Será que o famoso efeito Kuleshov poderá ser pessoal, intransmissível e vagar em direcções além do avanço linear? Via no outro dia um filme que me pôs a pensar nesta questão. É "Susuz Yaz" (1963) de Metin Erksan, alvo de um restauro pelo World Cinema Project. É a história de dois irmãos, um deles quer bloquear a água de uma fonte que nasce na sua propriedade, impedindo os vizinhos de a ela acederem e assim cultivarem as suas terras. O irmão mais novo obedece à ordem do mais velho contrariado. Depois seguir-se-á uma escalada da violência e a vingança, que a água levará depois de consumada. A cerca de meia hora de filme, num plano breve e inesperado (felizmente), um vizinho mata de forma real e não encenada um cão a tiro de caçadeira. Pode um plano estragar um filme? Aliás, um bom filme? Obviamente que a sensibilidade para com a crueldade animal é um tema muito presente na contemporaneidade. Talvez não o fosse tanto em 63, ou na sociedade turca de então. Por isso, pensava nessa dimensão cultural e adquirida de cada espectador, em cada tempo, ler a sequência de certos planos num filme e lhes dar um dado valor. Isso parece-me mais ou menos evidente. Mas... à medida que os minutos se sucederam após a morte do cão a sangue frio comecei a sentir uma certa repulsa, uma vontade de não ver mais. Como se, de repente, "Dry Summer" (é esse o título em inglês) deixasse de ser a história de dois irmãos para ser a preparação para a morte de um cão. E como se tudo o que se lhe seguisse fossem as consequências desse acto atroz. O filme de Metin Erksan passara a ser um efeito Kuleshov que andava para a frente e para trás ao mesmo tempo, a partir desse plano de efeito-Magasaki na minha retina. Entretanto, lutei contra a vontade de parar e o sentimento de repulsa foi-se atenuando. Terminei com a distância suficiente para poder ver no filme algum mérito cinemático. Por isso, outra questão ainda: será o efeito Kuleshov também algo que possamos medir a partir de uma dada duração dos seus efeitos?
terça-feira, 31 de março de 2020
segunda-feira, 23 de março de 2020
domingo, 8 de março de 2020
Os melhores filmes da década de 2010
- Cavalo Dinheiro de Pedro Costa
- Loong Boonmee raleuk chat de Apichatpong Weerasethakul
- A torinói ló de Béla Tarr
- Adieu au Langage de Jean-Luc Godard
- ‘Til Madness Do Us Apart de Wang Bing
- Visita ou Memórias e Confissões (1986-2015) de Manoel de Oliveira
- Història de la meva mort de Albert Serra
- Ji-geum-eun-mat-go-geu-ddae-neun-teul-li-da (Sítio Certo, História Errada) de Hong Sang-soo
- Leviathan (2012) de Véréna Paravel e Lucien Castaing-Taylor
- Post Tenebras Lux (2012) de Carlos Reygadas
Esta foi a década…
em que aprendemos a explodir cabeças com Carlos Reygadas; em que as GoPro passaram a ser barro para um novo capítulo do tale do não humano; em que conhecemos as variações sobre os pequenos prazeres de Sang-soo; em que Serra deu a ver o poder alquímico do cinema a partir de despojos históricos; em que partiu Oliveira mas em que cá ficou a olhar sobre o Douro; em que Wang Bing nos mostrou como Foucault e César Monteiro tinham razão; em que o velhinho Godard prognosticou a morte da linguagem e o início do ” que disparate, agora tenho lá tempo para isso”; em que Tarr fez beleza com Nietzsche e batatas; em que deixámos de ver o primitivismo como uma coisa que ande para trás com Weerasethakul; e em que Costa continuou a mostrar para que serve afinal a merda do cinema.
E esta foi a década… em que o cinema também não morreu. E viveu futuro.
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