Começando com uma evidente metáfora epidérmica diga-se que Pedro Almodóvar,
que sempre foi fã das peles extravagantes com que vestiu o kitsch do cinema
espanhol na década de 80 e 90, não veste com naturalidade esta pele: a do
thriller negro. E isto porque há uma sensibilidade ao drama, que busca o trágico
e o adorna de peripécias rocambolescas (que começou a despontar há já vários
anos, pelo menos deste TODO SOBRE MI MADRE) e que insiste em povoar o universo do
romance TARANTULA, de Thierry Jonquet, da qual parte LA PIEL QUE HABITO. Desta
forma, em lugar de acarinhar o mistério que encerra a relação das duas
personagens principais, um louco cirurgião plástico (Antonio Banderas) e a sua
cobaia (Elena Anaya) para experiências que comprometem os limites da bioética científica,
prefere explorar os habituais traumas do passado familiar, conflitos de género
e dramas finais de reencontro. E desta feita o que começa por ser um corpo estranho, despedaçado,
no mundo almodovariano - tocando o universo temático de LES YEUX SANS VISAGE, de
George Franju, fundindo, ou inserindo, o mito de Frankenstein no centro das
problemáticas contemporâneas dos gender
studies - acaba por introduzir todos estes elementos numa sensibilidade
reconhecida e reconhecível que desde MALA EDUCATION, se vem recriando, cada vez
com menos sucesso. Volta a haver números musicais quentes, exóticos q. b.
(desta feita é Concha Buika, a cantora espanhola vencedora de um Grammy em 2008
com o álbum Niña de Fuego), décors e roupas de bom gosto e um sistema de
analepses que enerva mais do que é eficaz. Contudo, tudo isto não faz mais do que
tentar criar um todo desconjuntado, plasticamente apelativo, mas sem capacidade
de criar algo novo, vivo em todas as suas partes. Ainda como Frankenstein… Digamos
que Almodóvar está transformado num bonacheirão arty, demasiado ocupado com as coisas
belas e sofisticadas da vida para escavar com imprudência o mundo destes loucos e assassinos que aqui simplesmente aflora. No genérico, Almodóvar agradece a Louise Bourgeois...
terça-feira, 29 de novembro de 2011
domingo, 27 de novembro de 2011
Grelha de Televisão
«Imagine que era, por 24 horas, responsável pela programação de um canal nacional de televisão. Usando os seus plenos poderes programe uma emissão a seu gosto do meio-dia às duas horas da madrugada.
O esforço sobre-humano que é preciso fazer para imaginar uma coisa dessas! Bom, mas fazendo-o, e conseguindo-o, primeiro é preciso definir o dia da semana. Suponhamos que é domingo (talvez de Agosto, talvez escaldante):
12:00, Televendas
Em directo dos "stands" da Feira Popular de Lisboa
12:40, Carros, Detergentes, Tampões e Salsichas
Programa de valor acrescentado
13:00, Noticiário
Com as frentes de guerra onde paira a ameaça de paz, e as frentes de paz onde há esperança de guerra
13:50, Detergentes, Tampões, Carros e Salsichas
Programa de valor acrescentado
14:00, Mulheres à beira de Um Ataque de Nervos
O conhecido "western" de P. Almodovar
16:00 Detergentes, Salsichas, Carros e Tampões
Programa de valor acrescentado
16:10, A Entrevista da Semana
Entrevista política com um dirigente desportivo
17:00, Tampões, Salsichas, Carros e Detergentes
Programa de valor acrescentado
17:10, Desporto
19:50, Salsichas, Tampões, Carros e Detergentes
Programa de valor acrescentado
20:00, Notícias
Com uma entrevista ao ministro da Administração Interna sobre os resultados desportivos do dia
20:50, Carros, Tampões, Salsichas e Detergentes
Programa de valor acrescentado
21:00, FFF
As flutuações das taxas de desconto, das taxas de referência e das taxas de mercado, por três analistas financeiros.
21:50, Salsichas, Carros, Detergentes e Tampões
Programa de valor acrescentado
22:00, Dinheiro Não Faz Felicidade
247º episódio
22:50, Tampões, Carros, Salsichas, e Detergentes
Programa de valor acrescentado
23:00, Ganhe um Coelhão com a Coelhinha
Concurso dominical
23:50, Carros, Salsichas, Tampões e Detergentes
Programa de valor acrescentado.»
ALBERTO PIMENTA em entrevista ao Público (1995)
sábado, 26 de novembro de 2011
Melancholia - Lars Von Trier
A partir do momento em que Lars von Trier decidiu transferiu o «negro», a
falta de esperança na Humanidade - outrora depositada na Europa do pós-Guerra (EUROPA, THE ELEMENT OF CRIME, EPIDEMIC)
– para o universo feminino, houve muita gente que começou lentamente a
enervar-se. BREAKING THE WAVES ainda
era uma novidade. Ou seja, a sua tortura psicológica, o choro, a violência, eram
aplicadas em souplesse à construção
de uma personagem interessante balizada por uma assinalável dimensão romanesca:
os efeitos de um acidente na tortuosidade de um casamento. Com as suas duas
obras seguintes, IDIOTERNE sobre os
limites da «idiotice» no interior de cada ser humano, se assim se pode dizer, e DANCER IN THE DARK, sobre uma operária
cega que ruma aos EUA em busca de uma vida de sonho, ficou claro para alguns
a necessidade que Trier tinha de explorar territórios proibidos. Os seus detractores
viram claro a necessidade oportunista de extrair do horror alheio a compaixão do
público. Essa atitude sempre Von Trier foi «rato» o suficiente para a ir conseguindo
esbater: ora porque os filmes se faziam em estilo dogma, ora porque de repente
no interior de uma fábrica toda a gente começava a cantar e a dançar como em
Demy. E mesmo DOGVILLE, a via
dolorosa de Nicole Kidman, Trier concebeu como tentativa de um cinema
brechtiano que, com giz no chão e negros, contrastava com a riqueza de um retrato
imperial norte-americano. Houve certamente qualquer coisa que mudou com DOGVILLE e depois com MANDERLAY, o segundo filme da sua
trilogia sobre os Estados Unidos como terra das oportunidades. E não é difícil efabular
sobre isso. Ora eram os relatos épicos do mau feitio que Trier descarregava
sobre as suas protagonistas feministas durante as rodagens que ficavam à beira
do esgotamento, ora eram as notícias que falavam de um realizador que caíra em
profunda depressão. Como se Trier procurasse em desespero um limite para o
sofrimento, para lá do qual outra realidade e sensibilidade pudesse emergir.
Foi com ANTICHRIST que o flanco se abriu completamente àqueles que sempre
preferiram ver nos seus filmes a lágrima útil por detrás do rosto atormentado e
o sangue para além da resposta ao trauma. E ANTICHRIST com as suas excisões e ejaculações sangrentas é um filme
que estetiza, que cria e se recria
opulentamente sobre a dor, ao caso a trauma da perda de um filho, levando a
simbologia dessa mesma dor a um extremo que não anda muito longe do puro prazer
estético. Um extremo, o que encontrou Lars von Trier, que tem qualquer coisa de
risível, mas em igual medida, vasculha uma profundidade na perda. Seja ela de
um sonho, de um filho, ou da esperança na Humanidade.
Eis-nos então chegados a MELANCHOLIA
neste percurso que converteu Lars von Trier no puro provocador do cinema contemporâneo,
naquele que diz sempre o errado na hora mais inoportuna, mas sobretudo aquele
que mostra as imagens que no passado já foram destituídas de valor moral pelo percurso
do cinema. E bom, festival de Cannes de 2011, elenco de luxo, Kirsten Dunst, Charlotte
Gainsbourg, Charlotte Rampling, Kiefer Sutherland, John Hurt, e eis que Trier
manda uma «granada» das suas. Em conferência de imprensa quando questionado
sobre a sua admiração pela estética nazi, disse que compreendia Hitler e que o
conseguia imaginar no final sentado no seu bunker. Que sempre pensara ter
raízes judias e que quando descobriu que eram «nazis» também não achou mal.
Perante isto é impossível separar MELANCHOLIA
destas afirmações, com o evento mediático a invadir a obra, tal como tinha
acontecido com PASSION OF THE CHRIST e
as declarações anti-semitas de Mel Gibson, também em Cannes uns anos antes. Mas
ganhará o filme ao ser visto à luz de uma suposta estética nazi? Bom, o seu
início é com Wagner, na sua entrada em slow
motion operático como já tinha acontecido com ANTICHRIST. E de resto? De resto nem por isso. É desta feita
Kirsten Dunst que entra no universo do cineasta, esta «verdadeira máquina de
desgastar actrizes» para nos dizer que se está a casar com toda a pompa, numa
mansão rodeada por um campo de golfe de 18 buracos e um jardim «marienbadiano».
Um pouco como nesse «clássico» dogma 95, FESTEN
de Thomas Vinterberg, aqui também a inquietação no grupo que assiste ao
casamento se instala lentamente. Uma vez que apesar de Justina (Dunst) estar a
ter um casamento de sonho, de sorrir e se fartar de sorrir como diz, algo
perturbar o evento. Tudo é filmado em câmara à mão como nos seus filmes dos
anos 90, reforçando esse lado de perturbação a instalar e a corromper o luxo. Num
segundo momento do filme, dedicado à irmã de Justine, Claire (Charlotte Gainsbourg),
a melancolia insanável da irmã ganha uma dimensão apocalítitica, com «Melancholia»,
um planeta de órbita instável, a poder entrar em rota de colisão com a terra.
Se TREE OF LIFE de Terence
Mallick nos expõe de forma, digamos, «agradável à vista», um manifesto pela
vitalidade da vida em todas as suas formas e cambiantes, MELANCHOLIA, proporciona um fechamento à vida, não menos
surpreendente, não menos belo na sua inevitabilidade. Frases como «I know we
are alone» (sobre a vida no universo), ou «The earth is evil» mostram como MELANCHOLIA não quer ir para lado
nenhum, que é uma variação minimalista sobre a tristeza e onde o fim do mundo é
a única redenção possível. Se em DANCER IN THE DARK ou ANTICHRIST
a apetência pelo sofrimento podia provocar o choro, ou emocionar aqueles que o
testemunhavam, com MELANCHOLIA esse
sofrimento atinge uma tal depuração que já nem lágrimas convoca. Mantém-se em
estado de imobilidade a pairar sobre todo o filme, convertido que foi em plena
afirmação filosófica.
Dito isto arriscamos uma comparação, que Lars von Trier seja uma espécie de Schopenhauer
do cinema contemporâneo. No final da sua vida, o filósofo alemão pôs um pouco
de parte os pensamentos sobre a dor desta vida e a morte e suicídio como únicas
soluções, para depois abraçar Deus. Lars von Trier ainda é novo, mas conhecida a sua evolução enquanto cineasta, há já vários
anos a filmar o fim - o fim das relações, dos países, das expectativas e desta
vez o fim do mundo - perguntamo-nos: o que virá depois do fim?
Para já apenas um
genérico.
MELANCHOLIA chega às nossas salas dia 1 de Dezembro.
domingo, 20 de novembro de 2011
Aviões de papel
Ainda a propósito disto e dos eficazes mecanismos de composição da solidão
nas cidades modernas relembro um episódio que aconteceu comigo há menos de uma
semana num conhecido centro comercial de Lisboa. Sento-me à espera de uma
pessoa e tomo um café. Leio sem muita concentração um livro. Na mesa ao meu
lado está um sénior (é assim que se diz agora não é?), que, sem levantar os
olhos da sua mesa, arranca metodicamente uma a uma as folhas do jornal «A Dica
da Semana». Dobra cada uma delas com a maior concentração possível. Depois de
estabelecida a forma, retira do bolso do casaco gasto um agrafador e completa a
obra. Agrafa-os por baixo para lhes dar estabilidade no voo. Um a um, vai
colocando perfeitos aviões de papel em cima da mesa. A observá-lo apenas eu e
um outro velhote na mesa do lado. A certa altura termina de dobrar mais um
avião e diz para o senhor do lado, olhando para o relógio: «é melhor ir indo que
já são meia-noite e vinte». Era precisamente meio-dia e vinte. Colocou os
aviões num saco de papel e disse satisfeito: «ora, oito vezes cem, oitocentos
euros». Presumo que falasse ainda dos aviões. Arrumou o material e sem se
despedir do amigo, ou olhar para alguém, pegou no saco e foi andando devagar,
em passo trôpego, até desaparecer por entre a multidão que, atarefada, comprava
camisas e massas take away. Retomei a
leitura mas não me conseguia concentrar. O raio do velho e os aviões de papel.
Pensei que seria bonito que os aviões voassem todos. Pensei que gostava que,
por ele, cada avião valesse cem euros e que não existisse nenhuma diferença
entre o meio-dia e a meia-noite. Ou seria por mim? Eu também estava sozinho mas não tinha levado o agrafador.
sábado, 19 de novembro de 2011
O que é que vale a pena?
Não espanta que o
ministro Miguel Relvas tenha estabelecido um grupo de trabalho (GT) para a
definição do serviço público de comunicação social, no âmbito da «missão» do
Governo de limpar o país da «salganhada socialista» e aplainar mais um
terreno para uma política liberalista, contida, e de correção dos
mal-comportados. Nesta área quer-se aparentar esta iniciativa a um murro na
mesa num já longo folhetim que envolve a RTP e o seu buraco financeiro.
Contudo, aquilo de que o executivo não se apercebe é que este suposto acto final de uma
verdadeira comédia lusitana não é fim coisa nenhuma, mas sim mais um episódio
que ameaça perpetuar uma discussão para português ouvir, enquanto as decisões
giram naturalmente à direita ou à esquerda consoante as eleições. Além disso,
basta ler as principais conlusões deste GT para perceber que esta é apenas uma
forma, nem sequer muito original diga-se, de besuntar de fundamento pseudo-científico
uma decisão política que mesmo antes das eleições já parecia ser um facto:
extinguir um canal do serviço público e readaptar a sua lógica ao contexto
económico sobejamente conhecido. No entanto, para não se ver o óbvio - que esta
é manobra burocrática consumidora de tempo e recursos - elaborou-se a ideia de
que os membros deste GT trabalhariam pro bono. Embora se tenha visto e
com alguma razão que para tapar uma ponta se levantou outra: trabalhar sem receber fica sempre bem, mas implica uma afirmação da
desvalorização do trabalho.
Este jogo de atenções, da
ciência a cobrir os rastos da política, não espanta assim tanto. O que
surpreende é que ainda haja pessoas que comentam as conclusões do GT como algo
relevante e sério para decidir o futuro do serviço público nacional, e mais,
que adoptem o seguinte raciocínio. São 300 milhões por ano, é muito dinheiro e
talvez não valha a pena (dado o passado histórico ruinoso da RTP e a sua
manifesta falta de qualidade) prosseguir em tentantivas de recuperar o conceito
de serviço público adaptado a uma televisão nacional (Vasco Pulido Valente-
Público 19/11/11) . Ou que se tente colocar as coisas em regime de tragédia
shaskespereana: é isto ou é o «cerelac para as crianças» e por tanto larguemos
a RTP de uma vez porque não temos condições para tal (João Miguel Tavares- Governo
Sombra - TSF 18/11/11). Em surdina, ouvimos o longínquo balbuciar do
argumento da inutilidade da cultura, subsídio-depente, habitada por inúteis
incompreensíveis, com incomodativo poder de agitação mediática.
Mas separemos as águas. A
RTP não tem qualidade de serviço público (não, não é um conceito assim tão
nebuloso quanto alguns dos seus detractores querem fazer querer) e contém um
gigantesco buraco financeiro. Isto é incontornável. Agora, esse buraco é um
buraco feito pelas pessoas que o geriram ao longo dos anos em lógica corporativista,
aproveitando-se do saco sem fundo que algumas pessoas colaram indevidamente ao
conceito «serviço público» para se safar. Esta lógica não permite esburacar,
devido à incompetência das pessoas, o próprio conceito. Porque essa lógica, por
maioria de razão, teria de ser aplicada a muitas outras áreas inclusivé à da
manutenção do Estado. Se o Estado gera buracos financeiros, talvez não valha a
pena ele existir. Se nenhum aluno tira positiva nos testes da escola, talvez não
valha a pena termos avaliações, e por aí fora. Este é um argumento absurdo
porque não só nos desresponsabiliza de detectarmos e eliminarmos os erros
cometidos (a gestão da RTP não é o conceito serviço público) como mancha a
visão que temos do mundo e seus princípios, de respostas fáceis, que apenas têm
uma obsessão: a) corrigir a
matemática, para b) acalmar as águas
das políticas, para c) que no futuro
se continue a ter fundos para gerir organizações sem sentido público, para
gerir futuros buracos. Ora a possibilidade da gestão de futuros buracos é o telos no horizonte da política nacional neste momento. E com isso não
podemos conviver.
De toda esta situação, o conceito de serviço público está
arredado. Este só se preocupa com o seguinte: assim como o dinheiro dos
impostos dos contribuintes serve para manter a saúde, a justiça dos seus, também
deve assegurar um nível de educação e cultura. Nem iremos pelo atalho do dito
popular que «a educação e cultura não têm preço». Agora o que não há é um
correspondente directo entre o nível de cultura e educação e o dinheiro
despendido com um canal de televisão. Essa fuga à lógica economicista enerva
muita gente. Aliás, foi a a necessidade de entrar nesse esquema economicista
que levou a RTP a entrar nos circuitos de mercado que pagam a peso de ouro
programas ignóbeis que traem o espírito do verdadeiro serviço público.
Desta forma, corre-se o
risco de ter vista curta, de se assistir à desfiguração dos valores para
propósitos político-económicos. É desse «déficit», o «déficit de valores», que,
ao contrário de outros, nos parece impossível recuperar.
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