terça-feira, 13 de agosto de 2024

Singela festividade

O interior como fortaleza de portas floridas: fechar quando chega a intempérie, abrir quando o sol espreita com seus luminosos raios.

O interior como templo onde todos são bem-vindos desde que convidados ao ritual do dia. Ao templo chegam somente os bem-aventurados; aos portadores da dor e do caos, os perfumes do seu interior afastam sem hesitação.

A ordem e a beleza como adubos do amor e da clarividência do espírito. O espírito ordenado e límpido vê em cada segundo uma singela festividade.

sábado, 27 de julho de 2024

Uma questão de brilho

Por vezes, chegamos a um local desesperados, mimados, ansiosos. Esperamos pela nossa vez, mãos na boca, pensamentos esvoaçando. No momento em que nos é dado o tempo e o espaço de falarmos o nosso pedido, a nossa queixa, há duas coisas muito diferentes que podem acontecer.

A primeira é esta. A pessoa que nos ouve responde-nos: isso é impossível. Ou: tem a certeza? Ou ainda: isso não é bem assim, vai ter de esperar. Essa pessoa tem geralmente um brilhozinho nos olhos, é a chamada pequena crueldade.

A segunda possibilidade é esta. A pessoa que nos ouve diz-nos: isso é impossível... mas estou aqui para ajudar. E depois acrescenta: vou tentar falar com x, ver se conseguimos contornar isto. Se nesse preciso instante encararmos a pessoa nos olhos, também neles mora um brilho, é a chamada pequena bondade.

Nas repartições, nas esquinas, das secretarias, nos balcões, cafés e guichets estes brilhos andam à solta. Pessoas que têm prazer em ver sofrer e pessoas que têm prazer em ver sorrir.  

sexta-feira, 26 de julho de 2024

improbabilidade da beleza

Em frente da minha casa nasceu uma pequena flor. Cresceu entre os ferros de uma tampa de escoamento de água. Não sei se se sente apertada, mas bebe do sol diário e da água da limpeza do pátio. Em breve, um pé anónimo - não será o meu - acabará com ela. Contudo, enquanto viver, ela é um pequeno sinal da improbabilidade da beleza.

domingo, 23 de maio de 2021


Toda a gente supostamente espantada com as condições miseráveis de habitação dos trabalhadores migrantes em Odemira. Fassbinder em 74. Diz que passaram "só" 47 anos.


quarta-feira, 12 de maio de 2021

 



Le Mépris termina sob o signo do silêncio e do fim, ambos albergando um primeiro olhar de Ulisses de regresso à pátria. Contudo, antes desse regresso que faz terminar, Godard havia filmado a partida que faz começar esse mesmo fim. Como? Filmando a súbita barreira intransponível que se ergue entre duas pessoas que deixam de sentir amor correspondido. Fala-se recorrentemente dos jump cuts como técnica que passa a normalizar a instabilidade no olhar na Nouvelle Vague. Contudo, entre estes dois planos – Camille a ser “raptada” pelo produtor Prokosh e a chegada do marido Paul a casa daquele, minutos, horas (décadas?) depois – há um salto muito maior, um buraco negro. Godard mete naquela meia dúzia de planos um abismo amnésico, onde tudo muda. O fim do amor como uma temporalidade difusa, um jump cut que dura séculos e um bater de pálpebras. Nunca mais saberemos o que fez morrer o amor de Camille e Paul, não vimos nascer o desprezo, mas sabemos que aconteceu algures entre a ruína e o jardim resplandecente.






terça-feira, 4 de maio de 2021

 Ao ver a proximidade dos rostos das personagens de Nomadland - em momentos quase documentais -, pensava na inversão da celebre frase que dizia que os bons filmes são sempre documentários sobre a sua rodagem. Pelo contrário, hoje, os filmes são as rodagens do seu "documentário". Já não tanto a busca do autêntico e real no cinema - ambições de um certo cinema moderno-, mas a procura de conservar uma ideia de realidade como "product placement".


 A estranheza, o abismo inexplicável de certos filmes, obras outrora primas, dá hoje lugar à superfície, à clareza das causas. Curiosamente, parte desta clareza reivindicativa surge como resposta ao facto de termos andado, anos após anos, a tentar deslindar esses abismos, essas relações, essas formulações obscuras. Não gostámos do que achámos e descolonizámos essa “versão” do real, “colonizando” o cinema enquanto linguagem artística. A pergunta "o que é isto?" deu lugar à resposta "isto é aquilo que sempre devia ter sido".