terça-feira, 30 de junho de 2020

Lembram-se disto

Cá está!


segunda-feira, 29 de junho de 2020

Raccords do Algoritmo #23: Inferno cá dentro e inferno lá fora






























O filme é também inspirado num poema de Fausto Maria Martini “Rapsodia Satanica: Poema cinema-musicale”. Ao contrário das demonstrações cinéticas do poder do diabo que víamos em George Méliès, por exemplo, aqui, Mephisto, interpretado por Ugo Bazzini, tem uma dimensão lírica e insinuante. Ele sai de um quadro, ganha vida a partir dele. Tema que era recorrente no cinema mudo – lembro, o excelente An Unsullied Shield (1913) de Charles Brabin, no qual os ancestrais de um homem que não honra a sua promessa no leito de morte do pai saem dos seus quadros e voltam à vida para lhe mostrar as dificuldades pelas quais passaram ao longo dos séculos, encorajando-o a perseverar ante as dificuldades. Aqui, o que Mephisto fará ao sair do quadro é pedir à Condessa Alba d’Oltrevita que parta o símbolo do amor se quiser regressar à juventude, isto é, que parta o tempo.

Raccords do Algoritmo #22: Perdidos no território da imagem





























Numa das primeiras edições desta crónica escrevia sobre esta excitação da cinefilia nos ir permitindo abrir uma série de portas, por detrás das quais moravam as imagens do desconhecido. Mas neste percurso, ora ordenado, ora errático, vamos precisando de mapas que nos guiem na exploração do território do cinema. Mesmo que sejam para nos perder, mesmo que sejam assunto de “impossíveis cartografias”, para referir o subtítulo de um interessante livro de Michael Goddard dedicado ao cinema de Raúl Ruiz. A dada altura de The Territory (O Território, 1981), as duas famílias de turistas americanos perdidos nos bosques, que ocupam o centro do enredo deste filme do mestre chileno, encontram um mapa. Este representa uma dessas cartografias-paradoxo. Nele está desenhada uma cabeça que representa o parque onde estão. E dentro da cabeça está a província que contém o parque, dentro da província o país, e dentro do país a Europa, que por sua vez contém o Mundo. Mas dentro do Mundo, claro, está a Europa e dentro desta o país e depois a província e depois o parque onde estão… Ou seja, quanto mais para fora, mais para dentro e quanto mais fundo mais à superfície.

quinta-feira, 18 de junho de 2020

Sem cabeça/sem vento




Na vertigem do movimento e da transformação as coisas tendem a ser vistas com o mesmo olhar pesado, sem distinção. O derrube de estátuas é um sinal de transformação. Pelo menos nos últimos 2000 anos não assistimos a outra coisa do que à substituição, alteração, vida e decadência - umas vezes lenta e pacífica, outras de forma abrupta e violenta - dos símbolos de veneração e respeito. As estátuas que hoje caem são obras, mas são sobretudo símbolos. Símbolos de um passado com o qual estamos hoje a braços. Não no sentido de o eliminar, mas de o reavaliar como desigual, injusto. Manter esses símbolos no presente significaria querer mudar as coisas, sem mudar a visão simbólica sobre elas. Os símbolos caem, renovam-se, para que a realidade se transforme. Parece-me isso não só natural, como desejável. Outra coisa bem distinta é vetar obras do passado, consideradas racistas, misóginas, ao exílio e à invisibilidade. Estamos ainda a falar de um desejo de transformação. Mas a censura mostrou-nos que a transformação não pode ser às custas da cegueira. Esse é o argumento das ditaduras: encerrar-se sobre si, abafar o indesejado, controlar o que pode ser visto, dito, pensado. Pelo contrário, quanto menos virmos filmes como "The Birth of a Nation" ou "Gone with The Wind" mais cegos estaremos face aquilo que aconteceu no passado, com as suas qualidades e defeitos, com as suas circunstâncias artísticas e políticas. E, ironicamente, menos teremos consciência do que há a mudar daqui em diante.Vetar à invisibilidade a história é muito diferente da renovação dos símbolos de exaltação da mesma. Uma procura apagar/esconder factos, a outra renova juízos de valor.

E sobre as introduções contextualizadoras diga-se o seguinte. Todas elas, sem excepção, são "bengalas mentais", para utilizar a expressão do Miguel. Mas todas elas sempre foram necessárias para colocar uma obra no seu tempo. Todas elas têm expressa uma visão qualquer - nuns casos de forma mais evidente, noutras de maneira mais implícita - a subjectividade de quem as elaborou. Não podemos presumir que todo o espectador sempre já é capaz de ter um olhar esclarecido e livre de condicionamentos. Os museus, as cinematecas não são outra coisa do que grandes fazedores dessa contextualização. E são vitais. Dito isto, convém ter noção que sempre deveremos permanecer livres de fugir, de contornar, de compreender a dimensão ideológica daquilo que se pode dizer sobre uma obra. (Aliás, basta imaginar a introdução contextualizadora que a netflix faria hoje sobre Gone With The Wind e compará-la com as que se têm produzido ao longo dos anos, para percebermos como sempre está em causa a mudança dos nossos olhares, de vermos as obras à medida que mudamos). Mas acho que é importante frisar que o discernimento do espectador, a consciência crítica, não são coisas que surjam do ar, dados adquiridos, a priori. Quantos filmes, quantas aulas, quantos livros são necessários para ganhar essa distância? A liberdade crítica é coisa árdua de construir, onde se jogam responsabilidades da política de cada estado, embora seja um processo eminentemente individual. Veja-se o Brasil de Bolsonaro ou a América de Trump e veja-se onde levou esse mito que todos já nascemos igualmente críticos e distantes face a uma dada informação. Daí que essa relação entre a fabricação institucional de contextos e a destruição/libertação individual de contextos viva de um necessário equilíbrio. Um que não pressuponha nem que toda a gente seja à partida esclarecida, nem outro que assuma que toda a gente seja à partida pouco inteligente.


António Reis, fotografias de nitidez / fotografias obscuras

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Numa cena de Jaime (1974), António Reis filma o barbeiro de Jaime Fernandes. Este conta como tendo achado os desenhos do amigo muito estranhos, este lhe havia respondido: “Oh, Manuel, você compreenda, há fotografias de nitidez, estas são obscuras… são feitas por mim, conforme a minha vontade”. Utilizando algumas passagens do mais recente livro editado entre nós pela Documenta, Descasco as Imagens e Entrego-as na Boca – Lições António Reis (e em alguns casos citações, no interior do mesmo, atribuídas a pessoas que com ele privaram) e pegando nesta ideia da relação entre as fotografias de nitidez e as “outras”, as obscuras, (tensão aflorada por Maria Filomena Molder no seu ensaio presente no livro), o que aqui se procura é que a memória e evocação possam dar nitidez à presença de Reis na cultura portuguesa, enquanto cineasta, poeta e pedagogo, e, ao mesmo tempo, preservar as suas “fotografias obscuras”. Que é o mesmo que dizer, os insondáveis mistérios da arte de que foi o criador.

sexta-feira, 5 de junho de 2020

não colocar isto nos ombros da utopia



Há imagens que se infiltram na tua cabeça, nos sonhos, nos acordares, que torcem a psyche e estão lá ao pequeno almoço, e não deixam dormir e pensar. Imagens-vírus que muitas vezes queres afugentar como um mosquito zombeteiro e continuam lá à espera. Como se exigissem uma acção qualquer, uma tomada de posição, outra imagem "contra-violenta". Duas delas não me saem da cabeça.

1. A primeira é uma espécie de perverso zoom que faço cada vez que a memória me traz a tragédia da morte de George Floyd. Não consigo deixar de pensar naquela mão no bolso do polícia que o matou. O diabo está nos detalhes, e aquela mão a descansar por sobre a morte de um inocente, foi o centro de um pesadelo no outro dia. Um pesadelo do qual acordei subitamente e que, instantes depois, me dei conta que era um pesadelo real. O despeito pela vida humana num gesto menor (por relação ao homicídio, claro) e tão revelador desta cultura xenófoba, em que sempre o outro é para estar debaixo da bota.





2. A segunda é de um filme de Charles M. Seay de 1912, produzido pela companhia do Thomas Edison. "The Public and Private Care of Infants". É a história de uma mulher, mãe de gémeos, que não tendo trabalho acaba por dar um deles para ser tratado num asilo. As imagens têm um cunho documental e o filme uma ficção mascarada para alertar contra os perigos dos bebés serem deixados nestes locais, com cuidados muito reduzidos, levando à morte de muitos deles. A imagem que me vem perturbando é a de três desses bebés, subnutridos, de faces encovadas e de expressão triste. Não penso no lado documental, nem eventualmente moralista do filme. As faces encovadas daqueles bebés têm sido o prolongamento do bolso daquele homicida. Duas imagens que pesam sobre a dura realidade, e que têm a mesma função. A de fazer acordar sempre a meio da noite com a certeza do tanto que há para fazer. A de pausar entre a actividade diária e nos colocar perante o desafio de arrancarmos aqueles bolsos, de enchermos aquelas bochechas. No fundo, não colocar isto nos ombros da utopia, pois o que urge é deixar de dar às imagens matéria para o horror real.

segunda-feira, 1 de junho de 2020