quarta-feira, 13 de abril de 2011

Nenhures- Parte II

O muito contestado vencedor do Leão de Ouro de Veneza do ano transacto, SOMEWHERE, de Sofia Coppola, teve de lidar com várias acusações. Que tinha havido favorecimento pois o presidente do júri era um antigo namorado, a saber, Quentin Tarantino. Que era de uma indignidade retratar o dilema de jovens estrelas de cinema quando tanta gente pelo mundo sofria realmente. Que o filme era uma mera repetição da fórmula de sucesso de LOST IN TRANSLATION, etc, etc.

O curioso é que sem termos que negar qualquer destes pontos, SOMEWHERE continua a ser uma obra ímpar no panorama da construção de um discurso cinematográfico sobre o tédio (algo que a dissolução das identidades traçadas com o cinema dito moderno iniciou mas como deambulação de um eu que recusava estar fechado no espartilho da representação). Aqui, o tédio de Johnny Marco (Stephen Dorff), absolutamente demolidor a construir em filigrana o vazio, o aimless do filme, tem muito menos que ver com uma maldição do génio do criador (como no ennui baudelairiano) ou como condição do ser (como no existencialismo de Sartre) mas sobretudo uma verdadeira perturbação do mecanismo do desejo.

A mecânica do velamento / desvelamento, que faz do objecto de desejo um telos diário no humano, surge, no interior dos espaços de habitação (espaços públicos ou semi-públicos sem marcas de familiaridade, como é o caso do Hotel Chateau Marmont em que vive Marco, como o era com o palácio de Versailles de MARIE ANTOINETTE) como algo absolutamente à mercê, como algo que provoca o sono (veja-se a aparente narcolepsia de Marco em momento «decisivo»). Esse sono provém da descoincidência do real com a expectativa que este pode ser capaz de produzir.

Desta forma, é injusto falar-se de dilemas de estrelas a propósito de SOMEWHERE, ou mesmo, partindo da restante filmografia de Coppola, quando na verdade o que está em causa é essa turbação do mecanismo do desejo que afunda as sociedades pós-industriais. Essa desproporção entre o investimento feito «no viver» e o seu resultado, tem como tradução visual uma dessincronia: como se tudo o que Marco vive tivesse sido concebido à sua medida embora sem prever que este estivesse uns centímetros mais à esquerda ou mais acima. Essa não é uma «mariquice» ensimesmada, como muitos querem fazer querer, trazida à baila por uma mimada que resolveu ser realizadora e não tem histórias a sério para contar, mas sim como algo da ordem da desorganização do político face aos seus destinatários. O zoom in sobre a máscara de gesso de Johnny ou o zoom out sobre o pai e filha a apanhar sol na piscina mostram precisamente esse «estar fora» como um detalhe absolutamente determinante para mostrar esses movimentos que o político opera no identidade do ser humano quando este pensa já não ter nada à medida.

Neste sentido, SOMEWHERE não é um manifesto de regresso às coisas simples da vida, nem sequer uma apologia do amor e reunião familiares. Trata-se de um maciço movimento no sentido da sincronia. Da sincronia das coisas face às suas intenções e emoções. Que essa sincronia surja do contacto com a extraordinária actriz que já é Elle Fanning é um bónus. Que essa sincronia seja vista como «solução» para este estado de coisas já é uma outra questão...

3 comentários:

  1. Reconheço pontos de génio neste filme, embora o todo me tenha desagradado. De qualquer forma, gostei muito de ler este texto, parabéns.

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