segunda-feira, 29 de abril de 2019

"Touch Me Not"- Adina Pintilie

Para fazer jus ao tema do Urso de Ouro do ano passado gostava de vos escancarar um pedaço da minha intimidade. Tenho pena de não estar à altura das circunstâncias, mas a cavalo dado não se olha o dente. Vou revelar-vos que não gosto muito daquilo que na sociedade se pratica como sendo a arte do “ir beber um copo”. Contudo, no outro dia lá fui, um tanto a contragosto, e ouvi esta conversa entre dois amigos de longa data, o JF, ou João Naïf, e o PC, o Paulo Correcto.
A fala que, entre tremoços, botavam, era esta:

JF: Juro-te que já pensei em deixar de ser teu amigo. Nunca me respondes às chamadas.
PC: Desculpa, ando numa fase complicada. Muito trabalho.
JF: Ah é? E o que andas a fazer?
PC: Olha, a fazer pela vida. A transformar manifestos de causas socialmente defensáveis em obras de arte.
JF: Epá, isso só pelo nome deve ser complicado.
PC: Nem por isso. Anota aí. Primeiro, arranjas um tema que aches que a sociedade precise de encarar com outros olhos. Depois, arranjas uma historieta qualquer que possa servir de suporte a esse manifesto. Em terceiro lugar, muito importante, tens de controlar de início o tempo de confecção para estar pronto a tempo de ser servido para um grande prémio da área em que estás a cozinhar. Outra coisa importante, pegas numa batedeira e ligas o manifesto à historieta até fazer claras em castelo.
JF: E como é que fazes isso?
PC: Fácil. Primeiro, tens aquilo que se costuma chamar em algumas artes, de personagens. Ora, esvazias o miolo delas, e depois recheias o seu interior com palavras que sirvam a causa que estás a trabalhar. Por exemplo, pegas no Manel da padaria e fá-lo chegar à câmara e dizer: “não existe o esquisito no domínio da sexualidade”. Toda a gente, com um mínimo de testa, vai concordar com o que é dito e tens a tarefa concluída: transformaste com sucesso uma pessoa numa marioneta.
JF: Não sei se compreendo para que serve tudo isto…
PC: És mesmo muito querido, tu. Então não gostavas de ser conhecido (e premiado) como o grande artista que abriu, com a sua arte, a questão da sexualidade, dos refugiados, da emergência do fascismo, da mortandade dos guaxinins?
JF: Sim, isso sim. E além disso, arte que é arte tem de ter consciência social.
PC: Pois, claro que sim. Desde que não perca a consciência artística.
JF: O que é a consciência artística?
PC: Ora, isso não é fácil de explicar. Mas vou tentar através de um exemplo. Peguemos num filme como Touch Me Not (Não Me Toques, 2018), que venceu em Berlim no ano passado. Primeira longa-metragem da realizadora romena Adina Pintilie. O tema é super nobre, uma investigação pessoal acerca das questões da intimidade, da sexualidade, da identidade. Aquilo que nos define enquanto opções, problemas, desejos sexuais. Um desses temas que nos diz respeito a todos.
JF: Parece-me um grande exemplo dessa tal de consciência artística de que falas.
PC: Pois. Aí é que está o equívoco. Nem por isso. Repara. Qual é a intenção que transparece ao vermos o filme? Uma que é, como dizia, bastante nobre. Mostrar que não existe normal nem anormal na sexualidade, que devemos fugir da etiquetagem, do estigma do diferente, de uma educação sobre o conhecimento do nosso próprio corpo e desejos, etc. Foucault ficaria orgulhoso com tanta nobreza. Mas depois falta ao filme de Adina Pintilie consciência artística para conduzir estas questões.
JF: Mas porquê?
PC: Porque pura e simplesmente ela acha que a melhor forma de abrir a questão é recolher espécimes de uma “suposta e estigmatizada anormalidade” e trazê-los para diante de uma câmara. Para que possam ser vistos e ouvidos. Trazê-los para a visibilidade.
JF: E isso não é ter consciência artística? O Pedro Costa fez isso com os imigrantes cabo verdianos. E dele ninguém ousa falar mal.
PC: Pois, mas a diferença entre os dois gestos é abissal. O Costa criou um imaginário ao qual todas aquelas pessoas se reclamaram, e com toda a razão, direito a pertencerem. Em Touch Me Notesse imaginário não existe. Ou melhor, os seus planos cerrados no espaço do workshop, da arquitectura fechada do hospital, dos fuminhos demoníacos das catacumbas do prazer, do quarto da senhora com problemas de aproximação ao sexo, ou a falta de profundidade de campo constante, mostram bem a estética do clínico, da observação laboratorial. A dada altura, o senhor com amiotrofia muscular espinhal olha para a sua namorada e para a câmara e diz: parece que temos audiência. E sorri. E o filme é isso, uma intimidade devassada, uma câmara que está à espera de confissões, de habilidades, de frases como “não é fácil ser diferente”. Isto na esperança de que “trazer para a visibilidade” seja um acto de justiça artística. Mas não o é.
JF: E porquê?
PC: Olha, porque trazer aquelas pessoas para a visibilidade sem lhes conferir um imaginário, sem diluir a ideia de estigma e de diferença, integrando-as no quotidiano, desprotege-as. Torna-as o centro do prazer voyeurista. Acredito que Pintilie achasse que estivesse a trabalhar nas peugadas de gente como Costa, como Foucault, como Orwell (“four legs good, two legs bad”), mas vemos o filme e lembramo-nos antes de obras como Freaks (A Parada de Monstros, 1932) de Tod Browning, ou como Zoo (1994) de Frederick Wiseman.
JF: Estás a ser mau.
PC: Não. Estou a contar-te o que senti. E a tentar provar-te que falta de consciência artística é ter uma intenção, por muito nobre que seja, e não conseguir utilizar os materiais da sua arte (no caso do cinema, sabemos bem quais são) de forma a servir essa intenção. Touch Me Not é um bom exemplo desta discrepância: aquelas imagens e aqueles sons traem a intenção política da obra. E mais importante que tudo, traem a confiança daqueles que nela se expuseram, se retrataram.
JF: Mas achas que podemos associar este filme ao de Browning?
PC: Não e sim. Não, porque como evidente estamos aqui a falar de um problema muito sério. O controlo do poder sobre as questões do sexo, que ditariam a norma, as patologias, os supostos desvios, etc. E, nesse sentido, a consciência dos padrões e trajectórias do poder são essenciais para as questionar e refazer. Mas, não é isso que diz e faz a câmara de Pintilie. Esta afunila essa separação, convoca a ideia da observação circense, confunde uma câmara com um holofote. Ou seja, não internaliza a diferença, integrando-a numa paisagem mais vasta. Em vez disso, exponencia-a ao ponto da atracção de feira.
JF: Estou a ver… E é nestas coisas que andas metido. Nestas maroscas.
PC: Claro. Isto é uma mina meu caro. É preciso ter olho. Vou lá dentro buscar mais tremoços.

quinta-feira, 25 de abril de 2019

Nesta Páscoa, desculpa-me

Ela está internada e eu de férias. Ou será o inverso? Eu, interno, e ela passeando nos corredores da hospedaria, pedindo lume, pedindo afecto. O Senhor ressuscita e as pessoas tornam-se mais pesadas. Os vapores do álcool, os pudins, as idas a Santiago, as cruzes de flores, a abstinência. O cão a ver se lhe cai alguma coisa, num mar de pernas bamboleantes, unidas. A menina borrifa a sopa, o galo cocoricoca, é dia do Senhor e dos senhores não passarem fome. Rir não é uma missão, é um dom. Mantenho-me à tona da escrita, invento uma loucura qualquer, colecciono post-its de moleirinha velha. Penso nas nuvens escuras, no padre embriagado, na luxúria de negro e na circunspecção de berloques e brilhantinas. Um senhor morreu a rebentar um foguete, um borrego não sobreviveu à luz da eternidade, nas redes sociais mandam-se larachas e ovos virtuais. A bébe dança, os avós brilham, os ovos engolem-se. É Páscoa. Depois regressa-se aos internamentos do quotidiano, da cidade. As nuvens despejam o seu líquido em cheio nas estradas, homens arranjam as tetas e as letras de um anúncio de outdoor, os pneus mantêm a pressão. Um cafezinho, um chocolatinho, um demoniozinho, ou a duração da viagem. Chego, o cão caga e penso no caracol que faz crack, subitamente, numa viela escura. Pus-lhe o pé em cima, maldigo a via pública, a fragilidade da vida. Vou para a cama a rezar para que ressuscite. E que ela melhore. E que na próxima Páscoa haja bagaço e rios de felicidade. Não te vi. Desculpa-me, caracol.

terça-feira, 23 de abril de 2019

Raccords do Algoritmo #13: Citizen Arkadin ou o diabo à solta

No ano de estreia de Citizen Kane (O Mundo a Seus Pés, 1941), a Universal lançou a adaptação cinematográfica de uma peça da Broadway, que tinha como front men a dupla de comediantes Ole Olson e Chic Johnson. Hellzapoppin’ (Parada de Malucos, 1941) começa no inferno: diabinhos cantantes e sorridentes, mulheres na grelha, tridentes a serem afiados, fumos a surgir de todos os recantos. A comédia e o riso sob o signo do caos e do inferno. Olson e Johnson chegam de táxi às quenturas da terra e rapidamente nos apercebemos que estamos num estúdio. A dupla fala com o projeccionista do filme, a quarta parede cai pela primeira vez, e pedem-lhe para para tentar rebobinar toda aquela parvoíce. Sucedem-se os gags a um ritmo, lá está, infernal, e entra em cena produtor, argumentista, pois há um filme para fazer. O produtor diz que é preciso uma história – ela há-de surgir, um mulher entre dois amigos que a amam – mas tudo não passa de um pretexto para uma parada de malucos (como refere o título português), cabendo ao realizador H.C. Potter tentar unir as pontas a este pedaço de loucura.



Esta loucura tem uma genealogia oficial: desde logo a cultura de vaudeville, depois o slapstick de gente como Chaplin, Keaton, W.C. Fields, Laurel & Hardy, Fatty Arbunkle, etc. Nat Perrin, que escreveu o argumento de Hellzapoppin’ colaborou nos diálogos de Duck Soup (Os Grandes Aldrabões, 1933) para os irmãos Marx, cuja loucura cunhava grande parte do segmento deste tipo de comédia. Depois a linhagem continua, nas décadas seguintes, com Mel Brooks, Jerry Lewis, e, depois, os filmes paródia, como Airplane! (O Aeroplano, 1980), Hot Shots! (Ases pelos Ares, 1991) ou a saga Naked Gun. Falava em genealogia oficial, pois parece-me que há outro raccord mais ou menos improvável que poderia ser seguido. Para isso regresso a Citizen Kane. São várias as referências a outros filmes em Hellzapoppin’. Desde logo, The Cat and the Canary (O Gato e o Canário, 1939), Frankenstein (1931) ou as coreografias de Busby Burkeley. Numa cena, Olson e Johnson atravessam vários cenários – como prisioneiros, como fidalgos, como esquimós –, e um dos adereços era precisamente o famoso trenó, com a palavra Rosebud.

Como disse, os filmes eram contemporâneos um do outro e fazia todo o sentido que o filme tentasse parodiar o expoente máximo do cinema dito sério da altura. Mas existe, creio, um vínculo bem mais interessante do que o da paródia para ligar este Hellzapoppin’ ao cinema de Orson Welles. Uma das coisas que logo no início do filme de H.C. Potter podemos observar é uma espécie de auto-confissão acerca da natureza heterogénea da própria obra. Será isto um filme? Talvez tudo não passe de uma questão de opinião. Se olharmos para as diferentes versões e atribulações de um filme como Mr. Arkadin (Relatório Confidencial, 1955) – uma espécie de tecitura languiana sobre os mecanismos do poder europeu, ao mesmo tempo que uma confissão atribulada das múltiplas identidades do próprio Welles, através do alter ego Arkadin – podemos compreender como a loucura do slapstick ao ponto do fragmento, como vemos em Hellzapoppin’, que destitui a unidade narrativa do filme clássico americano, funcionaria como prenúncio do que viria a ser parte dos dilemas identitários de Welles, que, por sua vez, enformam muito do que seria a correria e o ennui do cinema moderno.

Mas já lá iremos. Antes ainda referir que uma das personagens mais hilariantes de Hellzapoppin’, Pepi – o falso aristocrata de leste que procura uma mulher cheia de papel e que passa o filme a fugir da não menos hilariante e histriónica Martha Raye – representado por Mischa Auer é também outro ponto de ligação a Arkadin. Aqui ele é uma das personagens bizarras que pulula nesta Europa barroca do pós-guerra e que ajuda a reconstituir a identidade de Arkadin.


Não consigo precisar com certeza – creio que terá sido numa conversa de vários críticos dos Cahiers acerca do estado do seu cinema francês – que se adiantava uma ideia interessante. A de que, por motivos de natureza histórica, política e económica, o cinema americano havia nascido sob a égide de uma ideia de clareza e superficialidade. Pelo contrário, no cinema francês, e creio que por uma questão de argumento podemos estender ao europeu, haveria esta ambição de retratar uma certa complexidade do interior e também uma divergência de opiniões que seriam em tudo contrárias a esta ideia de clareza americana. Não será então de estranhar que, como referi, um dos “problemas” iniciais de Hellzapoppin’, problema entretanto vertido em gag, seria essa falta de narrativa clara e “superficial”, no qual os gags pudessem encaixar.

E podemos tomar Mr. Arkadin como o outro extremo dessa ideia, corporizando um modo de fazer fragmentário e complexo do cinema europeu da época. O filme tem produção espanhola, suíça, francesa e, sendo de um cineasta americano, ele ilustra bem aquilo que foi a arte de Welles no seu período de exílio europeu. Com períodos de rodagem em Madrid, em França, na Alemanha Ocidental, e montagem e pós sincronização de som em Paris e Roma, foi depois terminado pela mão do próprio produtor Louis Dolivet, estreado em Londres em 1955, sendo que, nessa mesma altura, começou a circular também uma versão espanhola. Em 1958, os Cahiers consideravam Mr. Arkadin como o melhor Welles e integrava uma lista dos 12 melhores filmes de todos os tempos.



Nesta odisseia de Arkadin, processual e kafkiana, a estrutura heterogénea do filme, como marca da tal complexidade do cinema europeu, está integrada na própria trama de uma obra de género – a série B – com traços de cinema experimental. Trama que gira em torno de uma personagem misteriosa – um milionário do leste europeu – o próprio Welles corporizando Arkadin, que paga a um oportunista, entretanto pretendente da sua filha, para descobrir o seu passado antes deste se ter tornado rico, passado esse que havia esquecido devido a amnésia. Trata-se de um inquérito que tem sido visto como uma colagem das peças do que seriam as inúmeras variantes da identidade europeia estilhaçada pelas guerras. Ou, como refere Jim Hoberman, num texto sobre o filme, tratando-se de uma obra sem um original reconhecido (há várias versões, nenhuma a definitiva), “Arkadin tornou-se o seu próprio Arkadin”.

E neste aspecto há uma semelhança e uma diferença fundamentais com Rosebud parodiado com Olson e Johnson. A semelhança tem a ver com o facto de ambos os filmes procurarem na luz ao fundo do túnel, uma verdade qualquer, uma identidade estável, explicadora, e, nos dois filmes, velada. Mas em Citizen Kane terminamos com essa cereja no topo do bolo, a tal simplicidade inicial que é o vértice do que viria a ser o cinema do Welles, que, como parece, faz a transição entre os dois extremos do argumento dos críticos dos Cahiers: da simplicidade clássica ao cinema europeu (neste caso, moderno; e por isso o argumento peca por demasiado sumário). Enquanto isso, Mr. Arkadin faz essa mesma busca de uma síntese de identidade mas, ao chocar de frente com ela, prefere o oblivion, não consegue computar. Tenta obliterar uma ideia de identidade única e explicadora e, não sendo capaz, termina-se a si próprio enquanto herói no filme. É também Welles que, a dada altura, perde o controlo do próprio filme, lembre-mo-nos.



Ainda sobre a questão da identidade convinha repensar no caos de Hellzapoppin’. Uma das figuras mais massacradas no filme é o próprio argumentista do filme. Como vimos é preciso engendrar uma pretexto narrativo. Mas mais: tratava-se de passar do teatro ao cinema a peça original. Assim, a colecção de gags procura explorar ininterruptamente uma “identidade própria” do cinema: fotografias devêm ecrãs de cinema, sobreposições cerram partes do corpo, as personagens vão parar a outros géneros e filmes como o western, o filme é interrompido por inserts de anúncios no ecrã a interpelar o espectador, a película sai do sítio e são os personagens que têm de a arranjar, os efeitos sonoros são surreais e à la carte, brinca-se com a censura, com as salas de projecção, com a arquitectura dos estúdios e a organização da equipa de cinema, os personagens vêem o próprio filme em abismo, canta-se, cai-se, dança-se, declama-se. Numa palavra, é o inferno. Tudo surge em vórtice, experimental, destituído da sua convencionalidade: sejam planos, verosimilhança, raccords. E há uma senhora que grita OSCAR! nas cenas iniciais, surgindo de todos os lados [na vida real o filme foi mesmo nomeado para um Óscar, por uma música que não surge na obra (!)].

Entretanto, o que é interessante é que no final do filme, a dupla de comediantes e mestres de cerimónia decide sabotar o espectáculo musical de uma das personagens, encenador, para que o amor triunfe. E, depois, o milagre dá-se, ou nem tanto, estamos aqui a falar de identidade, ainda. Quanto mais louca, pervertida, sabotada é a convencionalidade do teatro, maior sucesso acaba por ter, aos olhos do produtor que ia avaliar o show. Ou, por outras palavras, é a loucura desta parada de malucos que ganha uma certa aceitação e identidade próprias no seio da própria codificação de géneros do cinema de então.

Para além da já referida genealogia, que convocará os nomes da comédia americana que se seguirão, importa pensar este caos como uma preparação para a fragmentação do cinema experimental e sobretudo, pela forma como esta, nas mãos de uma sensibilidade europeia, servirá de material de trabalho para a construção de todo o tipo de ambientes que procuram uma certa interioridade e se afastam da dita superfície (aparentemente) clean do clássico americano. Em Mr. Arkadin basta ver os enquadramentos bizarros, as sombras impossíveis, os olhares misteriosos, o ritmo acelerado como uma “parada de malucos” solene e bizarra, as sequências de festas, e bailes com as máscaras de Goya, as grandes angulares, a Europa destituída de vida natural (como se depois de Rossellini só sobrassem, de facto, ruínas e despojos de uma paranóia), a dimensão de pesadelo e perseguição constantes. Ou ainda a dicção marcada de Robert Arden, actor de rádio, a meio caminho entre gente como Humphrey Bogart, Sterling Hayden, Dana Andrews ou Richard Widmark e Jean-Paul Belmondo de À bout de souffle (O Acossado, 1960) em diante.

Desta forma, a experimentação infernal de um filme como Hellzapoppin’ acaba por funcionar como uma preparação para o cinema moderno e a forma de encontrar expedientes visuais para narrar, ilustrar, construir, problemas da ordem do interior, do dilema mental e psíquico. Estamos assim perante um trajecto lento, agreste e cheio de altos e baixos: o truque da vaudeville que passa a cinematográfico e a matéria progressiva de exposição dos dilemas da invisibilidade do homem e da visibilidade do próprio cinema. Em Welles, a figura do mágico é sempre da ordem do manipulador mental, o metteur-en-scène que ilude, e cada vez menos, como acontecia com H.C. Potter, aquele que faz passar, anonimamente, o truque. De um a outro, os truques interiorizam-se, sem que, no entanto, percam o seu poder.

quarta-feira, 17 de abril de 2019

O funeral do gato

Uma das coisas mais bonitas do cinema, algo que me comove seriamente, é que, em certas ocasiões, a bússola com que navegamos a cinefilia avaria-se e perdemo-nos. E é então que, muitas vezes, nos encontramos. Vai-se a linha que separa os realizadores A dos realizadores B, os que são tecnicistas dos narrativos, os festivaleiros dos filmes de comes e bebes, os manipuladores dos de vanguarda, os saudosistas dos oportunistas. Todos estes pontos cardeais, que ajudam a fazer do establishment um establishment e do espectador, do crítico, do realizador, do produtor, agentes identificáveis na navegação, escorregam em direcção ao nada. Nesse momento ficamos ali, sozinhos, cheios de fome e sede, numa ilha a sós com um filme e as suas imagens como única fonte de sustento. Já há muito que se perdeu a tarefa do crítico, mesmo a do espectador. Somos náufragos: e o nosso olho come o lixo, a luxúria, a soberba, a simplicidade dos que caminham sem direcção definida.



Intróito-exagero para vos recomendar que vejam a moderada bizarria deste Rubin and Ed (Rubin & Ed, 1991) sem essa sobrancelha da seriedade, ou mesmo, sem empunhar o florete maneirinho do camp e do cult movie. Trent Harris não creio que tivesse alguma vez tido a ambição de ser um realizador. Era cameramen de um noticiário em Beaver, no estado de Utah, quando, ao fazer testes de câmara no parque de estacionamento da estação de televisão em que trabalhava, encontrou um jovem a tirar fotografias que ficou muito entusiasmado por estar a ser filmado. Harris descobriu que este não só fazia imitações de John Wayne ou de Olivia Newton John como estava ali para tentar carreira na televisão. Embora não tenha tido sucesso, tornou-se o centro da primeira curta-metragem de Harris, The Beaver Kid (1979) que viria a ter duas sequelas, The Beaver Kid 2 (1981) e The Orkly Kid (1985). Foi nestas que, ao fazer o reenactment e a expansão dramática do encontro inicial com o rapaz das imitações, nos deu a conhecer um muito jovem Sean Penn (!), além do actor Crispin Glover.

Esta comédia é um inteligente detour pelos caminhos pré-percorridos de uma ideia de sucesso. E não o é menos pelos caminhos pré-percorridos por uma ideia de sucesso no cinema. Se falo nestes inícios e nestes três filmes (que em 2000 se uniriam em The Beaver Trilogy) é porque foi na realização de The Orkly Kid que Crispin Glover criou a sua personagem Rubin. Cabelo comprido louro esticado, calças à boca de sino, botas de tacão alto, óculos muito grossos e complemente sem amigos. Ah, e com um gato morto no congelador. A transformação de Glover foi tão icónica que criou um motivo para Trent escrever Rubin and Ed, aquela que viria a ser a primeira da sua pouco profícua carreira como realizador. A Rubin, Harris imaginou um improvável companheiro de aventura. Ed, um cinquentão com problemas de anger managment, divorciado e a trabalhar na angariação de clientes para workshops sobre empreendedorismo e sucesso na vida.

A primeira coisa que se ouve em Rubin and Ed, ainda nem há imagem, nem os gestos coreografados do profeta vendilhão é: “Are you willing to open the door to your dreams?” Pausa. Imagem e o patrão do Ed levanta aos braços no púlpito de onde fala e exclama: “SUCCESS!” E, como na missa, as pessoas que estão no workshop respondem: “Success!” E o orador volta à carga: “And why do we want that success?”. Pausa para os fiéis pensarem. E a resposta faz-se ouvir pelo orador, instantes depois, em novo grito: “MONEY!” E todos, claro, gritam “Money!”. “And how do we get that money?”, pergunta. E Ed responde sozinho: “Work!”. O seu patrão ri sacasticamente e diz: “No, no no… not work. REAL ESTATE!”

Este pequeno docinho de menos de dois minutos, que caricatura bem um certo carreirismo da época de Reagan, tem, contudo, uma função bem mais transversal em toda esta comédia em formato road-buddy-movie. Quando Ed, que quer a todo o custo provar à ex-mulher que não é um falhado, que consegue ser daqueles que tem sucesso e dinheiro, encontra Rubin, este é o único que na rua não o manda passear, o único que fica a ouvir as suas patranhas sobre um inquérito de angariação de potenciais vendedores de imóveis ao estilo Remax. A primeira pergunta é marcante. Ed questiona: “Are you 100% satisfied with your earning potential?” E a resposta de Rubin, estilo bússola avariada é: “YUP!” A segunda pergunta alarga a questão: “Are you 100% satisfied with your life and/or outside relationships?” E a resposta repete-se ao estilo bartlebiano: “YUP!”



Este primeiro encontro deixa claro que Trent Harris divertir-se-á a fazer chocar de frente duas posturas que teriam, cada uma à sua maneira, permitido o clima político dos anos 1980 nos Estados Unidos. De um lado, o pobre empreendedor, aspirante a rico, que todos os dias reza à deusa do capital; do outro, o jovem conformado, aparentemente lobotomizado, que não possui qualquer competência ao nível social, nem tem necessidades ou exigências económicas e políticas. E o que se torna mais interessante é que, quando Rubin saca o carro de Ed para poderem ir pelo deserto à procura do melhor sítio para enterrar o seu gato, ele não está tanto a fugir à masterclass à qual tinha prometido comparecer, mas sim a dar-lhe um lição privada de uma landscape mental alternativa ao seu guru do “MONEY!” Também para isso contribui todo o um lado místico, a lembrar as odisseias de Jodorowsky mas sem a auto-consciência da alternativa estética. Ou mais ou menos. Pois durante o caminho surge-nos o graffiti : “Andy Warhol Sucks a Big One”.

Desta forma quase que podemos dizer que no seu exterior Rubin and Ed é uma comédia praticamente nonsense, uma busca interminável a fazer lembrar After Hours (Nova Iorque Fora de Horas, 1985), ainda que sem a sofisticação deste, ou alguns filmes de John Waters. Um filme com piadas sem grande sentido – um homem que passa na rua e ladra às pessoas – e outras de fazer o estômago dar uma volta sobre si mesmo – a dada altura, no deserto, Rubin bebe o suor das palminhas dos seus próprios sapatos ou a água da geleira onde trazia o cadáver congelado do seu gato. Mas, dizia, para além desta capa, esta comédia é também um inteligente detour pelos caminhos pré-percorridos de uma ideia de sucesso. E não o é menos pelos caminhos pré-percorridos de uma ideia de sucesso no cinema.

Talvez valha ainda, para terminar, regressar à figura icónica de Rubin, criada por Crispin Glover. Quando olhamos para a sua caracterização, e sobretudo pela sua recusa em ter um conjunto de atributos de sucesso, pensamos neste trajecto que iria das figuras cómicas de Chaplin ou Keaton até personagens como as de Napoleon Dynamite, Beavis and Butthead ou este Rubin. Pelo caminho parece que, algures, a humanidade ingénua dos primeiros, que fazia destruir pelos seus eixos as grandes roldanas do mundo citadino e modernista, tenha dado lugar a uma seriedade ingénua. Um modus vivendi que não aspira a integrar-se na “suposta normalidade”, ou que parece ter perdido fôlego para o fazer. Uma intensificação do deadpan na qual a comédia gira o seu espectro e se torna apenas desconforto, dignidade da alternativa, resistência passiva. Se isso assim não o é, o que dizer deste pontapé a David Letterman (que muito deu que falar) por Crispin Glover em modo Rubin, no seu programa?

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Quando

Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim, o céu e o mar,
E como hoje igualmente hão-de bailar
As quatro estações à minha porta.
Outros em Abril passarão no pomar
Em que eu tantas vezes passei,
Haverá longos poentes sobre o mar,
Outros amarão as coisas que eu amei.
Será o mesmo brilho, a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta,
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu não estivesse morta.

Sophia de Mello Breyner

terça-feira, 2 de abril de 2019

The Mule - Clint Eastwood



Com quase 9 décadas de existência, Clint Eastwood faz hoje cinema a partir de uma posição de que poucos se podem orgulhar. A idade é um posto, costuma dizer-se, mas quem acharia que o durão de outros tempos viria fazer o elogio de uma flor? Podia começar aqui a grande e simples complexidade de The Mule. Num dos planos finais, Clint derrotado pelo seu próprio sentido de justiça, cuida das flores que sempre foram suas. Estas, que não duram mais do que um par de dias, lado a lado, com uma estrela-rocha com 90 anos. O efémero em sapiente raccord com o perene. O que passa e o que permanece? Ou talvez diferentes declinações do que é transiente, numa dupla face, companheiros de todos os tempos. Isso, aliás, é muito do que nos toca. Uma década depois de Gran Torino tínhamos na memória o seu hard outside-soft inside Walt Kowalski e não estávamos preparados para isto. Para as primeiras cenas em que Clint volta ao ecrã, alguma dificuldade já em falar (como um amigo que envelheceu, sem que nos apercebêssemos, num interregno de anos sem lhe pôr a vista em cima) e sobretudo revelando, expondo a sua própria fragilidade. Todos temos algo de rocha e algo de flor. À medida que a narrativa avança percebemos que não estamos apenas perante o velho seguro dos seus erros, irónico sobre a modernidade, mas de alguém que, por hipótese, como lhe dizem a dada altura, poderá ter gozado "demais" a vida e ter-se colocado numa posição de vulnerabilidade. Alguém que está disposto à redenção, que deixa cair a capa do anti-herói, que queria arranjar dinheiro para comprar a única coisa que o dinheiro não pode comprar: tempo. 

Mas The Mule parece daquelas obras inesgotáveis. Veja-se aquele último plano dos jardins no interior da prisão. Trademark da sua mise-en-scène tardia: um sentimento de serenidade constante, uma gosto doce mesmo na grande amargura. Lembro-me daquele verso de uma canção de Ney Matogrosso que diz: "Sonhar só não tá com nada. É uma festa na prisão". Também este plano é o grande revelador desta hipótese bem arriscada que nos coloca Clint Eastwood. A liberdade não é um affair de paredes e betão, nem a família é só uma questão de sangue. Já perto da morte, a sua ex-mulher, Mary (Dianne Wiest) diz-lhe que o seu trabalho sempre teve a sorte de ter a versão maravilhosa do seu marido, Earl, enquanto a família ficou com o lado mau. Mas não é isso mesmo que acontece durante o filme? Com os conselhos e amizade dados aos supostos gangster com quem começa a trabalhar. Ou, por outras palavras, não é esse o papel do grande ícone do cinema: fazer do mundo, família?

Mas dizia, a tese é arriscada: Earl termina culpado aos olhos da justiça, mas inocente perante a vida. The Mule também é, portanto, uma forma de dizer que há uma forma honrada, bela, consciente de fazer o que é "errado". Mesmo que isso seja um crime. Talvez por isso tenhamos esses momentos de serenidade que fazem do golpe um road movie rural, cantado, com pausas para sandes de porco e ajuda ao próximo para mudar o pneu de um automóvel. Earl faz assim prevalece o "correcto" mesmo quando se passeia pelo "errado", o toque de midas que converte uma organização de criminosos numa família de amigos, uma prisão num jardim. Mas não é isso que acontece com as grandes estrelas? Brilham livres em cativeiro e esmorecem a claridade naquilo que nós, mortais, chamamos liberdade.