É comum rotular os anos trinta e quarenta como a época de ouro do cinema português, com as suas comédias populares, grandes sucessos de bilheteira e estrelas populares como Vasco Santana, Laura Alves, Ribeirinho ou António Silva. Já menos comum é falar-se da pobreza da grande maioria destas obras em termos cinematográficos. Um filme que por acaso é a maior excepção a esta regra, O PAI TIRANO (1941), considerado hoje a melhor comédia do cinema português, ilustra num dos seus principais temas, a razão desta degradação qualitativa: a querela entre o cinema e o teatro, designadamente vendo o primeiro como bizarra modernice e o segundo como «arte segura».
O problema era precisamente esse o veiculado pelo filme de António Lopes Ribeiro. O filme que punha um actor de teatro (Ribeirinho) a esconder essa sua paixão para ganhar os favores de uma cinéfila (a célebre Tatão, interpretada por Leonor Maia), soube falar-nos, por exemplo, nas cenas dos ensaios do grupo de teatro dos «Grandelinhas» da dimensão de uma arte que, sob a ameaça do cinema, parecia esgotar-se em poses e posturas divertidas numa altivez anacrónica. Ou mesmo de uma degradação dos gostos do seu público: relembre-se como a plateia adora a nova «peça», modificada no seu plot original por instâncias dos amores e desamores de Tatão e Francisco. Mas deixando o filme O PAI TIRANO, que já continha algumas sementes de um teatro a querer ser tratado como cinema, diga-se que genericamente este cinema popular feito sob os auspícios do Estado Novo era sobretudo baseado em folhetins de revistas, em farsas vicentinas que pouca margem davam ao cinema, no interior do seu argumento de peripécia, para se desenvolver como arte do espaço, com valorização do detalhe, da aproximação, da ruptura com uma visão horizontal, encerrada, distante, numa palavra: teatral.
Um bom exemplo deste tipo de filmes é O COSTA D'ÁFRICA (1954), realizado por João Mendes, com Vasco Santana e Ribeirinho. Para além da sátira colonialista ao tio que vem de África, aos nós que as posturas sociais da metrópole dão azo, à voz de Laura Alves ou aos divertidíssimos diálogos que lhe servem de base, raras vezes a câmara está a contar, raras vezes há um envolvimento da acção no espaço, como se os brandos costumes portugueses tivesse tido dificuldade em acomodar uma arte de que se desenvolve sobretudo na fractura da horizontalidade, na profundidade do campo, quer no sentido técnico, quer no sentido lúdico do termo. Ou seja, se O COSTA D'ÁFRICA é um dos mais hilariantes filmes feitos nestas décadas é também um dos que melhor ilustra a teatralidade com que o cinema português apresentava ainda os seus choques e morais.
Interessante é o ponto intermédio onde hoje podemos colocar um filme como O COSTA DO CASTELO (1943), de Arthur Duarte. A necessidade de recorrer aos belos fados, à mostragem da cidade de Lisboa, não escondem o falhanço cinematográfico que desde o seu início - ainda com os planos de Lisboa e o genérico inicial a correr – é. Outra vez, há um lado teatral na forma como se concebe o espaço da hospedaria onde vive Simplício Costa (António Silva) e Luisinha (Milú) e mesmo na mansão dos tios de Daniel (Curado Ribeiro). Ou mesmo no sublinhar, à medida do regime de Salazar, da mensagem da pobreza como alegria e vida, por oposição à lugubridade das classes abastadas pertencentes a uma burguesia portuguesa em decadência. Não é aliás preciso muita imaginação para fazer o cruzamento entre a imobilidade solene, despropositada, destas classes e o teatro como arte da imobilidade do espaço, e do outro lado, a correria bem disposta do Costa do Castelo, sinal da popularidade das classes mais desfavorecidas, mas também do cinema como arte popular, que penetra na rua, na loja, na dimensão imprevidente do dia-a-dia
Contudo, se como dizia, há um falhanço no filme de Artur Duarte, e ele lá está em alguns diálogos, em algumas cenas (veja-se o ideia final do Costa do Castelo para reconciliar a «Julieta» Milú e o «Romeu» André), também há nele uma consciência imperiosa de um cinema que não chega a acontecer.
A tragédia ricos versus pobres, a alternância de casas e classes a fazer lembrar RUGGLES OF RED GAP são tudo elementos longe de ser inocentes. Se genericamente muitas cenas são, en passant, para mais uma gargalhada, o estatuto da pobreza como vitalidade tem na sequência em que Milú toca piano na casa da condessa, com a música a invadir o espaço, a transformá-lo, a chamar os seus ocupantes, uma digna ideia cinematográfica que quer romper mais uma vez com uma ideia de horizontalidade da frase e do gag. Mas assim sendo porque insistimos então na ideia de um «falhanço»?
Saltemos até à cena final. Nesta o costa do castelo leva o par desavindo para a reconciliação final, fechando-o num quarto. Lá fora ficamos nós à espera de um desfecho positivo, «esperemos que eles se entendam», diz a mãe Rita (Maria Olguim). Compasso de espera. Aqui damos de caras com uma ideia perfeitamente lubitschiana: um plano sobre as maçanetas de uma porta a rodarem para nos dar o seu interior. Contudo, lá dentro o relógio de cuco não sai com os noivos a juntarem-se como em THE AWFUL TRUTH, de Leo McCarey, ou Maurice Chevalier não tem uma espada diferente como em THE SMILING LIEUTENANT, de Ernst Lubitsch. No seu interior, vemos apenas o par reconciliado quase por toques de magia. Ou seja, não há gag. Há final feliz, e das maçanetas que se abriram não se nos é revelado o porquê, para nós, se abriram.
O fim de O COSTA do CASTELO ilustra como poucos a posição intermediária que o filme ocupa num momento de grande euforia do cinema português na relação com o público, onde a certas ideias de cinema não lhes foi muitas vezes dado o suficiente espaço para se concretizarem. Contudo, a presença daquelas maçanetas permitiu ao público português ter a esperança na existência de um verdadeiro cinema clássico português. Algo que infelizmente nunca chegou a existir.