sexta-feira, 30 de setembro de 2011
Branquinho a preto e branco
quinta-feira, 29 de setembro de 2011
Denúncia e honra ou, como ser adulto?
Dois anos após MOSSAFER (The Traveler), Kiarostami, entre curtas-metragens de vertente mais didáctica volta a ensaiar nos terrenos da ficção os contínuos dilemas do início da adolescência. LEBASI BARAY-E ARUSI (The Wedding Suit), que não chega aos sessenta minutos, narra, com extrema crueza, a «luta» do seu jovem protagonista, que trabalha com um alfaiate, entre o universo emocional e profissional. Por um lado, para não perder a amizade do seu amigo tem de emprestar-lhe, sem o patrão saber, um fato novo que um jovem cliente de classe alta encomendou. Por outro lado, há que deixar o dito fato impecável para o momento em que o cliente o irá buscar sem que ninguém saiba de nada.
sexta-feira, 23 de setembro de 2011
Desejo e pós-desejo
Mas sejamos honestos. Esmir Filho é um bom realizador que irá certamente dar que falar nos próximos anos no Brasil. Disso restam poucas dúvidas. No entanto, contrariando uma das frases mais interessantes da obra, «Longe é o lugar onde a gente pode viver de verdade», OS FAMOSOS E OS DUENDES DA MORTE encerram um problema de proximidade, na medida em que todo o seu virtuosismo estético funciona muitas vezes como barreira à verdadeira emoção das personagens da adaptação do romance original de Ismael Caneppele, que Esmir viu como um veículo interessante para continuar o tema da adolescência, espelhado nas suas anteriores curtas-metragens. Da sua breve carreira antes desta longa destaque para ALGUMA COISA ASSIM, que venceu o prémio de melhor argumento em Cannes em 2006 e paragem obrigatória no famoso TAPA NA PANTERA, um vídeo no youtube com mais de 10 milhões de visionamentos.
A trilha de experimentação opressiva desta sua obra, vagamente surrealista, toca por vezes os ambiente de Kelly Reichardt ou mesmo o mal-estar adolescente post-Columbine de Antonio Campos (pensamos no recente AFTERSCHOOL) sem no entanto conseguir tocar o fundo de um desejo também ele adolescente (e é disso que o filme trata, de um jovem numa zona rural brasileira a braços com pequenos grandes traumas de uma relação a três mal resolvida). Fundo que se adivinha estar no fim dos interlúdios poético-formais, no fim do nevoeiro «escandinavo» do interior brasileiro e dos trajectos campestres para os quais Esmir Filho chama constantemente as suas personagens.
Interessante é verificar que o ambiente de uma certa claustrofobia estilística no qual os personagens de OS FAMOSOS… estão imersos, está também presente em VOODOO, a nova curta-metragem de Sandro Aguilar, que complementa a sessão. Em ambos há uma predominância pelos planos apertados, sem profundidade de campo, ou com linhas que cortam (em toda a «dignidade» dir-se-ia) pessoas e objectos expectáveis. No entanto, se na obra de Esmir há uma aproximação que é do domínio do realce emocional, já em VOODOO a perda, a desorientação, é perfeitamente assimilada a um universo de claustrofobia, física e cinematográfica. E eis que falamos outra vez de distância – Sandro Aguilar não faz outra coisa senão instalar-se nela - pela derivação, pela luta, pela integridade dos objectos a irromperem nas narrativas de humanos. E humanos não é aqui uma palavra despicienda. E eis que falamos outra vez de desejo, um desejo já filtrado pelas leis da similaridade e do contágio, princípios com que Aguilar apresenta a sua obra.
A Lei da Similaridade que produz a realidade pela imitação, princípio tão caro ao cinema, explica-se em VOODOO pelo universo da simulação, a acção de formação dos hospedeiros de bordo, fio narrativo que fixa a inquietação de Albano Jerónimo e Isabel Abreu num espaço. A Lei do Contacto sugere que a influência de coisas que tenham estado em contacto mantem-se posteriormente mesmo quando estas já estão distantes. Embora este princípio possa tentar ser encaixado no drama, no back story das personagens, será muito mais útil sublinhar que a aventura negra, solitária, que Sandro Aguilar começou com A ZONA, e que continua com este VOODOO, produz uma influência mútua (que não mima, porque não é clássica, antes «toca e é tocada por») entre as pessoas e os objectos, uma continuidade, dir-se-ia (perdoem-me o lirismo) místico-íntegra. Seja ela entre partes de um reactor e uma face nervosa, seja entre uma parede abandonada pela luz e um olho que por acidente pertence ao campo. Como se as situações que vale a pena serem mostradas fizessem parte de um todo, que se influencia constantemente pelo contacto mas também afastamento, em que pouco sentido fará falar de uma predominância das pessoas em relação ao real que as abafa, as «claustrofobiza».
Neste sentido o filme de Sandro Aguilar permite pensar em como um sorriso pode ser inerte por relação a uma linha de tecto, como um boneco terá muito mais urgência em ser salvo do que aquele que o massaja cardiacamente. Nesta singular afirmação filosófica da continuidade do real, há um transe expresso nessa mútua influência, uma linha implacável que trabalha a transição cinematográfica: das formas às coisas, das coisas às pessoas, das pessoas aos planos, dos planos ao espectador, produzindo-se uma forte tensão, um todo inexplicável que engole e reflecte as tensões das pessoas que vivem nesse mundo. Este olhar singular, o de Sandro Aguilar, uma espécie de «gémeo mau» do cinema português, parece empurrá-lo para um dos seus lugares de predilecção, um espaço de solidão, sem holofotes. Mas essa sua segurança a manufacturar lugares de isolamento permite extrair, sem lugar a grandes dúvidas, uma certeza: a de Sandro Aguilar ser incontestavelmente um dos maiores talentos do cinema português contemporâneo.
Ambos os filmes estreiam na próxima quinta-feira, 29 de Setembro.
terça-feira, 13 de setembro de 2011
Um problema, várias soluções
Ao contrário dos filmes anteriores com crianças, em 1975, Kiariostami realiza o seu primeiro filme didáctico destinado ele próprio a crianças. Em DOW RAHEHAL BARAYE YEK MASSALEH (Two Solutions for a Problem), Kiarostami explica analiticamente os resultados produzidos por uma escalada de pequenas vinganças entre duas crianças. Apresentadas num sério slapstick, estas são despoletadas pelo facto de um rapaz emprestar um livro a um colega e de este o devolver com uma página arrancada e este em consequência lhe ter partido um lápis e por aí em diante. Na solução alternativa, a da inter-ajuda mútua e do perdão, os dois rapazes permanecem amigos, numa espécie de conclusão dramática para uma curta com propósitos formativos das atitudes socais dos jovens estudantes iranianos.
No ano seguinte, em RANGHA (The Colours), o propósito foi ensinar às crianças as cores. Num ritmo rápido, esta é uma espécie de corrida pelos objectos, suas formas, onde às cores se sucedem as utilizações dos próprios objectos. E essa corrida pode até parecer-nos algo cruel com a importância dada ao vermelho e verde, cores dos semáforos que podem evitar acidentes de viação, ou o lado visual do tiro às garrafas coloridas. Conseguimos ver que o lado poético de um filme aparentemente insignificante, como seria uma breve passagem da Rua Césamo, ganha um contorno de experimentação visual e percurso cromático da nossa realidade.
Mas se a Kanun até 79 oscilou entre filmes didácticos e ficcionais, há que referir que a decepção com que termina TADJEREBEH (The Experience) em 1973, teve uma espécie de continuidade na primeira longa-metragem de Abbas Kiarostami no ano seguinte. MOSSAFER (The Traveler) não só representa um crescimento ao nível da duração da narrativa (tão estranha palavra ao universo do cineasta) como é um marco no próprio cinema iraniano, uma vez que foi o primeiro filme rodado com som directo no país. Filmado com uma Arriflex barulhenta que teve de ser envolvida numa manta, com a sincronização que só durou 4 meses, MOSSAFER mostrava o lado inverso da pedagogia. Ou melhor, como o que poderia ser ensinado podia também, muitas vezes, ser pervertido. O jovem protagonista adolescente tudo faz para arranjar dinheiro para assistir a um jogo de futebol de Teerão. Roubos, castigos, mentiras, tudo faz parte de um «código de conduta» que privilegia o sonho e o crescimento pela acção. Detectamos já em MOSSAFER alguns momentos importantes da aproximação de Kiarostami ao universo neorealista, nomeadamente na viagem do jovem protagonista pelas ruas da capital, mas também no trato naturalista que estabelece com os seus não actores. Em particular, veja-se a cena do castigo do jovem pelo professor (um castigo real que valeu um fato de treino e uma bola de futebol oferecido por Kiarostami ao garoto em troca de dez pancadas reais) ou a apreensão no seu rosto na viagem clandestina, de noite, de autocarro que o levaria ao tão almejado jogo de futebol.
Retomando a questão inicial, é interessante verificar que esta identificação com o neo-realismo, a inexplicabilidade do universo infantil, a liberdade de criação proporcionada pela Kanun, ou mesmo o seu passado na publicidade, foram dando a Kiarostami elementos suficientemente complexos com que retratar uma realidade que o rodeava, com a justeza necessária que continha a pobreza, o ensino, o analfabetismo, a dureza da vida, sem nunca ficar preso pela necessidade de mostrar. Que é como quem diz, apaziguar o espectador numa lógica de lucro. Daqui começa a despontar o seu universo enquanto cineasta, que, como já foi descrito por muitos, «quer fazer ver, sem mostrar».
sábado, 10 de setembro de 2011
Pelos inícios de Kiarostami
Se em NAN VA KOUTCHEH, era o medo de um animal que detinha a atenção da criança, em ZANG-E TAFRIH, (The Recess) dois anos mais tarde, as coisas complicam-se. A criança parece ter crescido um pouco e, com a sua bola, já incomoda em vez de ser incomodada (os professores, os colegas) e nessa interacção coragem/medo, acção/reacção, Kiarostami descobre a inexplicabilidade da fuga, e a experimentação das formas. Os planos dos carros que passam, o monte que o rapaz desce e a câmara já cá tão longe da acção, fazem agora já muito mais do que «apanhar» o olhar do cão, nos instantes finais de NAN. Está em jogo algo muito importante que viria a modelar Kiarostami como cineasta com uma visão de «lince» sobre a realidade e seu detalhe. Nessas fugas que se começam a desenhar está em jogo o percurso de preservação de uma identidade.
Já com perto de uma hora, em TADJEREBEH (The Experience), Kiarostami mostra a adolescência, os primeiros olhares às raparigas, a pressão dos mais velhos, o brio profissional. Embora demasiado prosaico para o que lhe conhecemos a seguir, TADJEREBEH tenta uma espécie de equilíbrio entre o interior e o exterior. O interior - composto sobretudo pela loja de fotografia onde o adolescente trabalha - surge como espaço de virtuosidade fílmica a Kiarostami (algo que não viria a ser propriamente marca do realizador) e espaço de pressão e tédio. O exterior - esse sim, o lugar de Kiarostami – é também o momento de descompressão do jovem, lugar mais uma vez de mobilidade. Ao medo dos seus filmes anteriores entramos aqui no domínio do desejo. Um desejo muito tímido, infantil que desponta. Ao ver TADJEREBEH percebemos que é também Kiarostami a despontar, que é um cineasta à procura do seu vocabulário visual. Vemos que ainda não domina, como o viria a fazer, a arte da irrisão, a filigrana do seu anti-estilo. Nesta «experiência» não falta a exploração do papel dos olhares, em especial o feminino, da mulher de cartão no seu local de trabalho, ou dos «entes» fotografados.