segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Indomável

Sem ser literal, a tradução encontrada para TRUE GRIT- «Indomável» - tem a vantagem de fornecer pistas para aquilo que o último filme dos irmãos Coen contém de mais significativo. Não é novidade que a visibilidade, quer artística, quer crítica, que conquistaram se fez com um particular apoio num universo clássico de género, com particular interesse no thriller (FARGO, BLOOD SIMPLE), no noir (THE MAN WHO WASN’T THERE), ou claro, na comédia (THE LADYKILLERS, THE BIG LEBOWSKI), só para citar alguns exemplos mais óbvios. Contudo essa herança, essa ontogenia, não pode ser compreendida sem uma permanente necessidade de reformulação (em alguns casos de valores, estilo, mas noutros mesmo de tom) e reenquadramento pós-moderno sob um olhar irónico, witty como se diz. E nesse sentido, ao contrário de Clint Eastwood por exemplo, os irmãos Coen são uma espécie de classicistas cool, alunos mal comportados com boas notas.

Este interlúdio serve para dizer que no caso de muitos filmes que saíram do clássico há uma espécie de reverso que ficou por fazer, de espaço de liberdade que os realizadores não tiveram por imposições do sistema de estúdios e que agora servem na perfeição as intenções da cinematografia de gente como os irmãos Coen. É o caso de TRUE GRIT, romance de 68 do «salingeriano» Charles Portis, que adquirido pela Paramount e sob a direcção de Henry Hathaway acabou por funcionar como veículo para John Wayne vencer o único oscar da sua carreira. À altura as imposições de estúdio, a necessidade de fazer estrelar Wayne, fizeram do filme um late western um pouco imobilizado na sua estrutura de confronto/amizade entre Rooster Cogburn e Mattie Ross. Ele, Wayne com uma pala à la John Ford, uma velha raposa do Oeste, caçador de recompensas, ela, jovem precoce de 14 anos (Kim Darby na versão de Hathaway e Hailee Steinfeld na dos Coen) que quer vingar a morte do seu pai às mãos do malfeitor Tom Chaney e para isso contrata Rooster para o encontrar e trazer à justiça.

Ao ver agora a versão dos Coen, que, como se sabe não é um remake, na sua postura mais cuidada, com o alargamento a uma galeria absolutamente fascinante de personagens secundárias (Barry Pepper como Lucky Ned, Paul Rae como Emmet Quincy ou mesmo Domhall no breve papel de Moon), a atenção ao detalhe de reconstituição do Arkansas de meados do sec. XIX, ou mesmo na decisão de descentrar o drama da personagem masculina para a feminina, podemos ver que esse processo de «inchamento» de uma pequena história de vingança e determinação num «grande clássico» não deixa de trair um pouco a premissa originária. Essa traição não é completa pois, como dissemos, os irmãos Coen são muito conscientes das virtudes da pequena narração e nesse sentido TRUE GRIT não é tanto uma revisitação pontual a um género moribundo, o western, mas uma obra de uma realidade alternativa, um «imaginem lá se...».

É nesse sentido que Jeff Bridges, agora com a pala no olho direito, encarna a má disposição sardónica de Rooster como algo levado ao limite do risível. Aquela já não é só símbolo de protecção do interior ferido do herói, mas agora também espaço performativo. Como se falar a sério exigisse ter «tomates» para a ironização. E é nesse sentido, que, como se diz, «the dude meets the duke», falando-se da junção Wayne, Jeffrey Lebowski, famosa composição de Jeff Bridges em THE BIG LEBOWSKI. Nesse sentido ainda, o overacting de Bridges, até de Damon de língua rachada, terceiro elemento desta perseguição, ou o «testamento» final de Mattie Ross. Tudo são marcas que, ora nos soa a degradação de algo pequenino na sua ambição mas intocável, ora se verte em reposicionamento de um olhar. É esse movimento de perplexidade, o carácter indomável de TRUE GRIT, que é tido como o seu principal pecado. Pecado que, como qualquer um que se preze, convém estimar.

De relembrar que ontem TRUE GRIT saiu como entrou da cerimónia dos oscars: dez nomeações, zero estatuetas. Apesar de ser obviamente um dos derrotados da noite, ou se calhar por isso mesmo, merece a nossa redobrada atenção.








domingo, 27 de fevereiro de 2011

Tudo o Que Você Sempre Quis Saber Sobre Bloggers de Cinema [Mas Teve Medo de Perguntar]

É já depois de amanhã, dia 1 de Março, que arranca o projecto «Carta Branca», iniciativa na qual o Teatro Municipal de Faro decide abrir a sua actividade e ordená-la de acordo com outros olhares artísticos.

Ao longo do ano, o Teatro convidará três profissionais ligados à programação cultural da cidade, um por trimestre, a apresentar um novo conceito de programação.

A primeira dessas pessoas é Anabela Moutinho, Presidente do Cineclube de Faro, que decidiu dedicar a sua actividade à relação entre a cinefilia e as plataformas de escrita digitais, os blogues de cinema.

Para tal concebeu um ciclo intitulado Tudo o Que Você Sempre Quis Saber Sobre Bloggers de Cinema [Mas Teve Medo de Perguntar] e convidou ciclo bloggers, entre os quais se encontra este vosso anfitrião, a escolher um filme.

Os filmes serão apresentados de 1 a 5 de Março no Teatro Lethes, sendo que no último dia, sábado dia 5 de Março pelas 21:30, terá lugar uma mesa-redonda com a presença dos cinco bloggers. Estes são:

Carlos Natálio - Ordet
Chico - My One Thousand Movies
Cristina Marti - Dias Felizes
Ricardo Vieira Lisboa - Breath Away
Victor Afonso - O Homem Que Sabia Demasiado

O debate centrará à volta da comunidade de bloggers, da especificidade dos blogs de cinema, o que lhes confere qualidade, a relação entre cinéfilia e crítica de cinema online/offline, partilha de ficheiros, paradigmas e dissidências do digital, etc..

Aqui fica o programa integral:

PROGRAMA:

Dia 1 | 21h30 Wendy & Lucy, Kelly Reichardt, EUA, 2008, 80' escolha de Ricardo Vieira Lisboa
Dia 2 | 21h30 Luz Silenciosa, Carlos Reygadas, México, 2007, 136' escolha de Carlos Natálio
Dia 3 | 21h30 Tetro, Francis Ford Coppola, EUA, 2009, 127' escolha de Chico
Dia 4 | 21h30 Vem e Vê, Elem Klimov, URSS, 1985, 145' escolha de Victor Afonso

Dia 5 | 14h30 História(s) do Cinema, Jean-Luc Godard, França, 1998, 268' escolha de Cristina Marti
Dia 5 | 21h30 Mesa-Redonda com os 5 bloggers

Mais detalhes, aqui.

Quer pelos filmes, quer pelo tema, e passo a publicidade, a iniciativa promete ser um sucesso. Apareçam!

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

A bimby de Danny Boyle

Após a perversa lição de «mundividência» de SLUMDOG MILLIONAIRE, que deixou toda a gente nas palminhas, a ser «amigo» das culturas longínquas e pobrezinhas, Danny Boyle tinha em 127 HOURS um interessante teste à sua capacidade de redenção, sobretudo, porque a história verídica do aventureiro Aaron Ralston no qual se baseia o filme, é uma história de imobilidade. Em 2003, Aaron numa caminhada pelo Canyon no Utah, ficou com o braço preso numa rocha, no fundo de uma ravina durante cinco dias, num momento extremo de luta pela sobrevivência. Boyle juntamente com Simon Beaufoy, que já tinha escrito SLUMDOG, e o próprio Ralston que contou a sua experiência no romance BETWEEN A ROCK AND A HARD PLACE, colaboraram no argumento e escolheram James Franco para o papel de protagonista.

A imobilidade de Aaron, centro da tragédia, convoca uma passagem por diversos estádios: esperança, organização, desespero, luta pela sanidade, etc. Contudo, desde o genérico inicial, movimento cosmopolita plasmado com world music, percebemos que Boyle tem pouca confiança nesse tipo de imagens, que se sente pouco à vontade com a tensão dramática e que ao invés prefere divagar e intermediar entre o drama e o espectador o seu «estilo». Trata-se de um caso nada raro de uma verdadeira obsessão pelo movimento (e nesse sentido nenhum filme com premissa tão «presa» acaba por ser tão diletante, tão esvoaçante) e sobretudo pela necessidade de extrair da realidade consequências bigger than life bacocas. Daí cairmos rapidamente na apressada reflexão sobre o jovem que acaba numa situação destas porque, e só porque, não dá a devida atenção às pessoas que o rodeiam. Por isso, não disse a ninguém onde ia naquela fatídico dia e nenhumas esperanças em ser salvo. Uma mensagem de sociabilidade. Sim, por certo. Mas porquê? Para quem? Para quê?

É curioso ainda perceber que essa estética e obsessão morais engolem todo o filme inclusivé a interessante ideia de que Aaron decide filmar-se a si próprio durante todo o processo de sobrevivência e/ou morte eminentes. O que é um digno acto de registo, de alguém que nos derradeiros momentos de vida se augura em historiador de si próprio, passa rapidamente a fazer parte do reality show montado, onde a eminência da morte, o sonho, as lembranças, o passado, é tudo filmado com o mesmo desprimor. Um bom exemplo é a forma como passamos dos momentos em que Aaron se filma à decisão de Boyle de fazer um plano do interior do braço que está prestes a ser decepado. Mostrar sempre mais, para dentro, na ilusão de que o ver mais, e mais rápido é o que mais move o espectador. Longe vão os tempos onde a ilusão do movimento e da fantasmagoria era suficiente.

Assim, 127 HOURS consegue o mais difícil, banalizar uma situação de excepção. É pena.



domingo, 13 de fevereiro de 2011

Que estranho é este?

Não é difícil de perceber a razão pela qual os últimos filmes de Woody Allen têm sido recebidos com distância pelo público que os tinha incorporado como extensão «intelectual» de um gosto mainstream que alegremente aligeirava tiques sociais, truques da vida urbana, convertendo-os em deliciosas psicopatias. Falamos claramente da sua fase post SWEET AND LOWDOWN (1999), em que Allen ganhou consciência do seu próprio estilo e o que isso era capaz de fazer às pessoas. Desse encontro público/cineasta produziram-se obras mais despertas para a função comercial da marca Woody onde este programou, com sucesso diga-se, o improgramável: a veiculação erudita de um «defeito» de personalidade, ou por outra, um hipocondríaco que sabe sê-lo. Contudo, quem viu obras como MANHATTAN (1979), HANNAH AND HER SISTERS (1986), ANOTHER WOMAN (1988), sabe que o universo do cineasta é bem mais multifecetado, bem mais marcado por uma tristeza visível, do que os seus fãs poderiam conceber.

Não há tristeza em YOU’LL MEET A TALL DARK STRANGER. Há o contrário disso. Há uma alegria contida pela diversidade, pela ausência de sentido que a vida, e os filmes nela, podem e devem contrariar. A razão de ser desta baixa de popularidade de Allen entre o grande público não permite aplicar o chavão do envelhecimento, dos filmes feitos em série, etc. Ou melhor, permite trazer o envelhecimento como momento onde os filmes de Woody Allen largam a programação da gargalhada e enveredam por uma comédia subtil onde o sorriso substitui o riso, e sobretudo onde se inverte o centro da cinematografia de Allen: pela primeira vez, a «illusion» substitui a «medicine». Essa frase, que abre e fecha YOU’LL MEET A TALL DARK STRANGER, é uma espécie de fio condutor de uma visão, que de fora soa a nihilista e põe na condescendência, no esforço por «ficar bem», a tónica dos seus filmes.

Note-se: a relativização é, e sempre foi, uma estratégia de comédia. E nisto, Woody Allen não fugiu nunca à regra. Contudo, a relativização deixa de ser aqui ou em WHATEVER WORKS (2009) apenas veículo de transformação do sério em gag, convertendo-se ele próprio em gag da vida, em statement moral, ainda que não moralista. E é excepcional perceber que a maturidade a Woody Allen lhe trouxe a ideia de que a vida, sem arranjo, sem ordenação é já stand up comedy, que não existe distinção entre o mundo e a ridicularização do mundo. O mundo já é a sua comédia.

Habituados que estávamos ao desfile paranóico de Allen, como lidar com a sua serenidade, com esta ausência de impermanência afectiva? Não é só por uma questão de facilidade que os filmes de Woody Allen são hoje friamente recebidos. Uma das razões é que, em nosso entender, a «mensagem sábia» da relativização final, do placebo melhor que o remédio, é vista pela maioria de nós, com menos de 76 anos, como um ponto de vista venerável mas que resiste a ser compreendido a partir do seu interior. Por isso, aos nossos olhos, são Helena (Gemma Jones), no seu consolo astral, e Alfie (Anthony Hopkins), no seu consolo carnal, as personagens mais interessantes de YOU’LL MEET. Os mais novos, Watts/Brolin/Banderas/Pinto fazem todos parte de uma mesma máquina em pane do qual Allen parece já ter saído, de corrida atrás da própria cauda. Por isso, a extraordinária cena especular em que Roy Channing apanhando-se finalmente do lado de cá da janela olha da mesma forma ansioso para a janela da sua ex-mulher.

Todos erram. Os primeiros como condição de caracterização de uma etapa vivencial. Os segundos, finalmente, com certeza. É essa certeza, num cinema que sempre viveu da dúvida, que nos é hoje, ainda, difícil de acomodar.







(queria pedir desculpa aos meus leitores por este interregno motivado por algum trabalho acumulado na universidade. Espero poder retomar a regularidade do blog nestes próximos tempos.)