sábado, 23 de maio de 2020

Adeus Piccoli




Há uma frase de Party (1966) do sr. Oliveira de que gosto muito, dita pela Irene Papas acerca da personagem mefistofélica de Michel Piccoli: “Este senhor tornou-se um sábio. Dantes era um histérico e toda a gente o ouvia. Agora tornou-se um sábio e ninguém faz caso do que ele diz. O mundo é dos histéricos”. Toda a gente sempre ouviu o Piccoli, a questão é que ele toda a vida falou mais línguas do que aquelas que conseguíamos realmente compreender: a do desejo, das palavras, do silêncio, do olhar terno e malandro. Quando começamos a percorrer a filmografia do actor francês rapidamente percebemos como a figura do sábio histérico se recorta como pura potencialidade da combinação de faculdades na sua arte da representação. Por exemplo, as colaborações com Oliveira mostravam essa capacidade de atenuar a sageza particular da fala, fazendo da palavra corpo. No inverso, num filme dito “menor” da sua carreira, como Themroc (Regresso às Cavernas, 1973), espécie de alegoria-performance acerca dos descontentamentos da civilização, Piccoli histeriza-se, fazendo do seu próprio corpo uma palavra. Mas uma palavra que já começa incompreensível. E que vai perdendo letras, e depois devém tosses, catarros, e finalmente alfabeto de grunhidos, urros e trejeitos.


O filme parece uma vinheta de Mordillo, um mundo que tem mais do Haneke inicial – penso no dinheiro pela sanita em Der siebente Kontinent (O Sétimo Continente, 1989) – do que na finura de Tati. Um homem que se farta das opressões da civilização e destrói o quarto onde habita para o transformar numa caverna. Nessa política do despojamento, temos o corpo despido, peludo, histérico, possante de Piccoli. Como um Gene Hackman das cavernas, que faz suspirar e gemer as mulheres (e os homens) com a sua fisicalidade (mas não eram esses os suspiros de Leonor Silveira ou Deneuve/ Ogier?) e que assa polícias para sua satisfação (também) carnal. Piccoli em Themroc é o selvagem doce, o magnético sedutor das cavernas. Essa junção, entre o doce e o agri, o papal e o hedonista, dão conta desta omnipresença de Piccoli em todo o cinema que se fez no pós-guerra. Um homem de palavras de carne, de corpo feito frase, cuja herança deixará sempre sentir a falta do animal no cavalheiro e vice-versa.

sexta-feira, 15 de maio de 2020

Da comparação moralizante entre coisas


Numa altura em que o nosso olhar se tornou, muitas vezes exclusivamente (e o problema aqui está precisamente no advérbio de modo), num instrumento social e politicamente responsável - e que, por extensão a critica ameaça ser apenas crítica cultural, não me parece que um filme como "The Wicker Man" de Robin Hardy fosse hoje possível. Um cristão queimado vivo num grande Golem de vime? Ou, no seu inverso, a condenação moral de uma comunidade de uma pequena ilha escocesa como bizarra e com costumes conotados como obscuros? Mulheres nuas dançando de forma mais ou menos gratuita? Tudo isto é hoje objecto de discussão. E, nesse sentido, a obra de Hardy parece ser um objecto datado. Mas o mais interessante é que o trajecto atribulado do próprio filme - com películas perdidas, rejeitadas, encurtadas, remontadas - o transforma num filme de terror com ligaduras. Momentos extensos de canções folk com vozes entre-cortadas, distantes, distorcidas e Hardy, de vez em quando, avança no espaço como se tivesse sido possuído pela câmara de António Reis, e eis que o terror se maquilha de uma certa poesia e liberdade de olhar para qualquer coisa de forma justa. Penso que é nesses gaps que "The Wicker Man" sobrevive hoje e escapa a esses confrontos do argumento, entre a ordem e a insurreição, entre os mores libertinos e os processos civilizacionais. Pôr os olhos nisto também pode ser uma ode à ironia: foi nas falhas do planeado que o cinema saiu à rua para se imortalizar e se libertar do inquietante e aprisionante enguiço da comparação moralizante entre coisas.

terça-feira, 12 de maio de 2020

Por Uma Nova Cinefilia



"Este texto  foi publicado originalmente na revista Film Quarterly em março de 2019. De partida, agradecemos a autorização do autor Girish Shambu e da Film Quarterly pela possibilidade de trazer aqui uma versão dele em português. A escolha deste recente manifesto sobre os ambientes cinéfilos atuais para publicação na Cinética se dá por alguns motivos. Interessou à nova composição da editoria pensar sobre as mutações que o campo da reflexão sobre cinema passa nos últimos anos e este texto sintetiza as linhas gerais de certos impasses de tal espaço discursivo.  O gesto da publicação desta tradução não é sinônimo de um consenso em relação ao que o texto aponta, mas sim uma aposta justamente no seu potencial de dissenso produtivo. Assim, ele oferece um conjunto de ideias que funcionou como eficiente disparador de questões na redação, que se materializou numa conversa coletiva que publicaremos em quatro partes logo em seguida.  O método da troca escrita feita pela redação discutindo o texto de Girish Shambu foi trabalharmos livre e anonimamente num documento compartilhado online entre 24 de março e 8 de abril de 2020.  Nesse documento coletivo, a diferença das vozes se afirmava não apenas nas posições defendidas e nas diversas referências convocadas, mas nas maneiras de dizer e no léxico particular de cada uma. Ao mesmo tempo em que o processo apostava numa variação das vozes, rejeitávamos uma vinculação estrita entre voz e personalidade, apostando em uma escrita coletiva que pudesse fazer vacilar um pouco a categoria da “autoria”, cara a ambas as cinefilias definidas pelo texto que vocês lerão aqui abaixo. Portanto, o texto de Girish Shambu é o primeiro de uma série de cinco textos, publicados durante esta semana e a próxima,  onde discutiremos tal estado de coisas."






segunda-feira, 11 de maio de 2020

a story we've just been told

«Multinational corporations are springing up all over: organizations that have no origin, no place, utopian, without future, even without any particular raison d´ être . One moment they're making candy, the next transatlantic liners, and within a week, transatlantic liners full of candy. Some of them are designed to make money; others, like the UN Forces, run at a loss. Some are essentially prophylactic; others, like the Church, militate in favor of Goodness, and still others -like a certain Hollywood - in favor of Wickedness. All are utopian, all believe that happiness is the orchestration of attitudes deemed good by the opinion polls. As far as these new utopias are concerned, a happy man is a man who says he's happy and is believed. Why is he believed? Because his happiness is explicable: its source is a shirt, or a perfume, or a fire, or a story we've just been told in pictures.» 
(Raúl Ruiz)

sexta-feira, 8 de maio de 2020



segunda-feira, 4 de maio de 2020

You can go home, it was just as accident



Uma das ideias que Truffaut quis rebater sobre "Tirez sur le pianiste" era o seu lado paródico. "Odeio paródias!", pois elas são "anti-artísticas". Apesar de também não adorar a moral burguesa dos gangster films, "Tirez" era sim - ainda as suas palavras - guiado por uma espécie de "pastiche respeituoso". A experimentação do filme certamente convoca o riso, a ironia ronda por todo o lado. E depois há aquela pequena decepção de Truffaut. É uma cena em que Aznavour apunhala o dono do bar e depois as personagens femininas ajudam a carregar o corpo juntamente com os músicos que, ainda munidos dos seus instrumentos musicais, ajudam no processo, numa espécie de marcha fúnebre barroca. O que fazia espécie ao realizador francês era o riso do público quando, ao carregar o corpo, uma das mulheres dizia aos vizinhos à janela: "Podem ir para casa, isto foi só um acidente." Truffaut queria homenagear essa frase cliché dos filmes americanos (You can go home, it was just as accident). Mas as pessoas tinham visto Aznavour a espetar a faca e riam, segundo interpretava Truffaut, pois pensavam que aquilo era uma ingenuidade do realizador. Ingenuidade ou não, essa cena permite pensar numa comparação e diferença entre a função social das ruas e do espaço urbano entre o noir americano e a nova vaga francesa. É que no primeiro, muitas vezes a sobrevivência era mesmo uma questão de "ir para casa" e de lá ficar; enquanto que no segundo, o "cá fora" é o espaço mais natural, da balada, da feerie romântica, dos "acidentes". Se pensarmos nisso, o riso do público francês é tudo menos ingénuo e bem revelador destas diferenças.

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Mest de Yermek Shinarbayev



A primeira imagem de Mest [Vingança, 1989] do cazaque Yermek Shinarbayev é o rosto de uma tartaruga que avança, lentamente, para a câmara. Ouvimos um respirar ou uma espécie de suspiro. Virá do animal? Nunca o saberemos. Instantes depois e vemos um soberano da Dinastia coreana Joseon que pergunta ao seu conselheiro porque se move ela (a tartaruga) sempre na mesma direcção. Vai na direcção do mar, de onde provém. O filme acabará no mar, também. E no entremeio há uma história de uma vingança que mais do que servir-se fria, servir-se-á apurada, destilada pelo destino, como se fosse sendo entregue a prestações, como o lento caminhar resiliente da tartaruga. Mas isto registei apenas agora, com o cuidado de um olhar mais pesado. A primeira vez que vi o filme (já não recordo exactamente quando e em que circunstâncias; teria sido na televisão ou já na internet?; no cinema não foi, isso sei) só fiquei com duas coisas. O brilho e um menino sentado.

O brilho é fácil de explicar. Desde as primeiras imagens que percebemos que esta é uma obra onde a luz do dia explode nos planos. As pessoas desaparecem na luz intensa do dia, o sol a despejar os seus raios do cimo de uma montanha, o trajecto por um corredor que a manhã faz atravessar pela claridade ou a fluorescência que vem como canhão de cada uma das janelas do exterior para o interior. Em concreto lembrava a foice iluminada – recordemos a queda do bloco soviético, o início da independência do Cazaquistão, não mais do que um par de anos depois da estreia do filme – que é o objecto do crime que dá origem à semente do ódio e da vingança. É uma cena de ouro, literalmente, um ouro que encandeia. Encandeia o julgamento, não sabemos porque o professor resolve matar uma das alunas, e encandeia o espaço, com blocos de luz no dourado das palhas do celeiro, que mais parecem objectos sem substância. Uma espécie de sonho terrível que vai-se a ver e acaba mesmo por ser a realidade. Se este é um filme que passa por várias épocas e espaços – o prólogo no século XVII, a Coreia e depois a China de 1915, a ilha Sacalina, nos anos 30 e 40, ilustrando a convulsão histórica que aquela zona teve entre domínio e influências russas, japonesas, chinesas e subjugação coreana – o mesmo acontece com esse brilho. À medida que a vingança parece aproximar-se da sua substância, os reflexos, as cores vão escurecendo, raiando de sangue e dourado, como se o filme fosse fazendo osmose com o crepúsculo e a tragédia sombria.

E depois havia esse menino sentado. Durante muito tempo ali estava, inerte. A mãe ia construir-lhe uma protecção de palha para o abrigar da chuva e do sol. O seu pai não tinha conseguido vingar a morte da sua meia-irmã e este engravida, sob sugestão da sua esposa já velha, uma mulher mais nova. O intuito parece simples e maquiavélico: ter um filho que se destine a ter como propósito de vida realizar os desejos vingativos do pai. Esses planos do menino sentado têm um poder existencial e político. Por um lado, pode alguém crescer à espera de crescer? Inerte, num estado de hibernação até poder cumprir o seu desígnio? Por outro lado, e isso vem no filme de Shinarbayev desde o prólogo, as pessoas e as tartarugas têm missões e enquanto não as cumprem habitam a elipse ou, quando muito, a espera. Ou as duas. Algo que parece trazer nas suas linhas e contra linhas um modelo de cooperação social.

Finalmente, este é também um filme sobre a poesia. Ou mais em concreto um filme acerca da tentativa da fuga da poesia, da sua vontade em desentranhar-se da injustiça e da crueldade. Como no prólogo vemos, com um poeta do reino a pedir para sair da corte, ao não conseguir lidar com a execução de um lutador que se deixou ganhar pelo príncipe como sinal da sua submissão e foi por isso castigado. Diz o poeta ao soberano: «a injustiça não é um terreno fértil para a poesia». Mas que poesia poderá haver na vingança? A passagem do tempo parece dizer-nos que com ele tudo passa, e que a poesia ganhará ao sangue derramado. Mas este belo filme da nova vaga cazaque, disseminado que é pelo tempo, pelos espaços, pelas épocas, converte a vingança em ironia do destino. Não apaga a vingança, apenas a subjuga a uma enorme roda da vida. Talvez por isso seja fácil de perceber uma ideia que pessoas que se debruçaram sobre este filme sublinham: a humildade que perpassa na nova vaga cazaque, a colectividade de todo o processo criativo, a pouca relevância de um centramento na figura do autor. Ou como diz o poeta: «não existe verdade a ser encontrada que se esconda por detrás da palavra “eu”»