É mais ou menos consensual que, para Clint Eastwood, o ano de 1971 ficou marcado pela sua estreia na realização, Play Misty for Me (Destinos nas Trevas, 1971) e que, como actor, foi quando encarnou pela primeira vez o senhor muito zangado e de longas pistoletas, Dirty Harry. Contudo, nesse mesmo ano, Clint fez dois filmes com Don Siegel: o primeiro, o filme homónimo da referida personagem, Dirty Harry (A Fúria da Razão, 1971) e o segundo, The Beguiled (Ritual de Guerra, 1971). Em certa medida, estes são o verso e o reverso um do outro. No primeiro, ele é o intrépido e dominante anti-herói que irá actuar à margem do sistema para pôr os maus na linha; no segundo, é um soldado ferido e desprotegido que vai parar a um seminário de mulherzinhas nos tempos da Guerra de Secessão. Se no primeiro, dizia a um dos vilões, no final, para se perguntar, “Do I feel lucky?' Well, do ya, punk?”; no segundo, parece perguntar-se, mal fica melhor dos seus ferimentos na perna e vê as mulheres que o rodeiam: “Am I going to get lucky?”
Esta ideia de verso e reverso tem aqui muito que se lhe diga. Desde logo, o público queria o verso — isto é, o seguimento da persona do durão, do lone wolf misterioso, dos filmes de acção e westerns que Clint já havia feito — e Siegel deu-lhes o reverso, adaptando um romance gótico sulista de Thomas P. Cullinan, acerca de um homem que acabava inválido, manipulado, impotente perante um conjunto de mulheres, armadas do seu desejo fortificado e aniquilador. Por isso, conta-se, The Beguiled foi um grande fracasso de bilheteira, a Universal tentando vender o filme como sendo de acção e o público fazendo tilt, como muitas vezes acontece quando a areia é muita e o camião apertadinho. Mas o verso e o reverso dançam agarradinhos no decorrer do próprio filme. Existem os paralelismos mais evidentes: a personagem de Clint — John McBurney, soldado do norte, corvo ferido e de pata amarrada (tal como um dos corvos que vemos na escola, no início) preso num “oásis feminino” e sulista — é visto como o reverso da personagem da criada negra, pois segundo Siegel ambos são prisioneiros de um sistema: o primeiro de um sistema de guerra que obriga a lutar, a segunda, prisioneira de um sistema social que obriga a servir.
Contudo, a ideia mais interessante ainda nem é essa. É a de que na sombra de cada herói macho, de cada soldado que estripa seus iguais no palco de guerra, há um senhor facilmente enganado, um homem traído também pela ilusão que tem do seu grande poder. E é nesse seguimento que Don Siegel revela a sua extrema inteligência fazendo de The Beguiled um filme que prolonga a guerra, na sombra e no refúgio, da guerra oficial. Ou seja, mostrando que a violência que existia em latência entre quatro paredes, nos sacrossantos lares, nos casarões sinistros e abandonados, habitados pela solidão e pela esperança da chegada dos heróis, dos “masters of the house” eram no fundo palcos dessoutra guerra, de energias descompensadas, de educações puritanas, de ilusões que ajudavam a deturpar um sentido de ordem e felicidade. Estamos assim perante um filme que tem os traços imediatos de um drama de guerra, quiçá até de um filme romântico sobre o desejo feminino, mas que se mostra afinal, que degenera, numa obra de terror gótico, dos que haviam estado em voga nos anos 40 e 50 sobre mulheres encerradas em “casas assombradas”, esperando maridos e filhos vindos da guerra.
É, portanto, um filme de muitos contrapicados, do ponto de vista do soldado prostrado sobre o rosto das mulheres e que o olham com curiosidade sexual, mas também mórbida. Um filme com uma câmara deambulante pelos espaços da escola, sobretudo os interiores, de sobreposições como manifestos visuais de sonhos/pesadelos, de olhares furtivos através de janelas, persianas, terraços. Geraldine Page tem uma interpretação maravilhosa, em jeito de matrona, um tanto tresloucada, iluminada, a espaços, como Coppola recortava na escuridão o Drácula de Gary Oldman. Uma obra sobre claustrofobia, que traz à mente filmes como Misery (Misery - O Capítulo Final, 1990) de Rob Reiner, Boxing Helena (Paixão Selvagem, 1993) de Jennifer Lynch, ou até Black Narcissus (Quando os Sinos Dobram, 1947) de Michael Powell e Emeric Pressburger. A menina mais nova, 12 anos, Amy, a primeira a encontrar o soldado ferido, mas também a beijá-lo, é uma personagem central. Não apenas porque abre e fecha a narrativa, mas sobretudo porque a interpretação de Pamelyn Ferdin mostra de forma ímpar a emoção da ilusão encerrada e traída no espaço fechado, face ao sexo oposto. "I thought you love me...", diz a pequena à beira das lágrimas.
Avançamos no tempo, mas voltamos a The Beguiled. Desta vez o título em português retira a menção à guerra e traz o amor para a ribalta. O Estranho Que Nós Amamos, assim se traduz a nova adaptação do mesmo romance, realizado em 2017, por Sofia Coppola. Geraldine Page é substituída por Nicole Kidman e Clint Eastwood por Colin Farrell. O elenco de estrelas conta ainda com Kirsten Dunst, a professora que o soldado fará crer que é objecto do seu amor verdadeiro, e por Elle Fanning, a lolita adolescente que aquele desejará realmente.
Depois de ver esta nova adaptação pergunto-me sobre a razão que terá levado Coppola a revisitar uma obra que parecia ter sido realizada por Siegel de forma tão contundente, tão assertiva naquilo que queria dizer. Desde os primeiros planos na floresta, com uma luz lânguida e escura, plena de névoa (a fotografia é de Philippe Le Sourd), fica-se com a sensação que esta não é tanto uma obra sobre essa ideia de guerra, e mesmo que o terror, a existir, parece surgir sob uma forma bem mais subtil e silenciosa. Onde Siegel marcava bem os momentos de viragem da narrativa e nos dava pleno conhecimento das suas personagens através das conversas do soldado com as diferentes mulheres que ia procurando manipular, Coppola investe sobretudo nos silêncios, no não dito, na câmara presente nos detalhes que revelam de outra maneira. Por exemplo, a cena que já vinha do filme de 71, em que lavam o soldado ferido, aqui tem uma atenção especial. Prolonga-se no tempo, tem uma cumplicidade especial entre Kidman e o seu objecto de desejo. Como se aqui Coppola nos quisesse mostrar como o desejo não é um encontro de palavras ditas, mas de uma observação dos rituais. Por exemplo, os momentos dos jantares à luz das velas, toda a preparação para esses eventos, mas também uma certa sinfonia de olhares silenciosos, de frases que ficam por dizer.
Parece assim uma obra mais realista sobre a natureza do desejo. Mas então, qual é afinal o problema que faz com este filme, que deu o prémio de melhor realizadora em Cannes a Coppola, me pareça tímido, por relação com o de Siegel? Talvez pelo facto desse silêncio não ser levado a um extremo, como proposta fundamentalmente diferente. Em vez disso, The Beguiled (O Estranho Que Nós Amamos) é um filme conciliador. Por um lado, ele parte de uma espécie de trademark da cineasta que passa muito pela construção visual e atmosférica de momentos de cumplicidade no interior de um microcosmos feminino. O exemplo mais evidente desta estratégia podemos encontrar em The Virgin Suicides (As Virgens Suicidas, 1999), mas também, e aqui com contornos mais histriónicos, em Marie Antoinette (2006). Mas, por outro lado, o seu The Beguiled não abdica dos momentos narrativos mais marcantes (as seduções de cada uma das mulheres, a noite fatídica da queda do soldado e amputação, o envenenamento) que o filme anterior trazia para o seu centro. O resultado é que, quando surgem as palavras para dar corpo a esses eventos, elas têm um cunho artificial, teatralizado, apressado. Como se Coppola contasse que o espectador já tivesse visto anteriormente o filme de Don Siegel e fizesse assim, uma versão digerida e condensada dos referidos eventos. Trata-se portanto de um filme algo bipolar: lento e paciente nos seus silêncios, agressivo e apressado nas suas palavras e narrativa.
Restaria reflectir sobre o que mudou neste raccord de quase 50 anos. Eu, sinceramente, não sei. São as palavras que se tornaram gastas? Talvez um discurso sobre o desejo e a sexualidade, cuja obsessão pela clareza, se tenha entretanto tornado um não assunto? Sigamos pensando. Mas o tempo, esse, não pára de passar.