Tinha quarenta e poucos anos Carl Dreyer quando terminou Vampyr, um dos mais espectaculares falhanços comerciais da sua carreira. Além do conhecido interregno na realização de longas-metragens, outros dois factos são assinaláveis. O cineasta começou, mais ou menos a partir desse momento, a conceber um projecto sobre a vida de Jesus Cristo judeu, ideia que nunca viria a concretizar. Depois, em 1932, Dreyer assistiria à peça “A Palavra”, do pastor e dramaturgo Kaj Munk. Consta que terá ficado entusiasmadíssimo, pensando de imediato numa adaptação cinematográfica da mesma. No entanto também passariam cerca de vinte anos antes que Ordet fosse uma realidade. E viria a sê-lo curiosamente com um retumbante sucesso. E sublinhamos o curiosamente pois apesar de se tratar de uma obra-prima absoluta da história do cinema e certamente monumento paradigmático do cinema do dinamarquês, trata-se de uma obra densa, de ritmo difícil, diga-se, muito pouco à medida do grande público, mesmo pelos padrões menos “contaminados” de então.
Então o que terá explicado este fascínio? Certamente não será alheio o facto de se tratar de uma obra que aos olhos do público consagrava o inegável talento de um artista como Dreyer, talento que havia mostrado ao longo dos anos. Mas parece-nos que decisivo terá sido mesmo o facto de Ordet não ser de um idealismo intransigente como o tinham sido de certa maneira Vredens Dag ou La Passion. Lembre-se que ambas as suas protagonistas sucumbem ante a “pressão” da sociedade pela afirmação de um ideal. Um idealismo com tradução prática: os finais sempre elevados mas “em abismo”. Pela primeira vez, Dreyer reflectia sobre o seu “tema”- a relação entre a fé espiritual e o carne desses mesmo fiéis- mas agora numa perspectiva de síntese, de conciliação dos dois universos. O resultado teria implicações práticas ao nível da recepção dos espectadores: a ambiência desta dualidade numa recusa do sobrenatural e o apoio num consequente realismo (no qual todos os seus personagens se movem), seriam factor de familiaridade decisiva para as pessoas. E ainda um feito estraordinário: pela primeira vez, um filme dito “sério” do circunspecto dinamarquês, que terminava de forma esperançosa, com um milagre (e o risco, por um lado, e a audácia, por outro, que seria mostrar um milagre às pessoas; recorde-se a polémica com as sequências de Jesus Cristo em Blade Af Satans Bog).
Mas retome-se a discussão sobre o hiato entre a ideia de Ordet e a sua consumação. Uma vintena de anos, mais concretamente vinte e três, que terão certamente permitido a Dreyer fazer uma obra, diz-se, de maturidade. Exercício vão, mas certamente profíquo do ponto de vista intelectual, seria imaginar a mesma obra feita por um cineasta de quarenta anos. O resultado é impossível de concretizar mas avance-se uma hipótese. Teria Dreyer sabido receber para o seu universo a desconfiança racional do Kierkegaard que muito o influenciara? Teria Carl Dreyer decidido, como o fez, deslocar o centro dramático da peça de Kaj Munk do protagonista Johannes para Inger? Nunca o saberemos. Johannes, o homem que enlouqueceu a ler Kierkegaard e de quem não se sabe se há que ter pena ou não, seria, e é certamente, a personagem mais à medida de Dreyer: um marginalizado, que não abdica. Alguém que encarna (por muito a despropósito que a palavra possa vir) a sua metafísica, o elogio da espiritualidade. Nos seus antípodas está Inger, que representa a “palavra” de Ordet, ou antes a possibilidade que esta encerra: a conciliação entre o mundo espiritual e o corpóreo, o amor etéreo e devorador e o mundo prático dos homens. Inger é religiosa mas não deixa de ser pragmática, não deixa de corporizar a sensualidade de Ordet (tão à flor da pele nos planos “colados” do nascimento do seu filho). Talvez por isso o seu corpo seja o mais débil e também, porque é o único que se dá, sem complexos, sem pejos, aquele que merece ser salvo. Algures entre as “agruras do céu e da terra” estão Mikkel e Maren, e porque não dizê-lo, também o pastor ou o médico, que vivem atormentados, em cheque, entre a razão e a fé.
Assim, Ordet, com a sua Inger, confere a textura e a voluptuosidade que faltavam a Joana D’Arc, a Jesus Cristo, a Anne, que é o mesmo que dizer, ao espiritual das suas obras anteriores. Como se a complexa natureza da fé e do ser humano redundasse nessa síntese quase milagrosa. E outra coisa não faz esta obra de Dreyer senão confirmar em todos os seus capítulos, desde as representações aos movimentos de câmara, essa intromissão do espiritual no corpóreo. Aliás, o milagre final operado, tour de force do cinema de autor no primeiro século de cinema, é uma espécie de introdução na narrativa, na carne do seu naturalismo, na sua lógica causal, de um deus ex-machina. Neste caso antes um “deus “ex-corpo”, o do pobre e louco Johannes, que contendo em si a santidade espiritual, a demostra, a dá (ou antes, a perde) mostrando que os milagres da vida ainda acontecem, mas sobretudo que os da arte também. O milagre artístico é expresso na força da sequência final, num clímax que filma a transcêndência através de um realismo poderoso, inquietante, que recusa o grande plano, que recusa esconder o beijo entre um homem e uma mulher. E é esse beijo lento e sereno entre Ingrid e Morgen, ou antes o seu peso, que nos lembra que estamos ante a ressureição de um corpo. E com ele também o tempo que “estava morto” (planos do pêndulo do relógio parado), volta à vida. Estamos de volta ao cenário final de Vredens Dag, num jogo de inversos. Só que desta vez é de um renascimento, e não de uma morte que Dreyer se ocupa.
É inegável que a obra de Dreyer seja feita de dualidades – veja-se a oposição já citada entre o espiritual e o corpóreo, a religião versus razão (“chame o médico se ele conseguir trazê-la de volta à vida”, diz Borgen com ironia), a sanidade dos descrentes contra a loucura de Johannes ou a “luta” de uma fé contra a outra (corporizada na relação entre o protestante Borgen e o alfaiate cristão). Poderia então pensar-se que o clímax de Ordet funcionaria como a defesa de uma tese, com o anúncio ao mundo que os loucos são os verdadeiros sãos nesta querela espiritual que se encena. No entanto, o desaparecimento de Johannes do qual retorna recuperando a sanidade mental surge-nos antes com contornos de preparação para um sacrifício. Desta forma, o final de “A Palavra”, mais do que um milagre, feito em nome, lembre-se, da filha de Inger (a única que não põe em causa o poder do tio), é antes a perda de uma condição. Como Jesus, Johannes sacrifica a sua condição de ser iluminado e insano pela salvação da sua cunhada e do seu corpo, que o marido admite sentir tanto a falta como do seu espírito...
Dreyer defendeu por várias vezes o paralelismo que existia entre o ser humano e uma obra de arte: ambas possuem corpo e alma, sendo que através do primeiro se exprime o segundo. Ora, se o corpo do cinema é feito de outros corpos, a sua alma está concentrada no estilo. E em nenhuma outra obra, Carl Dreyer exprime tão claramente o alma do seu cinema. O seu olhar, em panorâmicas demoradas e fluídas, parece querer procurar nas situações o invisível, o que ainda lá não está, sob a forma do irrevelável. É nessa espera, nessa tensão nos objectos e nos corpos, que a síntese corpo e alma se constrói. (veja-se a cena de Johannes com a sobrinha ao colo, a revelar-lhe o que poderá fazer). A deambulação precisa e invisível da câmara, sempre em espaços interiores, (estes vistos como locais de indefinição também ela interior), são sinais dessa força de transcendência no espaço que é por excelência o da materialidade – a casa. Já os exteriores, escassos, são locais de mera transição, ou onde domina uma “força” que transcende as personagens (o ponto de vista “sagrado” aquando da procura da Johannes pela sua família).
A austeridade das representações, sinais de um exterior a mostrar um interior, não são novidade de Ordet. Contudo a sua famosa “espiritualidade encarnada”, emparelha-se aqui com a prostração das próprias figuras. Veja-se, uma vez mais, como Dreyer filma o corpo de Inger, como Johannes segura na sobrinha, ou como, à mesa da cozinha, Peter olha a sua amada.
Em suma, o visual e o espiritual em Ordet fundem-se numa ordem do domínio do religioso: como se as suas imagens fossem elas próprias uma questão de fé. Por isso, muitos nelas acreditaram (e talvez não seja outra a chave do sucesso comercial da obra). Outros delas desconfiaram e muito. Recorde-se que esta “palavra” foi vista, talvez com algum excesso de zelo, como alegoria anti-nazi.