terça-feira, 13 de setembro de 2011

Um problema, várias soluções

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A possibilidade que Abbas Kiarostami teve de iniciar a sua carreira com várias curtas e longas-metragens ficcionais para a já referida Kanun, o Instituto do Desenvolvimento Intelectual das Crianças e Jovens Adultos no Irão, possui um lado evidentemente irónico. De facto, tratava-se de uma aprendizagem que o cineasta faria enquanto trabalhava o próprio tema da aprendizagem de crianças e jovens. Sobre a sua aprendizagem Kiarostami costuma referir um episódio que se passou aquando da rodagem da sua primeira curta-metragem, NAN VA KOUTCHEH (The Bread and the Alley). Na cena final do filme, o cão senta-se à entrada da porta depois da criança entrar em casa. Ante a dificuldade de fazer o cão sentar-se no final de um longo plano sequência, o director de fotografia, homem experiente, insistia com Kiarostami que poderia filmar em dois planos, montando-os posteriormente. Embora pouco percebesse da linguagem cinematográfica (dado que o seu background estava ligado à pintura, isto apesar de ter entretanto já realizado mais de 100 publicidades mas nunca perto da câmara), Kiarostami insistia em fazer a acção no plano sequência, sobretudo pela necessidade que tinha que o espectador acreditasse naquilo que se passou ante a câmara. Ora, 40 dias foram precisos para que o cão se sentasse finalmente no dito plano. Quando conseguiram o «feito», Kiarostami disse para a equipa, imperturbável: «agora, só mais um». Era portanto um espaço ímpar o deste Instituto que dotou os seus realizadores pelo menos até à revolução iraniana em 79, de um espaço de criatividade e experimentação ímpar no cinema nacional, uma plataforma para um verdadeiro cinema de vanguarda.

Ao contrário dos filmes anteriores com crianças, em 1975, Kiariostami realiza o seu primeiro filme didáctico destinado ele próprio a crianças. Em DOW RAHEHAL BARAYE YEK MASSALEH (Two Solutions for a Problem), Kiarostami explica analiticamente os resultados produzidos por uma escalada de pequenas vinganças entre duas crianças. Apresentadas num sério slapstick, estas são despoletadas pelo facto de um rapaz emprestar um livro a um colega e de este o devolver com uma página arrancada e este em consequência lhe ter partido um lápis e por aí em diante. Na solução alternativa, a da inter-ajuda mútua e do perdão, os dois rapazes permanecem amigos, numa espécie de conclusão dramática para uma curta com propósitos formativos das atitudes socais dos jovens estudantes iranianos.

No ano seguinte, em RANGHA (The Colours), o propósito foi ensinar às crianças as cores. Num ritmo rápido, esta é uma espécie de corrida pelos objectos, suas formas, onde às cores se sucedem as utilizações dos próprios objectos. E essa corrida pode até parecer-nos algo cruel com a importância dada ao vermelho e verde, cores dos semáforos que podem evitar acidentes de viação, ou o lado visual do tiro às garrafas coloridas. Conseguimos ver que o lado poético de um filme aparentemente insignificante, como seria uma breve passagem da Rua Césamo, ganha um contorno de experimentação visual e percurso cromático da nossa realidade.

Mas se a Kanun até 79 oscilou entre filmes didácticos e ficcionais, há que referir que a decepção com que termina TADJEREBEH (The Experience) em 1973, teve uma espécie de continuidade na primeira longa-metragem de Abbas Kiarostami no ano seguinte. MOSSAFER (The Traveler) não só representa um crescimento ao nível da duração da narrativa (tão estranha palavra ao universo do cineasta) como é um marco no próprio cinema iraniano, uma vez que foi o primeiro filme rodado com som directo no país. Filmado com uma Arriflex barulhenta que teve de ser envolvida numa manta, com a sincronização que durou 4 meses, MOSSAFER mostrava o lado inverso da pedagogia. Ou melhor, como o que poderia ser ensinado podia também, muitas vezes, ser pervertido. O jovem protagonista adolescente tudo faz para arranjar dinheiro para assistir a um jogo de futebol de Teerão. Roubos, castigos, mentiras, tudo faz parte de um «código de conduta» que privilegia o sonho e o crescimento pela acção. Detectamos já em MOSSAFER alguns momentos importantes da aproximação de Kiarostami ao universo neorealista, nomeadamente na viagem do jovem protagonista pelas ruas da capital, mas também no trato naturalista que estabelece com os seus não actores. Em particular, veja-se a cena do castigo do jovem pelo professor (um castigo real que valeu um fato de treino e uma bola de futebol oferecido por Kiarostami ao garoto em troca de dez pancadas reais) ou a apreensão no seu rosto na viagem clandestina, de noite, de autocarro que o levaria ao tão almejado jogo de futebol.

Retomando a questão inicial, é interessante verificar que esta identificação com o neo-realismo, a inexplicabilidade do universo infantil, a liberdade de criação proporcionada pela Kanun, ou mesmo o seu passado na publicidade, foram dando a Kiarostami elementos suficientemente complexos com que retratar uma realidade que o rodeava, com a justeza necessária que continha a pobreza, o ensino, o analfabetismo, a dureza da vida, sem nunca ficar preso pela necessidade de mostrar. Que é como quem diz, apaziguar o espectador numa lógica de lucro. Daqui começa a despontar o seu universo enquanto cineasta, que, como já foi descrito por muitos, «quer fazer ver, sem mostrar».

4 comentários:

  1. Sua cópia fiel
    me deixa com um gosto de cereja na boca
    que apenas o vento poderá levar.

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  2. Conheço pouco de Kiarostami, admito que seja um realizador interessante, mas o meu único contacto foi com Taste Of Cherry, que não gostei nada :/

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  3. Narrador: é um bom filme, mas tenta ver Where is the Friend's Home? (1989). Escreverei sobre ele em breve. :)

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