarismos à esquerda e à direita, de uma lição a retirar dos romances de Marguerite Duras. A lição é a de que o único meio para um casal viver uma vida verdadeiramente pessoal não consiste em ficar a olhar um para o outro, esquecendo o mundo à sua volta, mas em olhar juntos, de mãos dadas para o exterior, para um terceiro ponto. E prossegue com a ideia de que o resultado de uma subjectivação globalizada, ou seja uma uniformização do íntimo e pessoal, não provoca o desaparecimento da “realidade objectiva” mas sim da própria subjectividade. A subjectividade passa a ser uma fantasia fútil, enquanto a realidade social segue o seu caminho.

Ou seja, vai morrer-nos um avô, mais tarde ou mais cedo. Nessa morte, a nossa reacção a ela, não depende tanto de nós, mas sobretudo de uma formatação interior, de um ritual do sentimento uniformizado que serve todos os avôs e todos os netos. Nesse contexto só se verterão lágrimas sociais e os espaços de intimidade confundir-se-ão com os palcos. 

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