domingo, 31 de julho de 2011

Corte de Cabelo

É escusado negar uma aura quase mística que ainda hoje rodeia CORTE DE CABELO, estreia nas longas-metragens do realizador Joaquim Sapinho. Nomeado ao Leopardo de Ouro em Locarno em 1995, o filme parte de um acontecimento trivial - o casamento civil de uma jovem que trabalha numa perfumaria (Carla Bolito) e de um realizador (Marco Delgado) e de uma «lua-de-mel» mais atribulada pela incerteza do próprio amor entre ambos do que por peripécias exteriores. O que ainda permanece forte em CORTE DE CABELO é que, por um lado, existem tiques de uma primeira obra, com o excessivo veicular de ideias demasiado sugestivas, sobretudo ao nível da mise-en-scène, fazendo de uma história comum um emaranhado de falsa complexidade, um apanhado de maneirismos que hoje vemos como ingenuidades (-«Ainda hoje de manhã éramos amigos, c*!», diz uma personagem a dada ocasião). Mas por outro, esse excesso joga pontual e inadvertidamente a favor do filme: há uma miscenização entre o tom ultra moderno do cinema europeu da altura cuja influência Joaquim Sapinho veio a beber, e um certo classicismo americano, sobretudo veiculado na montagem nas suas sequências finais (lembramo-nos da fuga de Maria e Orlando dos skinheads durante a noite). Desta feita, tratemos de elogiar a virtude da experimentação que vai do risível ao sublime em espaço de poucos minutos. Veja-se ainda a cena inicial após o genérico, na apresentação da protagonista, onde a luz, a cor, a música concebem uma atmosfera kitsch que não mais iria ser largada pelo cinema português, como na cinematografia de um cineasta como João Pedro Rodrigues, por exemplo.


quarta-feira, 27 de julho de 2011

O fardo de Amy

Sobre a morte de Amy Winehouse nada adianta ser dito sobre a maior ou menor elasticidade do músculo do gosto que a posiciona mais acima ou mais baixo na escala da sua condição artística. Muito menos adianta escrutinar o interesse semi-mórbido pela efeméride, que a coloca como mais uma da lista do malogrado clube dos 27, composto por outros artistas que morreram com a referida idade. Ou melhor, aquilo que sobre estes vectores se pode dizer é que a qualidade musical da cantora sempre foi ensombrada pelo seu estatuto de ícone da fragilidade. O amparo que inspirava - a pena de uma biografia atribulada pela adolescência difícil, as drogas, desgostos de amor - tudo isto foram elementos que transpareciam na sua qualidade de performer. Ou seja, o seu insucesso biográfico determinava o seu sucesso artístico. No entanto, essa transparência converteu-se em choque de linguagens (a pessoal e a pública) no exacto momento em que as contradições de uma vida passaram a ser veiculadas sem filtro no palco do seu estatuto público. A sua mitificação resulta então de um penoso processo de transferência das normais agruras do quotidiano para uma plataforma de escrutínio, que, ora as punha a nu, ora as potenciava.

Desta forma, o que se nos oferece dizer sobre a morte de Amy é que esta demonstra que o estatuto de estrela (como as repartições públicas ou as escolas, como referia Hofmannsthal), define-se hoje como instituição em que a vida é descurada em detrimento de um certo mecanismo de vida. Neste mecanismo de vida, a de uma estrela, existe uma premeditação do gesto, do comportamento, na qual o tempo, compartimentado, faz sobressair o fosso entre o que é essencial ao género humano- o manter tudo junto, tudo como possível – e a contradição que separa o que Amy Winehouse era, do que devia ser.

Amy tinha consciência desta diferença, entre o ser «tudo possível» e o mecanismo omnipoderoso da sua persona musical, que a elevava acima dos demais, fazendo do púlpito um estado de permanente vivência. Se às crianças se retira, por convenção, o sentido do imediato das coisas, do superior «divino» que daí pode advir, no modo de vida de uma estrela (como Amy foi), o imediato era o presente inabarcável. Um presente como uma crença em que toda a experiência de um modo de viver pudesse substituir a verdadeira vida, aquela onde tudo é uno, aquela onde não há contradição no «vivível».

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Em jeito de epitáfio


«Quero que a minha existência
Seja uma suprema ofensa
Aos abutres impacientes
Desde os anos quarenta,
Por eu ilustrar sem complexo
O sangue, a merda e o sexo.»

in PENSE-BÊTES- Roland Topor

domingo, 24 de julho de 2011

Destruir para construir

RUÍNAS- Manuel Mozos (2009)

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Vítima do Dever


«O Nicolas pôs à mostra uma enorme faca. O polícia juntava as mãos. Batia os dentes, apesar de o aquecimento funcionar muito bem. O Nicolas brandiu a arma. O polícia fez-nos ouvir sons macios e começou a cheirar mal.
-Não é bonito fazer nas calças! - digo em voz alta, sem avaliar bem a situação.
Com olhar feroz, a boca torcida, a nuca congestionada («Atenção, Nicolas, não tenhas nenhuma apoplexia!... Vamos lá ver, Nicolas, podias ser pai dele!...), por três vezes o Nicolas espetou a faca no coração do pobre polícia, que caiu redondo no chão ensaguentado, vítima do dever. »

in UMA VÍTIMA DO DEVER- Eugène Ionesco

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Uma ideia, um plano

Quem segue os enconsos meandros da blogosfera cinéfila sabe que ela vive da obsessão revitalizadora de gente que ama à la folie o cinema e de pequenas grandes iniciativas que têm o condão de pôr o «people» a pensar. Um bom exemplo destas iniciativas é a rubrica do João Palhares no seu Cine Resort: periodicamente convida bloggers de cinema a escolher um plano de um filme qualquer e a falar sobre ele. A ideia não podia ser mais simples e, consequentemente, estimulante. Espreitem a minha contribuição aqui.

Culpa espontânea


Perguntamo-nos como pode hoje um funcionário público ler «O Castelo», de Kafka?

Diríamos que será a mesma coisa que espreitar por um espelho distorcido que em vez de retribuir uma imagem molenga, desfocada, de homens gorduchos ou envelhecidos precocemente, endeusa, mitifica o funcionarismo. Kafka unia a distinção de classes, o rastro da autoridade fantástica do soberano, ao ridículo de uma novidade: a burocracia. Hoje, o burocrata já não é «Deus», nem mesmo sequer o demónio. É uma personagem secundária que paralisa o enredo, que congela o diálogo.

No «Castelo» os funcionários têm inúmeras qualidades, são ardentes amantes, possuem inteligência suprema e subjugam os membros da aldeia apenas com o pensamento. Mais: conduzem os pobres, os habitados pelo espírito do povo, a pedirem perdão. E a culpa nasce no aldeão sem que o funcionário lhe aponte uma falta. Culpa, hum, espontânea. Menos de 100 anos se passaram desde que Kafka concebeu este universo de inversões e o sentimento de culpa mantém-se. Foi transferida a fonte das turbações para outras classes: magnatas, empreendedores, tecnocratas, boys. Os funcionários transformaram-se em funcionários públicos mas o mais perturbador é que estes já não possuem a capacidade de perdoar. Perderam-na? Não perdoam porque já não há nada a perdoar. Porque a política é cada menos da esfera da culpa.

Mas então que fazer com esta culpa?

terça-feira, 19 de julho de 2011

Fantasmas, espíritos e demais assombrações

A principal razão que explica o sucesso do conceito de SAW, e que valeu a James Wan, seu criador, a compra de uma ilha com os lucros do projecto, assenta sobretudo na capacidade de acrescentar à dimensão sangrenta e psicopata de um estilo de terror explorado até ao tutano, a estrutura de jogo sádico («I wanna play a game»), linha na qual oscilava o suspense que dita o fim ou salvação das suas vítimas. Como se o habitual dilema moralista que o terror se habitua a explorar fosse encapotado sob um agradável quebra-cabeças (passe-se a expressão) de Verão (passe-se a expressão outra vez).

Se a saga se esvaziou progressivamente de conteúdo, pendendo para o lado da enésima exploração gráfica das suas mortes, o realizador americano e o seu argumentista Leigh Whannell perceberam que era sobretudo esse lado lúdico o seu valor acrescentado. Desta clarividência surge INSIDIOUS, filme que junta a dupla à produção de Oren Peli, realizador de outro sucesso mais comedido, sem direito a ilhas, PARANORMAL ACTIVITY (2007).

Aqui o «jogo» é o das aparições - desaparições, o das mansões sombrias, seus quartos e corredores como recreio para o suspense, ou o jogo de esticar a metafísica ao limite da credulidade (à boa maneira de M. Night Shyamalan), numa homenagem ao velhinho género fantástico das casas assombradas. Josh (Patrick Wilson) e Renai (Rose Byrne) são um casal que se vê a braços com um filho comatoso (Dalton) e a presença de uma quantidade de espíritos que por alguma razão insistem em assombrar os lares desta família.

É precisamente a dupla dimensão de jogo e homenagem a um género que faz de INSIDIOUS um interessante filme de terror, na capacidade que tem de transportar em cada plano universos concorrentes. Por exemplo, a forma como a extraordinária montagem sonora - com um alarme da casa odioso que toca a meio da noite, com o ciciar do inter-comunicador ou o sinal da máquina a que está ligado Dalton - insiste em prolongar, como jogo precisamente, a agonia do invisível. E depois, há CARNIVAL OF SOULS, THE AMITYVILLE, POLTERGEIST, THE HAUNTING, DANZA MACABRA, DON’T LOOK NOW, todos património do género que James Wan conhece e que faz questão de lembrar durante INSIDIOUS.

Pode perguntar-se: e para lá do fetichismo cinéfilo há novidade? Numa altura em que a saturação de sangue e violência fazem da retracção, do «mistério», só por si, um inestimável instrumento de frisson (a insistência em sentir qualquer coisa), a táctica de Wan é já meia vitória. Ainda assim é legítimo dizer-se que quando INSIDIOUS parte para a canónica cena a dois terços do filme de explicação dos eventos, «perde-se» em projecções astrais e dimensões alternativas. Ainda assim, a noção que todos têm da truculência da coisa, de que a montanha pare ratos todos os dias, parece ser compensada pela auto-ironia. Senão como explicar a presença de Barbara Hershey, protagonista de um filme de culto muito semelhante na sua storyline, THE ENTITY (1968)? Ou a dupla de personagens «caçadores de fantasmas»? Ou mesmo a máscara inacreditável usada pela vidente?

Em suma, INSIDIOUS certamente não fará de Wan ou Whannell visionários do género. Contudo há uma dimensão artesanal em toda a recriação dos ambientes tipo que faz do filme um agradável e competente exercício de rememoração do género que se pretende homenagear.

INSIDIOUS estreia esta quinta-feira nas salas portuguesas.