quarta-feira, 27 de março de 2019

Raccords do Algoritmo #12: Covil de Fêmeas

É mais ou menos consensual que, para Clint Eastwood, o ano de 1971 ficou marcado pela sua estreia na realização, Play Misty for Me (Destinos nas Trevas, 1971) e que, como actor, foi quando encarnou pela primeira vez o senhor muito zangado e de longas pistoletas, Dirty Harry. Contudo, nesse mesmo ano, Clint fez dois filmes com Don Siegel: o primeiro, o filme homónimo da referida personagem, Dirty Harry (A Fúria da Razão, 1971) e o segundo, The Beguiled (Ritual de Guerra, 1971). Em certa medida, estes são o verso e o reverso um do outro. No primeiro, ele é o intrépido e dominante anti-herói que irá actuar à margem do sistema para pôr os maus na linha; no segundo, é um soldado ferido e desprotegido que vai parar a um seminário de mulherzinhas nos tempos da Guerra de Secessão. Se no primeiro, dizia a um dos vilões, no final, para se perguntar, “Do I feel lucky?' Well, do ya, punk?”; no segundo, parece perguntar-se, mal fica melhor dos seus ferimentos na perna e vê as mulheres que o rodeiam: “Am I going to get lucky?”


Esta ideia de verso e reverso tem aqui muito que se lhe diga. Desde logo, o público queria o verso — isto é, o seguimento da persona do durão, do lone wolf misterioso, dos filmes de acção e westerns que Clint já havia feito — e Siegel deu-lhes o reverso, adaptando um romance gótico sulista de Thomas P. Cullinan, acerca de um homem que acabava inválido, manipulado, impotente perante um conjunto de mulheres, armadas do seu desejo fortificado e aniquilador. Por isso, conta-se, The Beguiled foi um grande fracasso de bilheteira, a Universal tentando vender o filme como sendo de acção e o público fazendo tilt, como muitas vezes acontece quando a areia é muita e o camião apertadinho. Mas o verso e o reverso dançam agarradinhos no decorrer do próprio filme. Existem os paralelismos mais evidentes: a personagem de Clint — John McBurney, soldado do norte, corvo ferido e de pata amarrada (tal como um dos corvos que vemos na escola, no início) preso num “oásis feminino” e sulista — é visto como o reverso da personagem da criada negra, pois segundo Siegel ambos são prisioneiros de um sistema: o primeiro de um sistema de guerra que obriga a lutar, a segunda, prisioneira de um sistema social que obriga a servir.

Contudo, a ideia mais interessante ainda nem é essa. É a de que na sombra de cada herói macho, de cada soldado que estripa seus iguais no palco de guerra, há um senhor facilmente enganado, um homem traído também pela ilusão que tem do seu grande poder. E é nesse seguimento que Don Siegel revela a sua extrema inteligência fazendo de The Beguiled um filme que prolonga a guerra, na sombra e no refúgio, da guerra oficial. Ou seja, mostrando que a violência que existia em latência entre quatro paredes, nos sacrossantos lares, nos casarões sinistros e abandonados, habitados pela solidão e pela esperança da chegada dos heróis, dos “masters of the house” eram no fundo palcos dessoutra guerra, de energias descompensadas, de educações puritanas, de ilusões que ajudavam a deturpar um sentido de ordem e felicidade. Estamos assim perante um filme que tem os traços imediatos de um drama de guerra, quiçá até de um filme romântico sobre o desejo feminino, mas que se mostra afinal, que degenera, numa obra de terror gótico, dos que haviam estado em voga nos anos 40 e 50 sobre mulheres encerradas em “casas assombradas”, esperando maridos e filhos vindos da guerra.

É, portanto, um filme de muitos contrapicados, do ponto de vista do soldado prostrado sobre o rosto das mulheres e que o olham com curiosidade sexual, mas também mórbida. Um filme com uma câmara deambulante pelos espaços da escola, sobretudo os interiores, de sobreposições como manifestos visuais de sonhos/pesadelos, de olhares furtivos através de janelas, persianas, terraços. Geraldine Page tem uma interpretação maravilhosa, em jeito de matrona, um tanto tresloucada, iluminada, a espaços, como Coppola recortava na escuridão o Drácula de Gary Oldman. Uma obra sobre claustrofobia, que traz à mente filmes como Misery (Misery - O Capítulo Final, 1990) de Rob Reiner, Boxing Helena (Paixão Selvagem, 1993) de Jennifer Lynch, ou até Black Narcissus (Quando os Sinos Dobram, 1947) de Michael Powell e Emeric Pressburger. A menina mais nova, 12 anos, Amy, a primeira a encontrar o soldado ferido, mas também a beijá-lo, é uma personagem central. Não apenas porque abre e fecha a narrativa, mas sobretudo porque a interpretação de Pamelyn Ferdin mostra de forma ímpar a emoção da ilusão encerrada e traída no espaço fechado, face ao sexo oposto. "I thought you love me...", diz a pequena à beira das lágrimas.


Avançamos no tempo, mas voltamos a The Beguiled. Desta vez o título em português retira a menção à guerra e traz o amor para a ribalta. O Estranho Que Nós Amamos, assim se traduz a nova adaptação do mesmo romance, realizado em 2017, por Sofia Coppola. Geraldine Page é substituída por Nicole Kidman e Clint Eastwood por Colin Farrell. O elenco de estrelas conta ainda com Kirsten Dunst, a professora que o soldado fará crer que é objecto do seu amor verdadeiro, e por Elle Fanning, a lolita adolescente que aquele desejará realmente.

Depois de ver esta nova adaptação pergunto-me sobre a razão que terá levado Coppola a revisitar uma obra que parecia ter sido realizada por Siegel de forma tão contundente, tão assertiva naquilo que queria dizer. Desde os primeiros planos na floresta, com uma luz lânguida e escura, plena de névoa (a fotografia é de Philippe Le Sourd), fica-se com a sensação que esta não é tanto uma obra sobre essa ideia de guerra, e mesmo que o terror, a existir, parece surgir sob uma forma bem mais subtil e silenciosa. Onde Siegel marcava bem os momentos de viragem da narrativa e nos dava pleno conhecimento das suas personagens através das conversas do soldado com as diferentes mulheres que ia procurando manipular, Coppola investe sobretudo nos silêncios, no não dito, na câmara presente nos detalhes que revelam de outra maneira. Por exemplo, a cena que já vinha do filme de 71, em que lavam o soldado ferido, aqui tem uma atenção especial. Prolonga-se no tempo, tem uma cumplicidade especial entre Kidman e o seu objecto de desejo. Como se aqui Coppola nos quisesse mostrar como o desejo não é um encontro de palavras ditas, mas de uma observação dos rituais. Por exemplo, os momentos dos jantares à luz das velas, toda a preparação para esses eventos, mas também uma certa sinfonia de olhares silenciosos, de frases que ficam por dizer.

Parece assim uma obra mais realista sobre a natureza do desejo. Mas então, qual é afinal o problema que faz com este filme, que deu o prémio de melhor realizadora em Cannes a Coppola, me pareça tímido, por relação com o de Siegel? Talvez pelo facto desse silêncio não ser levado a um extremo, como proposta fundamentalmente diferente. Em vez disso, The Beguiled (O Estranho Que Nós Amamos) é um filme conciliador. Por um lado, ele parte de uma espécie de trademark da cineasta que passa muito pela construção visual e atmosférica de momentos de cumplicidade no interior de um microcosmos feminino. O exemplo mais evidente desta estratégia podemos encontrar em The Virgin Suicides (As Virgens Suicidas, 1999), mas também, e aqui com contornos mais histriónicos, em Marie Antoinette (2006). Mas, por outro lado, o seu The Beguiled não abdica dos momentos narrativos mais marcantes (as seduções de cada uma das mulheres, a noite fatídica da queda do soldado e amputação, o envenenamento) que o filme anterior trazia para o seu centro. O resultado é que, quando surgem as palavras para dar corpo a esses eventos, elas têm um cunho artificial, teatralizado, apressado. Como se Coppola contasse que o espectador já tivesse visto anteriormente o filme de Don Siegel e fizesse assim, uma versão digerida e condensada dos referidos eventos. Trata-se portanto de um filme algo bipolar: lento e paciente nos seus silêncios, agressivo e apressado nas suas palavras e narrativa.

Restaria reflectir sobre o que mudou neste raccord de quase 50 anos. Eu, sinceramente, não sei. São as palavras que se tornaram gastas? Talvez um discurso sobre o desejo e a sexualidade, cuja obsessão pela clareza, se tenha entretanto tornado um não assunto? Sigamos pensando. Mas o tempo, esse, não pára de passar.

domingo, 24 de março de 2019



Não li ainda o livro de Chantal Mouffe "For a Left Populism", mas do que compreendi a partir deste texto é que: fizemos muito cocó na política e portanto toda ela se tornou economia. Not fresh news, so far. Depois, Chantal Mouffe defende que o populismo (o de direita) tem sido desconsiderado, intencionalmente, pelas pessoas do sistema, fazendo dele um instrumento de poder pouco sério avaliando do ponto de vista dos "sérios". Compro esta ideia. E diz depois Mouffe que, no fundo, o populismo está certo ao tentar procurar ser uma alternativa ao sistema político (isto é, a economia) e que só quando a esquerda se aperceber desse potencial alternativo (estamos, sempre e ainda, à procura da luz ao fundo do túnel do neoliberalismo) é que poderá combater o populismo de direita com um populismo de esquerda. Será isto? Ideia interessante mas que me levanta uma reserva: é que o populismo de direita não procura ser uma alternativa ao sistema, ele procura, creio, FAZER-SE PASSAR por alternativa. Além disso, esta solução parece não contemplar outros problemas do populismo: pôr a manipulação das emoções à frente dos factos, ou a culto do líder justiceiro, tudo coisas tão perniciosas quanto o próprio sistema que se diz querer combater...

quarta-feira, 20 de março de 2019

Os apoiantes do “pensamento fraco” (do pensiero debole segundo Vattimo) não terão razão? A circulação de significantes, a flutuação de significados, o apagamento dos referentes não permitirão a uma sociedade de indivíduos resistir mais eficazmente a tudo o que o ameaça, ainda que à custa de uma certa mediocridade e de uma desqualificação progressiva do sagrado (pela secularização), do trágico (pelo “segundo grau”), da arte (pelo mercado da arte) ou mesmo da cultura pelo turismo? (…) E o fim da história não será apenas o começo das aventuras do “mal menor”? 

Serge Daney


sábado, 16 de março de 2019

Cinema Indie-Gena



O realizador tem que rezar pela câmara para ela não queimar.
Genito Gomes

Vivemos tempos entusiasmantes. O cinema enche os pulmões de ar e deixa entrar toda uma outra vida que lhe estava outrora vedada. É o tempo de inverter os contra-campos, de os habitar por todos os lados, todas as partes. De ver e escutar as imagens e os sons daqueles que, como Genito Gomes — da liderança indígena Guarani Kaiowá e hoje cineasta — pedem por uma câmara de filmar e que, quanto esta lhe chega, rezam para ela não lhe queime nos dedos. É o momento de superar o que poderia ser o espaço do paradoxo. Como se pôde ver num outro filme desta Mostra Ameríndia, Já Me Transformei em Imagem (2008) de Zezinho Yube, poderíamos pensar nesse contra-senso de uma "prisão" em imagem, com todos os seus caminhos institucionais, para um exercício que se queria de libertação. Mas nada seria mais errado, pois este é o tempo de entrar no cinema, mas para procurar mudar o cinema. Para fazer das torres-árvores, para caçar imagens, experimentar a partir do coração da terra.

Mas vale a pena começar por explicar esse pedido de Genito. Num processo de recuperação das terras do povo Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, na fronteira com o Paraguai, o pai de Genito, Nísio Gomes foi assassinado. É neste contexto de luta e morte que Genito perguntou ao antropólogo Tonico Benites, que tinha acompanhando o povo todos estes anos, como é que uma câmara poderia chegar às mãos da comunidade. Podemos dizer então que Ava Yvy Vera (A Terra do Povo do Raio, 2016) começa por ser um filme-íman. Um filme que nasce da invocação primordial do cinema que chega virgem à comunidade, no contexto de um conjunto de oficinas de filmagem e montagem, como extensão do programa Canto Palavra Território da Universidade Federal de Minas Gerais. Esse "poder de atracção", de uma câmara que vem parar às mãos de uma comunidade, gera nela um peso, uma solenidade própria de um ritual novo que traz com ele uma responsabilidade. Mas o mais belo nessa capacidade de receber uma “jóia” que pode cortar o real em pedaços é que ela vai para lá da “mera” obrigação de uma certa antropologização do olhar e do cinema. Ela convoca uma sensibilidade artística global.

Já não é uma questão, portanto, de disparar a câmara como (apenas) arma de resistência ou de sensibilização para um problema político. Trata-se de um genuíno gesto de empoderamento. Um gesto que visa, tão somente, diversificar os gestos. Que procura, no fundo, encontrar múltiplas formas de fazer cinema. Não é por acaso que Ava Yvy Vera é um extraordinário exemplo de cinema colaborativo. Assinado por oito pessoas: Genito Gomes, Valmir Gonçalves Cabreira, Jhonn Nara Gomes, Jhonaton Gomes, Edina Ximenes, Dulcídio Gomes, Sarah Brites, Joilson Brites. E também não é um acaso que tudo tenha começado pela reunião de vários espaços e pessoas da comunidade: a escola, o interior das casas, as refeições, a roça, a casa de reza, os novos, os velhos. O que fazer agora com essa câmara que lhes queimava nos dedos? Como conta Genito em algumas entrevistas acerca da realização Ava Yvy Vera, todos passaram as suas ideias para o filme, todos começaram a caçar imagens. Um caso de inteligência colectiva em funcionamento, um objectivo de mostrar como vive o seu povo, uma ideia de transmissão que não é só um alerta de consciências. Havia que “ouvir os nossos velhos”, dizia o cacique, “perguntar-lhes como viviam”. A câmara servia essa passagem de testemunho, para fora, para engrossar a visibilidade da causa indígena, mas também para dentro, para que os novos soubessem a sua história, os seus modos de vida, bebidas, comidas, rezas, cosmovisões.

E assim tomam formas diversas este poder da criação. Mas não é isso exactamente o que traz o poder? O poder de ser várias coisas ao mesmo tempo? Ava Yvy Vera, em menos de uma hora, é esse caleidoscópio de registos que vão desde o racconto mágico, à documentação dos pequenos gestos do quotidiano, passando pelo tradicional momento de “dar voz a”, pelo reenactment de episódios de ataque e sofrimento às mãos dos karaí (os brancos), pela evocação da memória de Nísio Gomes e mesmo à procura dos relâmpagos que eles rezaram para que viessem. Para que se pudesse, no fundo, fazer o filme e “mostrar aos outros como é a realidade do indígena”. Mais uma vez as palavras são de Genito. E em cada recanto desta obra-coletiva — que, no seu propósito, ganha um sentido de coerência superior à mera soma das partes — vamos revendo velhos conhecidos do cinema. Na já referida árvore-antena do início há um pouco de Kiarostami, nos restos de arroz raspados do tacho de mais uma refeição encontramos a omnipresença de Wang Bing. E há Rouch nos cerimoniais, Oppenheimer nos momentos de encenação do passado, Reygadas na procura do brilho da noite. Se em cada recanto todos estes cineastas “saltam” da mão destes oito realizadores de Ava Yvy Vera, só se torna mais evidente que em cada campo há um contra campo por filmar. Um contra-campo que brilha com ainda maior intensidade, que de um filme-íman podemos passar a um filme-sonho. E é por isso que entusiasmantes são os tempos em que vivemos. E filmamos.
***
Ava Yvy Vera (A Terra do Povo do Raio, 2016) vai ser exibido no dia 17 de Março, Domingo, pelas 19:00 na Sala Polivalente no Museu Calouste Gulbenkian, acompanhado de outros dois filmes: Eju Orendive e Ivy Reñoi, Sementes da Terra. Esta sessão faz parte da Mostra Ameríndia: Percursos do Cinema Indígena no Brasil, que decorre de 13 a 17 de Março no Museu Calouste Gulbenkian, numa co-organização Apordoc e centros de investigação CHAM, CRIA, ICS, IHA, e Museu Calouste Gulbenkian.

sexta-feira, 15 de março de 2019


Uma flor para todos aqueles que no dia de ontem se lembraram do meu aniversário. Uma flor para todos aqueles que ainda se vão lembrar do meu aniversário. Uma flor para todos aqueles que, em se lembrando, me desejaram os parabéns por telepatia. E para todos os outros, os que não se lembraram... uma flor.